“Suspensão da Venezuela: só política, nada jurídica”, por Francisco Denes
Em artigo para a Carta Capital, Francisco Denes fala sobre as motivações para a suspensão da Venezuela do bloco sul-americano.
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Que 2016 vem sendo um ano turbulento no Brasil e no mundo não há nenhuma dúvida. Tampouco se ignora o fato de que as consequências das mudanças econômicas e políticas afetaram em cheio um dos blocos de integração mais estratégicos da região: o Mercosul.
No ano em que completa o seu 25º aniversário, este jovem processo enfrenta a maior crise desde a sua criação. O impasse surgiu a partir da designação da presidência pro-tempore do bloco, que deveria ser da Venezuela, segundo a regra de revezamento por ordem alfabética, que desta vez foi contestada pelos governos da Argentina, Brasil e Paraguai, com questionáveis argumentos.
No primeiro dia de dezembro, os jornais noticiaram Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai decidiram suspender a Venezuela do Mercosul, por descumprir obrigações assumidas quando o país se incorporou ao bloco, no ano de 2012. Novamente, os motivos alegados não encontram respaldo nos tratados e protocolos do bloco.
Para Brasil, Argentina e Paraguai, o fato da Venezuela não ter incorporado a normativa do Mercosul em sua legislação interna é o motivo principal para afastar o país do bloco e tirar seu direito a voz e voto. Só que este não é um problema exclusivo da Venezuela: os demais membros tampouco incorporaram todas as regras em sua legislação interna.
Um exemplo disso é o próprio Brasil, que ainda não ratificou cinco dos 41 acordos que a Venezuela também precisa confirmar – incluindo um sobre a equiparação das normas sobre propriedade intelectual, e outro sobre a integração dos sistemas educacionais, entre outros. Se os demais membros, todos sócios-fundadores, ainda não incorporaram todos os itens da normativa, deveria ser lógico entender que tampouco é fácil para a Venezuela, que ingressou há apenas quatro anos, e que impor ao país um rigor que nunca foi usado contra os demais é ao menos injusto.
Não se trata de defender que a Venezuela não seja cobrada pelo não cumprimento das regras do bloco, mas sim entender que há circunstâncias, e que é possível se estabelecer um diálogo e buscar uma saída negociada, algo fácil de conseguir quando há vontade política de sustentar tanto a presença da Venezuela quanto a estabilidade do bloco. E parece que este é exatamente o que não está acontecendo no caso.
Argentina, Brasil e Paraguai se comportam como verdadeiros juízes, não como agentes conciliadores para resolver a crise, e não se molestam em desrespeitar as normas do bloco para avançar com esta postura. Ainda que os discursos não admitam claramente, a verdade é que, no momento, três dos cinco membros plenos não querem mais que a Venezuela tenha voz e voto no bloco.
Existe sim uma forte luta política entre os mais fortes de um lado e os mais fracos de outro, com esses mais fortes claramente querendo excluir um dos mais fracos, e sem a ajuda de um poder moderador capaz de normalizar a situação. Um conflito que se aprofunda, colocando em risco os princípios que um dia nortearam a criação do bloco: o da defesa dogmática da importância da integração e o da convivência democrática apesar das diferenças.
O que dizem as regras
O Artigo 37 do Protocolo de Ouro Preto estabelece que “as decisões dos órgãos do Mercosul devem ser tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados Pares”. Já o Artigo 12 do Tratado de Assunção afirma que “a presidência do conselho se exercerá por rotação dos Estados Partes e em ordem alfabética, por períodos de seis meses. As reuniões do conselho devem ser coordenadas pelos ministros de Relações Exteriores e podem ser convidadas a participar nelas outros secretários ou autoridade de nível ministerial”. Estamos falando aqui dos documentos que marcam a fundação do bloco e o estabelecimento das suas bases institucionais, e o que eles determinam em situações como as que vemos atualmente.
