Marcos Martins: 13 aprendizados dos 100 dias de Lula preso

A Justiça não é neutra. A imprensa é tendenciosa. Foi golpe e o povo sabe. O Brasil não está isolado do que acontece mundo afora.

Lula Marques/Agência PT

Os cem dias de prisão do Lula foram marcados por intenso tensionamento entre forças políticas, as quais revelaram explicitamente as intencionalidades boas e más – principalmente as mais cruéis – que lhes orientam. Há até certo consenso entre analistas dos mais variados perfis que se está a viver no Brasil um esgarçamento das relações sociais, cujo desfecho é imprevisível e temeroso. É comum, ainda, entre observadores do cenário nacional identificar que esse processo emergiu, na complexidade que o identifica, com as Jornadas de Junho de 2013.

Nessa dinâmica de embates entre sujeitos individuais e coletivos, o ódio tem sido tomado como mediador das relações sociais globais, afetando círculos de amigos, famílias, locais de trabalho, de estudo, a militância, as redes sociais, enfim, todos os ambientes presenciais e digitais. Muitos, inclusive, parece que perderam a vergonha de mostrar a crueldade das concepções de mundo que têm e, assim, por elas orientados, agridem diuturnamente não apenas a Lula, mas o estado democrático de direito e os direitos humanos mais fundamentais em uma civilidade que se quer verdadeiramente democrática.

A prisão de Lula parece ter sido o clímax desse processo, que divide o País e evidencia o distanciamento das possibilidades de construir uma civilidade brasileira “livre, justa e solidária”, como requer o Art. 3º, Inciso I, da Constituição Federal.

Momentos como esse são perigosos, porque se constituem em ninhos perfeitos a gestar a serpente do fascismo, que tem se manifestado no cenário nacional mais claramente desde 2013 e ainda mais nos episódios da prisão de Lula e da manutenção dele no cárcere. De outro modo, contudo, o momento presente possibilita o acesso a uma série de aprendizados também. Destaca-se aqui, sinteticamente, 13 aprendizados relevantes destes 100 dias da prisão de Lula, quais sejam.

1ª aprendizado – a Justiça não é neutra

Se ainda havia alguém iludido com a neutralidade política e ideológica da Justiça, os acontecimentos que marcaram a prisão de Lula e os 100 dias em que ele permanece encarcerado romperam as visões idealizadas e romantizadas sobre os operadores do direito e as instituições jurídicas nacionais. Os tensionamentos vividos colocaram luz sobre os obscuros procedimentos das instâncias jurídicas e dos que nelas atuam. Antes disso, eram pouquíssimos os que acompanhavam e sabiam dos problemas dos encaminhamentos jurídicos, mas hoje é público e notório que as autoridades jurídicas tomam partido e o partido que tomam não é o de Lula. Tanto assim que, para prendê-lo e para mantê-lo encarcerado, uma série de normas legais e procedimentos processuais tiveram que ser burlados para que se garantir o intento de retirá-lo da cena política. Para condená-lo, o Ministério Público, Moro e o TRF4 abusaram da Teoria do Domínio do Fato, ao ponto de o próprio formulador reclamar pelo uso inadequado, e Lula foi condenado sem provas materiais. A propósito, ele foi acusado de uma coisa e condenado por outra; veja-se que é o próprio Moro que disse na página 6 do despacho dos embargos de declaração: “Esse juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”. Por si só isso seria razão para anular o processo, pois Lula foi acusado exatamente de ter vantagens com contratos da Petrobrás. No mais recente pedido de habeas corpus, os procedimentos processuais foram jogados às favas e escandalizou a quebra de hierarquia institucional, com o juiz de Primeira Instância interferindo na Segunda e ainda na Polícia Federal. Por que esse esforço em manter Lula preso? Porque a Justiça não é neutra, haja vista as companhias de Moro em eventos nacionais e internacionais, que são adversárias de Lula.

2ª aprendizado – mesmo não sendo neutra, a Justiça poderia ser mais justa

Se é fato que a Justiça não é neutra, seria possível ser ela mais justa? Obviamente que sim, mas para isso seria preciso aplicar os procedimentos processuais e as normas legais a todos, indistintamente. Não é isso que se observou na prisão de Lula e na manutenção dele no cárcere. É por isso que é mais do que correto considerá-lo como preso político, pois é a circunstância política que o mantém preso, ao arrepio dos procedimentos processuais, das normas legais e de execução penal vigentes no País. A Lula está sendo cerceado de ter acesso ao pleno direito de receber visitas, de dar entrevistas e mesmo de ter acesso a habeas corpus, o que não é negado nem mesmo a notórios estuprados e traficantes condenados.

