Paulo Teixeira: A guerra contra as drogas é uma guerra contra as mulheres
A campanha #AgoraÉQueSãoElas foi um estouro. Terminou com caderno especial no Globo, matéria de capa na Época, análises na Folha, edição especial da Revista Fórum feita integralmente com texto de…
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A campanha #AgoraÉQueSãoElas foi um estouro. Terminou com caderno especial no Globo, matéria de capa na Época, análises na Folha, edição especial da Revista Fórum feita integralmente com texto de mulheres, dezenas e dezenas de espaços ocupados por mulheres ao longo de uma semana de mobilização. Resolvi subverter as regras e manter a campanha por mais um tempinho. Para dizer a verdade, gostei da experiência e vou fazer o possível para continuar publicando autoras queridas, pelo menos esporadicamente.
Quem escreve hoje é a Luciana Boiteux, professora de direito penal e criminologia na UFRJ. Ela traz uma discussão muito oportuna, sobre os efeitos maléficos da guerra às drogas, principalmente contra as mulheres. Esse assunto não pode morrer, tampouco a indignação pode esmorecer. É preciso construir uma nova política nacional de segurança pública, que ponha fim nesses abusos e nessas injustiças. Obrigado, Luciana, pela presença e pela luta. A palavra é sua:
Dentre as várias facetas do machismo, queremos falar de política de drogas. Isso porque os últimos dados do Infopen Mulher (importante realização do Depen) retratam um crescimento vertiginoso do número de mulheres presas no Brasil, que aumentou 567% em 15 anos. Se os homens ainda são a grande maioria dos presos, o número de presos homens cresceu bem menos, 220% no mesmo período. A maioria delas (58%) respondem pelo crime de tráfico de drogas ilícitas (sem considerar os Estados de São Paulo, onde esse número sobe para 72% e do Rio de Janeiro, não computados nesse índice). Dos homens, 23% respondem por tráfico.
Mas quem são elas? Não se conhece nenhuma grande liderança feminina no tráfico de drogas que esteja respondendo por esse crime. A grande maioria das mulheres encarceradas como traficantes exerce papéis irrelevantes e subalternos na estrutura criminosa, é pobre, possivelmente usuária, e foi presa tentando entrar com drogas nos presídios ou transportando pequenas quantidades. Ou seja, não praticou crime violento, mas está encarcerada por longos anos. Dos dados gerais, 35% delas receberam penas entre 4 e 8 anos, 45% em regime fechado.
Os presos e as presas por tráfico no Brasil são majoritariamente os negros e as negras pobres, elos mais frágeis desse circuito extremamente lucrativo do mercado ilícito da droga. Mas o que diferencia as mulheres presas dos homens nessa mesma condição de raça e pobreza?
Pesquisas realizadas em toda a América Latina demonstram que um dos efeitos da política de drogas atual (vide www.drogasyderecho.org) é justamente afetar os mais vulneráveis, as mulheres e as minorias etnico-raciais. No Brasil temos os negros e as negras pobres como alvos fáceis de extermínio e de aprisionamento. A população negra é super-representada no sistema penitenciário brasileiro pois constitui 51% da população em geral e 67% da população encarcerada (os homens negros são 67% e as mulheres negras são 68%, segundo o Infopen Mulher 2014). Verifica-se ainda o processo de feminilização da pobreza, pois a grande maioria dos pobres é de mulheres. Quem está presa por tráfico são as mulheres negras e pobres, e não as brancas, nem as de classe média ou alta.
Dados da América Latina apontam que as presas, em geral, são chefes de família, responsáveis pelo sustento dos filhos. No Brasil, 57% são solteiras, 50% têm até 29 anos, muitas delas com filhos. Quando são encarceradas, para além do conhecido fato de que pouco recebem visitas, são forçosamente afastadas de seus filhos, os quais em sua grande maioria passam a ser criados pelas avós (quando não encaminhados para adoção). O pai quase nunca fica responsável pela guarda das crianças. As mulheres presas têm, em geral, mais tempo de escolaridade do que os homens presos.
