Margarida Salomão: Mulheres à beira de um ataque de nervos? Não!
A deputada federal avalia: “a capa da IstoÉ não é um ultraje a Dilma individualmente. É um ultraje a todas as mulheres brasileiras “
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Valho-me do título do filme de Pedro Almodóvar, e de seu tratamento fascinado e afetivo do universo feminino, para discutir a balbúrdia em que se transformou o tratamento midiático do discurso político das mulheres.
Dois eventos demarcam este debate: 1. A repugnante capa da “IstoÉ” do último sábado e sua deformação monstruosa do rosto da Presidenta e 2. A performance em transe da advogada Janaina Paschoal, no ato Juristas pelo Impeachment, ontem em frente à Faculdade de Direito da USP.
Há mais de quarenta anos, um clássico dos estudos de gênero, o livro “Language and the Woman’s Place, de Robin Lakoff”, prefigurava o problema agora posto pelo inédito protagonismo das mulheres na cena pública.
Pois é fato que mulheres no poder são mulheres que se deslocam para fora de “seu lugar”. Como lidar com elas? Se adotam o estereótipo feminino clássico (da personagem decorativa e submissa, invisível na sua faina árdua, cuja única aparência pública admissível é ornamental), elas desqualificam-se para cumprir “funções de homem” como seja, o exercício do poder.
Se, por outro lado, aceitam o desafio de se estabelecer num universo predominantemente masculino, em que prevalecem as atitudes consideradas másculas (a assertividade, a competitividade, a casca grossa de quem disputa) desqualificam-se como mulheres. São mulheres de grelo duro, como as chamou o Lula. Duro dilema em que as mulheres sempre perdem.
Aquelas que resistem são desconstituídas em sua identidade: são esquisitas. No limite são bruxas e como tal estão destinadas a fogueira. Se não a combustão física que queimou as feiticeiras condenadas pelos tribunais religiosos da cristandade (católicos ou evangélicos), a queimação de suas reputações. A inviabilização de suas presenças no lugar do poder como desequilibradas e histéricas. Frágeis, ainda na sua expressão de força.
Por isso a capa da “IstoÉ” na sua sanha golpista não é um ultraje a Dilma individualmente. É um ultraje a todas as mulheres brasileiras e a sua reivindicação justíssima e tardia de participação na política.
Num texto lindíssimo de 1990, em que dirigia lições ao próximo milênio, Ítalo Calvino relaciona leveza e privação, ao tratar da “bruxificação” das mulheres: “(…) nas cidades em que a mulher suportava o fardo mais pesado de uma vida de limitações, as bruxas voavam à noite montadas em cabos de vassouras ou em veículos ainda mais leves, como espigas ou palhas de milho. Antes de serem codificadas pelos inquisidores, essas visões fizeram parte do imaginário popular, ou até mesmo, diga-se, da vida real. Vejo uma constante antropológica nesse nexo entre a levitação desejada e a privação sofrida. Tal é o dispositivo antropológico que a literatura perpetua. (…)”.
Neste contexto, como situar a performance de Janaina Paschoal, fazendo girar a bandeira nacional como véu em uma dança exorcista, gritando invectivas ao invés de brandir argumentos, em tudo um contraste chocante com a exortação à razão, martelada pelo discurso apolíneo de José Eduardo Cardozo, poucos momentos antes, na comissão do impeachment?
Não tenho alternativa a não ser condoer-me de Janaina, e de todas nós, postas nesta dura tarefa de construir um discurso público, de legitimação de nossas aspirações à intervenção relevante no universo político.
Janaina, claramente, não aprendeu a falar. Quer ser ouvida no grito por temer não ser escutada a sério. Ao abrir mão do discurso racional, presta-nos a todas um desserviço. Mesmo que seja um sucesso estrondoso no YouTube. Reforça o estigma do histrionismo da expressão feminina, em que o apelo ao acolhimento abandona os trabalhos da razão. Não é assim que queremos reivindicar o nosso lugar.
Mais vale resistir como bruxa e voar: para ganhar perspectiva sobre este terreno conturbado em que se move a jovem democracia brasileira. Que, não pode por indignação ou por impaciência, abrir mão da democracia, da Constituição, das regras do jogo. O lugar das mulheres nesta dura cena é contribuir com as luzes. Abrir o diálogo em que sejam civilizadamente ouvidas todas as vozes. E fazer prevalecer a tolerância, o respeito, a harmonia.
Sem ódio e sem medo, não ao golpe!
Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG)
**Artigo inicialmente publicado no site da Revista Fórum