Djamila Ribeiro: “Pra nós, falar de machismo e racismo é questão de sobrevivência”
Para a pesquisadora da área de filosofia política e feminista, não querer falar desses temas revela uma sociedade imatura para o debate sério
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Por Djamila Ribeiro*
Quem é feminista ou milita na luta antirracista ou no movimento LGBT, com certeza já ouviu de alguém a frase: “Ah, mas vocês só falam disso” ̵ seja para expressar cansaço ou destilar ódio.
Essas pessoas, obviamente, ignoram que machismo e racismo são elementos estruturantes dessa sociedade, logo nenhum espaço estará isento dessas opressões. Basta vermos as desigualdades salariais entre homens e mulheres ̵ se falarmos de mulheres negras, a distância é maior ainda ou o número de jovens negros assassinados pelo Estado.
Para nós, falar desses temas é questão de sobrevivência, é denunciar a dura e desigual realidade. Pedir para pararmos de falar disso, seguindo a síndrome Morgan Freeman de ser, é querer manter as coisas como estão. Freeman, em uma entrevista, disse que o dia em que pararmos de falar de racismo, ele deixará de existir, como se racismo fosse uma entidade.
Fazendo uma analogia simplista, e um “argumento” simplista como esse requer uma analogia assim, se uma pessoa está com câncer e deixa de falar nisso e procurar tratamento, a doença simplesmente vai desaparecer? Não querer discutir temas tão importantes é sintomático de uma sociedade imatura para o debate sério. Há uma frase que circula nas redes sociais que explica bem: “Se você está cansado de ouvir falar sobre racismo, imagine quem vive isso todos os dias”.
Não querer discutir temas tão importantes é sintomático de uma sociedade imatura para o debate sério. Há uma frase que circula nas redes sociais que explica bem: “Se você está cansado de ouvir falar sobre racismo, imagine quem vive isso todos os dias”.
Fora isso, há os intelectuais e especialistas que adoram dizer serem pessoas que falam de tudo, arvoram-se por falar de tudo. Esses também se referem a nós como pessoas que “só sabem falar disso”. Nesses casos, eu julgo ser pior, porque essas pessoas têm acesso a um debate mais crítico, mas preferem se esconder por de trás de seus privilégios.
Criam categorias como literatura feminina, assuntos para mulheres. A literatura produzida por eles é tida como universal e a feita por mulheres, “literatura feminina”. Alguém já ouviu alguém falar em literatura masculina? Criam sub categorias para hierarquizar arte e conhecimento. Julgam que falam do universal enquanto nós só falamos do específico, do “nosso mundo”, quando é justamente o contrário.
Ao falarmos de nós, estamos denunciando o quanto essa categoria universal é falsa, pois tem como base o homem, o branco. Apontar isso, é justamente ampliar essa categoria de universalidade, fazê-la abranger um número maior de possibilidades de existência.
Se racismo e machismo são elementos fundantes dessa sociedade, as hierarquizações de humanidade serão reproduzidas em todos os espaços. Deste modo, a ciência já foi utilizada para legitimar racismo através dos estudos de evolução biológica do século 19 que introduziu o conceito de “racismo biológico”, assim como também para querer provar uma “inferioridade natural” da mulher.
Como disse Bourdieu: “A ciência neutra é uma ficção. Uma ficção interessada”. Há o interesse de quem possui os privilégios sociais de criar mecanismos de manutenção desses privilégios, seja pela ciência, pela arte ou pela educação. Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra aborda essa questão em suas obras.
Criticando a ciência moderna como padrão exclusivo para a produção do conhecimento, vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco.
Nada é isento de ideologia. Como acadêmica e militante, ouço por parte de alguns acadêmicos que sou ideológica por estudar feminismo, como se eles também não tivessem seguindo uma ideologia, inclusive a de decidir quais temas são legítimos ou não e a de nos manter fora desses espaços. Nosso “stand point”, ponto de partida, como define Patricia Hill Collins, ou o nosso “só falar disso” nos permite refutar esse modelo e pensar outros mais plurais e democráticos. Não é possível falar de política, sociedade, arte, sem falar de racismo e sexismo.
Falar de questões que foram historicamente tidas como inferiores, falar de mulher, população negra, LGBT é romper com a ilusão de universalidade que exclui. A concepção de universal de quem está no poder é um dado ilusório. Não nos enganemos quando eles dizem que falam de temas universais e nós não. Eles estão tão somente falando de si próprios.
Djamila Ribeiro é pesquisadora da área de filosofia política e feminista
*Publicado originalmente em CartaCapital