Luciana Salgado e Teresa Melo: O cárcere de Lula como espaço de criação
Um lugar em que a vida pulsa e uma inteligência coletiva se põe em funcionamento. Há 100 dias o país convive com o ex-presidente preso.
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A prisão do ex-presidente Lula tem transformado o entorno da Polícia Federal de Curitiba em um espaço de resistência, reflexão e criação. Há 100 dias a vizinhança, a cidade, o país e o mundo convivem com uma nova (e, esperamos, passageira) configuração do lugar próximo à cela onde se encontra o preso político Luís Inácio Lula da Silva.
Ali, nos espaços criados e nominados para essa convivência – na Praça Olga Benário, no Acampamento Marisa Letícia, na Casa de Democracia, nos alojamentos, na Biblioteca Comunitária Paulo Freire- se cria, a cada dia, a convivência entre movimentos sociais, ações coletivas, visitantes ilustres, frequentadores solitários, profissionais da informação, em uma potente reunião de gente do Brasil todo e também do resto do mundo.
Se, por um lado, a ocupação desse espaço é transitória, por outro a sua manutenção depende de um permanente movimento solidário de apoio na presença, no financiamento, na divulgação do que ali acontece – experiências que atualizam o significado de conviver.
As rotinas, dentro da provisoriedade, vão trazendo significados. A criação de um ritual e de um ciclo (o famoso “bom dia, companheiro Lula”; “boa tarde, companheiro Lula”; “boa noite, companheiro Lula”) estabelece uma comunicação direta alternativa com o prisioneiro. Essa comunicação depende apenas das ondas sonoras, de um megafone e da voz e da vontade de quem ali está nesse momento. Sem precisar de autorização de ninguém, essa rotina criativa amplia as vozes nas redes sociais digitais e somos todos desejantes de bons dias, boas tardes e boas noites ao encarcerado.
A organização deste ritual, aparentemente tão simples, exige uma criação cotidiana. Em um sábado, debaixo de uma chuva fina a sete graus, representantes dos movimentos de mulheres do Ceará se encarregaram do bom-dia; o boa-tarde fica a cargo de uma caravana do interior de Santa Catarina; o boa-noite é puxado por um grupo de Guarulhos que está se despedindo do acampamento. Nas três ocasiões, um trompetista toca “Lulalá” – uma outra criação de resistência musical individual que tem inclusive vazado em reportagens ao vivo da mídia oligopólica do país.
Além do acampamento mais conhecido pela mídia, o Marisa Letícia, um tanto dessa gente fica em pequenos alojamentos, nos quais se reveza e se mantém com doações de alimento, de agasalhos e coisas como madeira e prego – que servem, por exemplo, para fazer beliches. Nesses núcleos, muito se conversa – prosas informais, certamente, mas também com temas previamente organizados, com pessoas muito variadas, de todos os cantos.
A mídia livre do país instalou, em uma casa da vizinhança (por meio de financiamento coletivo), um espaço de resistência e criação de um outro jornalismo que se mostra possível. A Casa da Democracia abriga o jornalismo progressista e é um espaço por onde circulam as pessoas e as ideias, com exibição de filmes, debates, entrevistas, depoimentos e coberturas levados a público por canais alternativos à mídia tradicional.
Este breve relato sobre algumas impressões que tivemos durante nossas visitas ao companheiro Lula (ainda que uma centena de metros nos separasse da cela onde ele se encontra como preso político) nos indica que sua prisão – apesar de toda nossa indignação com a injustiça dessa condição – merece ser mais longamente observada também como um movimento de criação de um ponto de encontro e reflexão importante, de trocas e análises, permanências e transitoriedades.
Um lugar em que a vida pulsa e uma inteligência coletiva se põe em funcionamento.
Se você ainda não foi lá, então vá loguinho, antes que acabe.
Por Luciana Salgado, Doutora em Linguística, professora adjunta da UFSCAR, e Teresa Melo, Doutora em Ciências da Comunicação, professora da UFSCAR