José Dirceu: artigo “O Estado que o século 21 exige”

Para o ex-ministro, Brasil deve superar dogmas e retomar o planejamento estatal para garantir soberania e desenvolvimento no século 21

Agência Brasil

O ex-ministro José Dirceu defende um projeto nacional de desenvolvimento ancorado na reindustrialização e na soberania tecnológica

O debate sobre o papel do Estado voltou ao centro da agenda internacional, de onde nunca deveria ter saído – e reassume seu protagonismo não por escolha ideológica, mas por necessidade histórica.

A crise do neoliberalismo, aprofundada pela pandemia de Covid-19, pelas guerras comerciais, pela emergência climática e pela revolução tecnológica, recolocou uma evidência que havia sido deliberadamente negada nas últimas décadas: não há desenvolvimento econômico sustentável nem coesão social sem um Estado forte, planejador e indutor.

No Brasil, esse debate ainda é atravessado por caricaturas. De um lado, o dogma fiscalista que reduz o Estado a um gestor de planilhas e metas de curto prazo. De outro, um falso desenvolvimentismo que se limita a transferências de recursos, incentivos fragmentados e concessões ao grande capital, sem estratégia nacional, sem coordenação produtiva e sem contrapartidas estruturais. O resultado, conhecido, inclui baixo crescimento, reprimarização da economia, desindustrialização precoce e dependência tecnológica.

Enquanto isso, o mundo se move em outra direção. Os Estados Unidos, frequentemente apresentados como o templo do livre mercado, vêm promovendo uma inflexão clara em sua política econômica. A reindustrialização passou a ser tratada como questão de segurança nacional.

O Estado voltou a financiar diretamente setores estratégicos, reorganizar cadeias produtivas, proteger tecnologias sensíveis e condicionar investimentos privados a objetivos públicos. Semicondutores, energia limpa, inteligência artificial, defesa e biotecnologia passaram a ser áreas de coordenação estatal explícita.

A União Europeia, com todas as suas contradições, segue caminho semelhante. A pandemia escancarou os limites da dependência externa em áreas críticas, da saúde à energia. Desde então, os principais países europeus fortaleceram políticas industriais, ampliaram investimentos públicos em inovação, ciência e infraestrutura e passaram a discutir soberania tecnológica como dimensão da própria soberania política. O Estado voltou a planejar, ainda que sob forte disputa interna.

Os europeus lançaram o European Chips Act, mobilizando mais de 43 bilhões de euros em recursos públicos e privados para reduzir a dependência asiática e elevar a participação europeia na produção global de semicondutores para cerca de 20% até 2030.

Alemanha e França lideram esse processo com pesados subsídios estatais à reindustrialização verde e digital, incluindo apoio direto à instalação de fábricas de chips, hidrogênio verde e baterias. Apenas a Alemanha destinou dezenas de bilhões de euros em garantias e aportes públicos para proteger sua base industrial durante a crise energética pós-guerra da Ucrânia.

A União Europeia tem subsidiado fortemente energia, habitação e alimentos. Nos últimos anos, a Espanha implementou diversas medidas de subsídio ao transporte público, incluindo viagens de trem gratuitas por tempo limitado e a proposta de um passe único nacional de baixo custo, que permitirá viagens ilimitadas em todos os trens e ônibus do país por um valor fixo mensal de 60 euros.

Planejamento

Ao mesmo tempo, o bloco flexibilizou regras fiscais e de concorrência para permitir auxílios estatais estratégicos, algo impensável na ortodoxia neoliberal clássica. Não se trata de retórica desenvolvimentista, mas de ação coordenada, com investimento público, planejamento industrial e soberania tecnológica tratados como política de Estado — e não como desvio ideológico.

Essas experiências desmontam o discurso de que a globalização neoliberal teria tornado o Estado obsoleto. É o contrário, afinal quanto mais complexa, tecnológica e desigual a economia, maior a necessidade de coordenação pública. O mercado, deixado a si mesmo, não produz inovação sistêmica, não reduz desigualdades e não garante autonomia nacional. Produz concentração, fragilidade social e dependência.

É nesse ponto que o Brasil precisa fazer escolhas. Nossa política industrial não pode ser episódica, capturada por interesses setoriais ou reduzida a desonerações fiscais. Política industrial é estratégia de desenvolvimento. Exige planejamento de longo prazo, definição clara de setores prioritários, articulação entre Estado, empresas e sistema científico, além de metas explícitas de conteúdo nacional, inovação e geração de empregos qualificados.

Mais do que isso, política industrial hoje é, necessariamente, política de soberania tecnológica. Não há autonomia nacional sem domínio, ainda que parcial, das tecnologias que estruturam a economia do século 21. Dados, semicondutores, inteligência artificial, transição energética, defesa cibernética e biotecnologia não são apenas mercados, são infraestruturas de poder.

A experiência brasileira mostra que é preciso gerir o investimento. O Estado deve orientar o crédito, induzir inovação, proteger setores nascentes e exigir contrapartidas sociais e tecnológicas. O que fracassou no passado não foi o papel do Estado, mas sua captura, sua fragmentação e a ausência de um projeto nacional coerente.

Críticas

Nesse contexto, causa estranheza que parte do debate público ainda trate qualquer tentativa de reconstrução da capacidade estatal como sinônimo de desorganização, improviso ou desastre iminente, como parte da nossa grande imprensa, agarrada a velhos dogmas, costuma pregar.

Narrativas que anunciam o fracasso antes mesmo da consolidação de políticas ignoram tanto a experiência internacional recente quanto a própria história brasileira, marcada por ciclos de crescimento associados à presença ativa do Estado. Confunde-se crítica legítima à gestão com rejeição estrutural ao planejamento público, como se governar fosse apenas administrar restrições, e não fazer escolhas estratégicas.

Também não se trata de negar a responsabilidade fiscal, mas de recolocá-la em seu devido lugar. Responsabilidade fiscal sem responsabilidade social e produtiva é austeridade estéril. O equilíbrio das contas públicas não pode ser um fim em si mesmo, mas um instrumento a serviço do desenvolvimento, da redução das desigualdades e da reconstrução da capacidade produtiva nacional.

O desafio brasileiro é político, antes de ser técnico. Exige romper com o senso comum neoliberal ainda dominante em parte das elites, enfrentar interesses rentistas e reconstruir a ideia de planejamento público como virtude democrática, não como ameaça à liberdade.

Tenho insistido ao longo de 2025 que o cenário exige, mais do que nunca, um projeto nacional de desenvolvimento. Um projeto ancorado, por exemplo, na Nova Indústria Brasil, no PAC e na transição energética e ambiental. Sobretudo com a necessidade do Brasil de buscar autonomia tecnológica e financeira. Sem isso, seguiremos à mercê das instabilidades e incertezas internacionais, perdendo a oportunidade das transformações geopolíticas e econômicas.

A tarefa requer do Brasil equilibrar-se entre a ascensão da China e do Sul Global, que são a força emergente do século 21, e nossas históricas relações com os EUA e a Europa. Para sermos bem-sucedidos nesse equilíbrio, precisamos de uma estratégia capaz de promover uma verdadeira revolução política e social que preserve nossa liderança na integração da América do Sul. Uma estratégia que, sob a liderança do presidente Lula, construa consensos mínimos, una setores de classes empresariais e classes trabalhadoras, supere divisões e evite más escolhas.

O século 21 não será dos países que apenas exportam commodities ou equilibram planilhas. Será dos que combinarem Estado forte, democracia, inovação e inclusão social. A história recente mostra que quem abdica de planejar abdica, no limite, de decidir seu próprio futuro.

José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo.

 

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