O boicote que Brasil, Argentina e Paraguai estão fazendo contra a Venezuela é evidente: já excluíram o país das reuniões dos grupos de trabalho, dos encontros de chanceleres e também das negociações com terceiros países – assim como das reuniões de caráter informal, para as quais o país caribenho já não é mais convidado. A Declaração Conjunta dos Chanceleres dos “países fundadores”, publicada em setembro passado por Brasil, Argentina e Paraguai – com a abstenção do Uruguai –, também foi outro episódio sem fundamento nos tratados do bloco. Não existe nas normas a categoria de “países fundadores”, e portanto o documento não tem valor para as decisões do bloco, que devem ser todas tomadas por consenso entres todos os membros plenos.
Por outro lado, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados qualifica como “violação grave” a não internalização das normas do Mercosul por parte da Venezuela, particularmente do Acordo de Complementação Econômica Nº18 (ACE 18). Contudo, não existe na normativa do Mercosul nenhum artigo que preveja a expulsão de um membro pleno pelo incumprimento da incorporação da normativa, já que nos princípios essenciais do direito internacional se parte da “boa fé” para o cumprimento dos tratados e acordos, já que sua adesão surge da vontade dos Estados nacionais.
Por sua parte, a Venezuela já procurou solucionar a incorporação da ACE 18. A chanceler Delcy Rodríguez chegou a publicar uma nota aos quatro colegas do Mercosul, expressando a intenção do país de aprovar a normativa, o que mostra que não existe má fé do Estado venezuelano a respeito deste tema.
No próprio Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela já estão citadas as normas do bloco que o país não podia incorporar em seu ordenamento interno por razões de constitucionalidade. Em casos assim, poderia haver conversações para que se buscasse uma solução, talvez uma adaptação da normativa visando permitir sua incorporação às leis venezuelanas.
Neste protocolo, os princípios citados de “gradualidade, flexibilidade, equilíbrio e reconhecimento das assimetrias e tratamento diferencial no ingresso” parecem ter sido esquecidos pela diplomacia dos três países questionadores. Estava previsto no mesmo uma série de normas que poderiam ser modificadas para a sua incorporação por parte da Venezuela, já que são conflitivas com sua Constituição nacional.
Com respeito às normas – que não são o mesmo que os acordos –, a Venezuela já incorporou 986 das 1224 que o país deve adotar. O país caribenho também já ratificou 16 acordos dos 57 previstos em seu protocolo de adesão.
Além disso, o Grupo de Trabalho pela Venezuela (GTVen), criado pelo mesmo Protocolo de Adesão para acompanhar e impulsionar a incorporação do país, não realiza nenhum novo encontro desde o último mês de maio. As reuniões do GTVen convocadas durante o segundo semestre deste ano pela própria Venezuela, e aceitas pelo Uruguai, não tiveram a adesão de Argentina, Brasil e Paraguai.
Razões políticas
A partir da falta de sustentação jurídica nos tratados e protocolos observada na decisão sobre o afastamento, pode-se concluir que a expulsão da Venezuela do Mercosul é um objetivo político buscado por Brasil, Argentina e Paraguai – ao qual o Uruguai, que manteve postura moderada no começo, acabou cedendo após pressão diplomática dos demais.
As tentativas anteriores de se excluir a Venezuela do Mercosul, como a aplicação do Protocolo de Ushuaia – que fala sobre o compromisso democrático do Mercosul – ou a aplicação da Carta Democrática da OEA, não surtiram efeito algum. Contudo, esta última movida é uma forma de ir para o tudo ou nada em busca do objetivo.
É importante entendermos o que está por trás da desarticulação do Mercosul, que não implica somente na expulsão da Venezuela como também na tentativa de barrar o ingresso da Bolívia como membro pleno. Ainda não está claro qual é o modelo de integração que os atuais governos da Argentina, do Brasil e do Paraguai querem adotar, mas sem dúvidas é diferente do que foi experimentado dos Anos 90 até agora: um bloco que resolve seus problemas a partir do consenso e da negociação, não através da hostilidade, como a que vemos neste caso.
A falta de vontade dos três governos citados para enfrentar os problemas regionais e os desafios da integração entre as economias vizinhas para enfrentar as crises, além da ausência de uma estratégia a longo prazo, é um equívoco enorme e pode trazer consequências negativas para os avanços que tivemos nas últimas décadas, não só no que diz respeito ao comércio e ao crescimento, mas também em aspectos como a cultura, a educação, a diminuição das desigualdades regionais e o respeito mútuo dos povos sulamericanos.
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