Intervenção na Comissão da Anistia estimula política de esquecimento

Para José Carlos Moreira da Silva Filho, vice-presidente dispensado por governo golpista, nova composição corre o risco de tratar ditadura como algo “necessário”

Foto: José Cruz/Agência Brasil

No último dia 2 de setembro, o ministro golpista da Justiça Alexandre de Moraes dispensou seis membros da Comissão de Anistia, e colocou 20 outros integrantes no lugar. A medida é inédita. Desde a sua criação, a Comissão da Anistia nunca havia sofrido intervenção por parte do governo.

O Movimento por Verdade, Memória, Justiça e Reparação divulgou, no último sábado (3), uma nota em repúdio ao ato do governo golpista e denunciou o desmonte da Comissão. Pela primeira vez, foram afastados membros a contragosto, e colocados integrantes sem diálogo com a sociedade civil.

José Carlos Moreira da Silva Filho, ex-vice presidente da Comissão de Anistia e professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais (PUC-RS), foi um dos afastados por Alexandre de Moraes. Apesar de não ter recebido nenhuma explicação para o afastamento, ele suspeita que sua posição contrária ao governo e ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) possa ter motivado a dispensa.

Foto: Caroline Bicocchi

Foto: Caroline Bicocchi

Moreira afirma que ainda não há como saber quais os rumos da comissão, mas vários dos novos membros já mostraram um posicionamento simpático à ditadura militar. “Não indo nessa direção (de repúdio à ditadura), a Comissão  contribui para uma política de esquecimento, colocando a ditadura como algo que foi “necessário” ao Brasil”, afirma Moreira.

Leia a entrevista:

Como eram feitas as mudanças na Comissão da Anistia?
A comissão de Anistia desde que foi criada – no governo FHC  –  sempre teve sua composição feita por pessoas com atuação reconhecida dentro do campo dos Direitos Humanos. Em que os conselheiros que até então saíram do conselho e foram substituídos por outro. Todas as saídas eram feitas a pedido, já que se trata de um cargo honorário, as pessoas não recebem salário, e muitas vezes as pessoas pelos seus projetos não conseguem conciliar. Naturalmente ia acontecendo um rodízio.

O que está em jogo com essa mudança?
Quando o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), assumiu o Ministério da Justiça, em 2007, ele trouxe um projeto de reformulação, no sentido de envolver a comissão além do processo de reparação, de envolver a comissão em um processo de políticas públicas de educação e de memória.

Desde então, tem se constituído projetos muito exitosos, o projeto das caravanas da anistia, de fazer análise de medidas de reparação em locais onde aconteceram a repressão com depoimentos dos anistiados. A criação de um edital chamado Marcas da Memória, que tem financiado e apoiado várias iniciativas culturais da sociedade em prol da memória política do brasil, livros, filmes, teatro.

Foram se construindo teses assinadas com a posição dos organismos internacionais de direitos humanos. Como a de que não cabe anistia a responsáveis por processos de lesa-humanidade, que eles têm que ser responsabilizados e passar por um processo público de investigação e responsabilização. Também um projeto de proporcionar atendimento psicológico para vítimas de tortura.

E também o Memorial da Anistia, que conta a história dos perseguidos políticos com suas próprias palavras e também proporciona um espaço de pesquisa.

Todo esse legado está em risco com o que aconteceu agora no dia 2 de setembro. Pela primeira vez, seus membros foram designados de forma arbitrária. Pela lei, o Ministro da Justiça tem esse poder, mas a prática sempre foi ouvir a sociedade civil para escolher os conselheiros e nunca ninguém foi dispensado contra sua vontade. Isso está acontecendo. As pessoas que estão sendo dispensadas atuaram de maneira intensa na Justiça de transição do brasil.

Qual foi o motivo alegado para a dispensa?
Eles não disseram os motivos da nossa dispensa. Eu imagino, por um lado com a incompatibilidade ideológica dos rumos possíveis dessa nova comissão. Não quero prejulgar os rumos dessa nova comissão, mas é estranho identificar conselheiros que têm um histórico de apoio à ditadura, por exemplo o vice-presidente, Francisco Rezek, foi ministro do Supremo indicado pelo ditador presidente João Batista Figueiredo.

Outro jurista, Paulo Lopo Saraiva, em 1976 escreveu um texto de celebração do aniversário da “revolução” de 1964, uma visão de apologia à ditadura. E uma boa parte dos conselheiros indicados orbita em torno de  Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que é um jurista que deu seu apoio à ditadura.

Você está submetendo pessoas já mais velhas, algumas doentes, que passaram por traumas no combate à ditadura e vão ter seu pedido de anistia analisados por pessoas que de algum modo defenderam e tem algum tipo de simpatia à ditadura”

Qual o risco?
A gente vê isso com muita preocupação. Porque você está submetendo pessoas já mais velhas, algumas doentes, que passaram por traumas no combate à ditadura e vão ter seu pedido de anistia analisados por pessoas que de algum modo defenderam e tem algum tipo de simpatia à ditadura. Mudou o perfil. E a maneira foi feita de forma arbitrária. Sem explicação e motivação.

Eu suspeito que teve uma análise sobre como cada um desses conselheiros dispensados estavam se posicionando em relação a esse governo. Eu nunca escondi minha opinião de que é um governo usurpador e ilegítimo e que nós estamos vivendo um Golpe de Estado. Imagino que isso possa ter gerado essa dispensa.

Eu nunca escondi minha opinião de que é um governo usurpador e ilegítimo e que nós estamos vivendo um Golpe de Estado. Imagino que isso possa ter gerado essa dispensa”.

Foi um ato simbólico, de promoção do esquecimento?
É muito simbólico que um dia depois do golpe ter sido concluído essa medida tenha sido publicada. Há figuras indicadas que têm um certo respeito. O novo presidente, Almino Afonso, é respeitado, foi ministro do trabalho de João Goulart.

Não sabemos se a comissão vai orientar para uma direção que tem certa complacência com a ditadura ou seguir com a linha de repúdio à ditadura, e de exigência da aplicação das normas internacionais no Brasil, e inclusive a decisão contra o Brasil no caso Araguaia, que estabelece uma agenda de justiça de transição e também as recomendações da Comissão Nacional da Verdade.

Ao que tudo indica, essa nova comissão não vai nessa direção. E não indo nessa direção ela contribui para uma política de esquecimento, ressignificando essa experiência negativamente, colocando a ditadura como algo que foi “necessária” ao Brasil. Isso é muito complicado para um órgão que tem como objetivo reparar as vítimas.

“Não indo nessa direção (de repúdio à ditadura), a Comissão  contribui para uma política de esquecimento, colocando a ditadura como algo que foi ‘necessário’ ao Brasil”

O que isso indica sobre o novo governo?
O governo de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma convergiam na pauta dos direitos humanos. Agora vemos uma pauta fascista e reacionária e que agora vão se colocando de forma mais intensa no governo usurpador consolidado.

Qual será a ação a partir disso?
A nossa ação é de protesto, de noticiar a sociedade civil e os organismos internacionais. Essa nota será enviada para o relator de justiça de transição da ONU, alto comissariado de Direitos Humanos da ONU, para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a Secretaria de Direitos Humanos. A verdadeira mudança que deveria ocorrer é a mudança desse governo que é ilegítimo e não terá condições de dar uma continuidade democrática ao nosso país.

Por Clara Roman, da Agência PT de Notícias

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