Documentário retrata atuação de mulheres durante a ditadura
“Atrás de Portas Fechadas” traz depoimentos e histórias de mulheres em organizações de esquerda e também de colaboradoras dos golpistas
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da RBA – “O que ocorre na vida privada que determina as escolhas na vida pública?” Esta questão foi um dos fios condutores para as documentaristas Danielle Gaspar e Krishna Tavares na produção do documentário Atrás de Portas Fechadas, que será lançado no festival Cine Direitos Humanos, no final de outubro. O longa-metragem traz entrevistas com mulheres que atuaram em organizações de esquerda e de direita durante a ditadura no Brasil (1964-1985).
As diretoras investigaram fatores determinantes para a construção das convicções político-ideológicas de mulheres naquela época: enquanto uma parte delas lutava pela participação política, democrática e contra a repressão, outras deixavam brevemente o conforto do lar para defendê-lo do que chamavam de “ameaça comunista”.
Mas por que colocar no mesmo filme pessoas que lutaram pela democracia e pela manutenção da ditadura? “Acho que existe uma questão histórica com relação às lutas políticas e ideológicas no Brasil, que precisamos resgatar para responder essa pergunta. Em vários momentos na história dos movimentos de esquerda, no Brasil e na América Latina, vivemos a expectativa de mudanças sociais e políticas significativas que na maioria das vezes não se efetivou”, diz Krishna Tavares.
Para a documentarista e pesquisadora, a análise de todos esses momentos levanta a impressão que sempre o discurso e as ações daqueles que se opõem às mudanças – ou seja, o pensamento ideológico de direita – foram subestimados. “Além disso, historicamente, a esquerda latino-americana se fragmenta em dissidências, se fragiliza. Entender e escutar o outro, que é ideologicamente contrário ou igual, faz-se necessário na medida em que se pretende refletir sobre esses processos históricos de forma mais orgânica.”
De um lado estão mulheres que sobreviveram a torturas e humilhações das quais não podem nem lembrar, como é o caso de Jovelina: “Eu sempre falava para minha sogra: ‘Se eles pegarem meu filho e judiarem dele, eu vou falar de todo mundo’. Minha sogra falava: ‘Você não fala’. E foi impressionante, porque aí você sabe quem é o inimigo porque eles são tão brutos! Como dedar um companheiro, que é uma pessoa agradável e uma pessoa que está correta, e entregá-lo para uma pessoa tão bruta e estúpida que nem sabe por que está te batendo?”, relembra.
Do outro lado, o discurso da proteção da família, com argumentos de difícil digestão. Em especial os de Maria Helena: “Eu tinha três filhos – acabei tendo cinco filhos – e dizia ‘Que Brasil é este que nós vamos ter?’ Nós já tínhamos o exemplo de Cuba, do Che Guevara fazendo aquela desordem toda das quais tínhamos notícias constantes… E eu estava vendo o Brasil ir pelo mesmo caminho. Então, aquilo me deixava muito preocupada. Aí eu entrei na União Cívica Feminina (UCF) diretamente e fortemente, para fazer tudo o que fosse possível”, ela declara no início do filme.
E foi o que fez. Além de participar da organização de passeatas e das marchas da família, Maria Helena ajudava o Departamento de Ordem de Política e Social (Dops) a identificar militantes de esquerda. “Eu sabia que na Operação Bandeirantes eles tinham um trabalho muito grande de desbaratar aparelhos, que eram as células comunistas que se reuniam. Como nós fazíamos nossas reuniões, eles também faziam. Nós fazíamos as nossas porque eles faziam as deles. Então eu me ofereci e disse: ‘Vocês me liguem quando tiverem alguma denúncia que eu vou guardar na minha memória visual chapas de carros para passar para vocês, para desbaratar aparelhos’. Assim, eu consegui desbaratar muitos aparelhos”, afirma, orgulhosa.
Ao final, Atrás de Portas Fechadas declara sua posição com a frase: “A impunidade dos crimes políticos perpetua-se nas mortes cotidianas, por meio das chacinas, massacres e outras arbitrariedades cometidas por policiais, grupos de extermínio e seus mandantes”. Mas será que as “distintas” senhoras de direita têm consciência de que a ditadura que apoiaram traz ainda hoje reflexos perversos na sociedade brasileira?
“Não fizemos essas considerações com as entrevistadas da UCF, pois essas mulheres têm convicção ideológica no que dizem e, sobretudo, no que fazem. Ou seja, defender o modo como vivem e apoiar um regime político e econômico que legitime e mantenha uma estrutura social que beneficia poucos e mantém a maioria fora da conquista das necessidades básicas não é uma questão ideológica para elas, mas uma questão de competência. Essa concepção fundamenta historicamente a luta de classes na América Latina. Tenho convicção de que elas têm consciência de que tais reflexos perversos na sociedade brasileira ocorrem não porque são consequências da ditadura, mas porque se fazem necessários para manter a ordem que defendem”, observa Krishna.
O filme estreia às 11h do sábado (24), no Cine Direitos Humanos, no Espaço Itaú de Cinema do Shopping Frei Caneca, em São Paulo.
Por Xandra Stefanel, do site Rede Brasil Atual