3ª aprendizado – a imprensa não é neutra

Os editoriais dos grandes jornais – os que ainda sobrevivem! – e os noticiários televisivos têm sido renitentes em se posicionar contra Lula e contra tudo que ele representa de democrático e popular. A TV Globo aberta e fechada assume claramente uma posição política liberal e conservadora, anti-movimentos sociais, anti-esquerda, anti-PT e anti-Lula, e não abre espaço a posições divergentes, mesmo sendo uma concessão pública. Foram muitos os momentos em que, durantes esses 100 dias de prisão de Lula, essa rede de televisão chegou à desfaçatez de manter no ar jornalistas engajados contra Lula, contra o PT e contra tudo o que há de democrático e popular entrevistando a si mesmos, para reforçar os próprios argumentos. Isso também ocorre em espaços de jornalismo que hoje são a negação do que foram outrora, como o Roda Viva, da TV Cultura, que desavergonhadamente, em um desses 100 dias de prisão de Lula, colocou um assessor de Bolsonaro, disfarçado de integrante de uma associação ruralista qualquer, para “entrevistar” a candidata presidente do PCdoB, Manuela D’Ávila, que milita por Lula livre.

4ª aprendizado – mesmo não sendo neutra, a imprensa poderia fazer jornalismo de verdade e não militância política

A marca do bom e verdadeiro jornalismo é a abertura de espaço a opiniões e posições divergentes, para dar ao leitor, ao telespectador ou ao ouvinte a possibilidade de formar a própria opinião. No Brasil atual, contudo, isso não tem acontecido. O direito e a necessidade do contraditório, que deveriam ser a marca do jornalismo de verdade, desapareceu, mesmo em veículos públicos ou de concessão pública. A prisão de Lula e a manutenção dele no cárcere tem evidenciado cada vez mais isso, pois a cada movimento da defesa de Lula, o ataque da imprensa se arma para criar o clima de impossibilidade de sucesso.

5ª aprendizado – o cenário político nacional está fragmentado

As Jornada de Junho de 2013 trouxeram, além do ódio como marca das relações sociais, uma fragmentação política sem precedentes. Isso foi terreno fértil, em outros lugares e momentos históricos, para fazer nascer regimes políticos autoritários e desumanos, como o nazismo e o fascismo. No Brasil não é diferente, daí o perigoso momento que se está a viver. Nessa fragmentação, tanto a direita como a esquerda estão enfrentando enormes dificuldades pré-eleitorais. De fato, a manutenção de Lula no cárcere é indispensável aos que lhe são inimigos, porque Lula livre os ameaça com a enorme capacidade de unificar grande parte da esquerda e atrair setores do centro do espectro político nacional, angariando forças com potencial suficiente para desfazer as neoliberais e TEMERosas reformas. E é justamente por isso que a esquerda deve lutar por Lula livre.

 6ª aprendizado – mesmo fragmentado, é possível identificar no cenário político nacional dois grandes projetos de país

A prisão de Lula e o encarceramento que enfrenta há 100 dias estimularam as forças sociais comprometidas com projetos civilizatórios alternativos ao neoliberalismo a se unificarem em alguma medida, o que consequentemente enfraqueceu a hegemonia alcançada por setores que apoiaram o impeachment e as reformas neoliberais do TEMERoso. De modo que hoje há visivelmente dois grandes setores no espectro político-ideológico nacional em movimento no tabuleiro eleitoral: um de direita, que está abandonando o barco do TEMERoso, mas sem outro para garantir a navegação, e o de esquerda, que se aproxima cada vez mais de Lula e de tudo que ele representa de popular, de democrático, de soberania nacional, de direitos humanos fundamentais, enfim, de uma civilidade “livre, justa e solidária”. Se haviam os que acreditavam que os termos direita e esquerda eram ultrapassados para identificar os posicionamentos políticos-ideológicos, hoje eles são mais do que necessários para e entender o cenário atual.

