Misoginia e machismo seguem enraizados na Justiça brasileira
Questões sociais e culturais seguem norteando decisões de magistrados; caso de agressor denunciado por 12 mulheres de estupro choca por decisão favorável ao criminoso
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Recentemente, a 3ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em decisão que chocou a comunidade feminista no Brasil e todas as mulheres. Conforme reportagem do UOL, ao julgar o caso de uma mulher vítima de violência sexual, “os magistrados entenderam que não há estupro caso a vítima não mostre reação física “séria, efetiva” e com “rebeldia” — dizer não, portanto, é insuficiente.”
O réu é proprietário de um bar em Brasília e é acusado de violência sexual contra 12 mulheres, especificamente de estupro de vulnerável.
Em 2020, após uma mulher relatar em uma rede social a violência sofrida, outras vítimas reconheceram o modus operandi do agressor. As 12 vítimas o denunciaram à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher 1 do Distrito Federal. Sete denúncias prescreveram, segundo o UOL.
Ainda de acordo com o portal, o agressor foi denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal e virou réu nos outros cinco casos. Desses, dois já tiveram julgamentos, e ele foi absolvido em ambos. O MP-DF recorreu.
Em um desses julgamentos, ele foi absolvido em primeira instância. O UOL revelou que, durante o julgamento, o magistrado responsável pelo caso perguntou à vítima se ela não considerava normal, em uma relação, tocar no parceiro dormindo para “fazer algum tipo de brincadeira”. “Tocar no seu seio quando ele acordasse”, exemplifica. De acordo com a lei brasileira, pode ser considerado estupro de vulnerável, porque não há possibilidade de resistir. A jovem respondeu que não.
Por mais que haja uma definição clara no Código Penal brasileiro, o que se parece, ao observar os resultados dos casos referidos, é que essa definição depende da interpretação do juiz, que, naquele momento, representava a Justiça brasileira.
Juliana Valente é advogada criminalista, especialista tanto em Direitos Humanos como em atendimento a mulheres em situação de violência. Indagada sobre este caso, Valente afirmou que é difícil falar sobre determinado caso sem ter acesso aos autos, “mas, generalizando o cotidiano do Judiciário, posso dizer que a questão da violência de gênero como um todo é complexa, e principalmente das violências sexuais. Não é incomum vítimas dessa gama de violências serem questionadas quais roupas utilizaram, ou se gritaram o “suficiente”… esse mesmo tipo de indagação não é feita contra uma vítima de roubo ao enfrentar uma delegacia de polícia ou o Judiciário.”
Olhar machista, misógino e patriarcal ainda rege o olhar de alguns juízes
Segundo ela, a falta de condenação em diversos casos de estupro ocorre pelo mesmo motivo que mulheres temem em chegar a delegacia: são questões sociais, culturais e legais. Em suma, a perpetuação de uma agenda sem igualdade de gênero:.
“É incontestável que a cultura do estupro está arraigada em nossa sociedade que tem uma visão misógina e patriarcal, que influencia a forma como a justiça é aplicada, o que pode afetar a imparcialidade dos julgamentos, que desconsideram um viés pela perspectiva de gênero. Casos de violências sexuais são casos mais complexos de serem comprovados, pois ocorrem, geralmente, em ambientes mais reservados e dificilmente tem testemunhas diretas dos fatos, e quando têm geralmente são testemunhas que podem ser consideradas como não isentas como amigos ou familiares.”
Os crimes sexuais estão previstos no Código Penal brasileiro, que data de 1940. Somente em 2009, durante o segundo governo do presidente Lula, 69 anos depois de criação, por meio da Lei 12.015/2009 , é que houve mudança no entendimento de crimes sexuais.
A primeira mudança veio na alteração da do título, onde antes era conhecido por “Dos Crimes Contra os Costumes”, e com a nova redação passou a ser “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”. Isso evidencia o quão patriarcal e machista é a legislação que trata do tema.
A partir da nova lei, pode-se entender por estupro como o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. A pena é reclusão de seis a dez anos.
A criminalista ressalta que a doutrina e a lei falam que ,em casos de violência de gênero, a palavra da vítima deve ter especial valor probatório, mas na prática não é o que ocorre: “Essas vítimas precisam se provar, o machismo faz com que o Judiciário, muitas vezes, busque por uma vítima ideal ou angelical e um estupro tido como o entre aspas também ideal – que é aquele que está nos livros, que uma mulher é pega numa viela escura violentamente por um desconhecido.”
A advogada destaca ainda que, na prática, já há dados que demonstram que a maioria dos casos de estupros ocorrem por abusadores que já conhecem a vítima. Segundo o Anuário de Segurança Pública deste ano, em 2022 houve um aumento de 8,2% nos casos de estupros em comparação a 2021, com 74.930 vítimas, 18.110 estupros e 56.820 estupros de vulnerável.
Ainda com o levantamento, 86,1% das vítimas conheciam o agressor. No caso citado nesta matéria, todas as vítimas conheciam o Mesquita, ou já haviam trabalhado com ele ou mantiveram por algum tempo uma relação.
O viés de gênero ainda é um problema, juízes e delegados podem ter preconceitos inconscientes que afetam suas decisões, favorecendo os homens em detrimento das mulheres. “No caso da denunciante, uma das 12 vítimas do proprietário do bar, foi desconsiderado a ciência por trás do abuso sexual. Já há estudos que demonstram ser o “congelamento” da vítima ou “não reação” fatores comuns em casos de violências de gênero, fundamentações questionando a vestimenta da vítima ou a roupa que estava trajando não cabem”, revela a advogada.
Segundo ela, o que se vê nestes casos é a culpabilização das vítimas por qualquer conduta tida como moralmente condenável e a estrutura machista do Judiciário como um todo.
“Até mesmo da defesa não idônea de alguns acusados de um dos crimes mais graves do Código Penal, que é o estupro, se utilizam de teses desonestas e misóginas. Hoje, há um protocolo com diretrizes para julgamento com perspectiva de gênero a fim de evitar preconceitos, mas vemos que a tese, por exemplo, da “legítima defesa da honra”, que justifica um assassinato misógino pela honra do assassinato, era aceita até, literalmente, mês passado. Então concluo que não há outro motivo senão o machismo e misoginia enraizados na sociedade.”
Da Redação do Elas por Elas, com informações do UOL, JUS e Anuário de Segurança Pública – 2022