As mulheres usuárias também são alvo dessa política de drogas, especialmente se forem pobres, consumidoras de crack ou moradoras de rua, o que as sujeitará a terem o seu filho ou filha retirados de sua guarda para serem adotados. As gestantes também estão sujeitas a essa sina: não só são submetidas a perigosas condições de gravidez na prisão, como, via de regra, são algemadas no parto, quando não dão à luz no camburão (pois o transporte não chega a tempo) ou no próprio presídio (como ocorreu com a presa Barbara, portadora de transtornos mentais e usuária de crack, presa provisória acusada de tráfico de drogas, que deu à luz no Presídio Talavera Bruce no Rio de Janeiro, sozinha, numa solitária). A violência obstétrica encontrada na população em geral ganha efeitos ainda mais perversos quando se volta contra as presas.
São as mulheres o elo mais fraco dessa política de drogas repressiva, autoritária e machista. Elas são estigmatizadas por serem “criminosas”, mas ainda mais por serem “mulheres criminosas”, como bem disse Marina Dias Werneck. Acrescento que elas ainda ousaram violar a lei dos homens, de “combate” ao tráfico de drogas.
O encarceramento de mulheres por tráfico só reforça o patriarcado pois, como dizia a criminóloga feminista Chesney-Lind, a guerra contra as drogas é uma guerra contra mulheres, pois afeta especialmente as mulheres. Para além de aumentar a prisão delas, a guerra às drogas faz ainda com que elas percam seus filhos, assassinados pela polícia (que tem licença para matar), como vimos recentemente no caso do menino Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos de idade no complexo do Alemão, dentre muitos outros meninos e meninas vítimas inocentes dessa guerra. São mulheres como Teresinha de Jesus, mãe de Eduardo, que hoje sofrem com a perda de seus filhos, e que muito lutaram para criá-los, com pouca ou nenhuma ajuda.
Mas qual é a saída? Estaremos fadados a ver crescer ainda mais do que cresceu nos últimos anos o encarceramento de mulheres? Não podemos aceitar isso. Temos que romper essa lógica autoritária e violenta da repressão e do proibicionismo e pensar em alternativas reais de regulação desse mercado, como vêm fazendo outros países, como o Uruguai, e alguns Estados norte-americanos. Somente uma mudança radical nessa política de drogas poderá reduzir os danos desse super-encarceramento que tantos dramas sociais causa em toda a população, mas que afeta, de forma ainda mais cruel, as mulheres.
Vários países estão promovendo mudanças importantes. Nos EUA, além dos quatro Estados que regularam a maconha, o Presidente Barack Obama está reduzindo drasticamente a população carcerária de seu país, por meio da redução de tempo de pena de tráfico e da concessão de indultos. A Costa Rica reduziu as penas impostas a quem ingressar com drogas em penitenciárias, com recorte de gênero visando a proteger as mulheres vulneráveis. Na Bolívia, foram estabelecidos indultos que libertaram do cárcere as grávidas de mais de 24 semanas.
Já passou da hora de nós, mulheres, sermos ouvidas também em relação à necessária mudança da política de drogas brasileira. Infelizmente, somos minoria no Congresso Nacional e também nos eventos que debatem drogas. Esperamos que o STF (com apenas duas mulheres) descriminalize a posse e o cultivo de drogas para uso pessoal por ser questão constitucional e por afetar as mulheres usuárias.
Defendemos um indulto específico que alcance todas as mulheres condenadas a até cinco anos de prisão por tráfico privilegiado (que não é crime hediondo), mas, acima de tudo, clamamos por uma reforma da política atual, que viabilize a legalização da maconha e de outros psicoativos, hoje ilícitos, e pelo fim da guerra às drogas, que nos afeta ainda mais por reforçar o machismo, o autoritarismo e a injustiça.
Essa é apenas uma parte da luta feminista por igualdade, que deve nos mobilizar a todas.
Paulo Teixeira é deputado federal pelo PT-SP