7ª aprendizado – foi golpe mesmo e o povo sabe disso

É evidente hoje em dia que o impeachment da presidenta Dilma não a tinha como alvo, muito menos a corrupção. Basta ver que Aécio e Temer estão soltos para confirmar essa assertiva. O objetivo do impeachment era Lula e tudo o que ele representa de popular e democrático. A prisão de Lula e o encarceramento por 100 dias, sem acesso a direitos que lhe cabe mesmo que condenado, deixaram claro para a população que foi mesmo um golpe jurídico-midiático e político o que se passou no Brasil e que agora atinge principalmente a população empobrecida. Como seria impossível vencer Lula nas urnas, o golpe foi articulado e implementado para impedi-lo de concorrer às eleições. Daí a Justiça, a mídia e os políticos da direita desesperarem-se com as possibilidades que se abrem a cada pedido de habeas corpus.

8ª aprendizado – foi dado o golpe para destruir os direitos sociais

Lula era o alvo dos que promoveram o impeachment, mas não apenas ele em pessoa e sim o que representa: os direitos sociais, alguns dos quais encarnados em políticas públicas desenvolvidas durante os governos dele e da Dilma. Se um dos operadores do golpe foi o TEMERoso, ninguém pode acusá-lo de não ter tentado fazer em 2 anos o que não se fez em 20: destruir os direitos sociais com as reformas neoliberais que promoveu.

9ª aprendizado – foi dado o golpe para entregar o patrimônio nacional ao capital internacional

Além dos direitos sociais, Lula preso é necessário para que se dê sequência à entrega do patrimônio nacional, que foi enorme nos dois anos do governo TEMERoso, o qual contou com apoio, entre outros, do PSDB. A Petrobrás e a Eletrobrás que o digam.

10ª aprendizado – o golpe só se consolida com Lula preso

Se as eleições são o momento significativo para a definição do futuro do País, Lula está preso justamente para não participar delas. Apenas assim a direita terá o mínimo de possibilidade de rearticular-se em torno de outra figura, que não TEMERosa, para dar sequência à destruição dos direitos sociais e à entrega do patrimônio nacional.

11ª aprendizado – o golpe rearticulou movimentos sociais e partidos de esquerda

Até os adversários de Lula reconhecem nele a capacidade de falar para o povo, de atrair os setores populares e quem os organiza, os movimentos sociais e partidos de esquerda. Estes estavam bastante desarticulados no governo Dilma, sobretudo, depois das primeiras equívocas medidas tomadas no começo do segundo mandato. Mas a prisão de Lula e o encarceramento que sofre, possibilitou certa reaproximação e rearticulação dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda. Basta ver que mesmo setores críticos aos governos de Lula e Dilma, como o PSOL, denunciam hoje a prisão e a manutenção do encarceramento, além de colocarem-se na luta por Lula livre.

12ª aprendizado – o golpe teve as redes sociais como instrumento determinante, mas não são suficiente nem para mantê-lo e nem para desconstrui-lo

Qualquer neófito em análise política é capaz de identificar a relevância das redes sociais para a articulação do golpe que atingiu Lula e que o mantém preso. E também pode conceber a relevância que as redes sociais estão tendo para a desconstrução dos argumentos dos golpistas. Todavia, por si só, as redes sociais são insuficientes para manter golpistas no poder ou para construir outro cenário nacional. Aliado a elas, é necessário à esquerda articular os movimentos de ação direta e as manifestações de rua. Até a direita sabe disso, tanto assim que construiu a estratégia de investir em Think Tanks para não apenas produzir e difundir conhecimentos com vistas a formar opinião ao favor das teses que defende, mas também estimular movimentos de massa e para articular estratégias institucionais ou não, nas ruas ou fora delas, com vistas a produzir reformas sociais neoliberais.

13ª aprendizado – o Brasil não é uma ilha

O que tem acontecido com Lula também se repete, de maneira diferente, em outros países. No Brasil repercutem movimentos golpistas que ocorrem mundo afora, mas pode a nação brasileira interferir neles, dando exemplos sobre como reagir a golpe jurídico-midiático-político com vistas a implantar o neoliberalismo. Daí a necessidade de lutar por Lula livre, pois o Brasil não está isolado do que se passa mundo afora.

Com certeza, outros processos contra Lula virão. Eles já estão na agulha da arma de Moro. Contudo, o que se viu até aqui é que a condenação de Lula e a manutenção dele no cárcere atenta contra o estado democrático de direito, contra os direitos humanos fundamentais e contra qualquer ideia que encarne algo democrático e popular. Daí a necessidade de lutar por Lula livre. Todavia, mesmo Lula preso conseguiu produzir vários aprendizados.

Por Marcos Francisco Martins, Filósofo, professor e coordenador de mestrado da Universidade Federal de São Carlos

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