Roberto Amaral: O antipetismo em nome de um moralismo de fancaria
O antipetismo em nome de um moralismo de fancaria – esse que a imprensa e os partidos de oposição destilam – é apenas uma só de suas máscaras, como o moralismo é apenas um disfarce
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A tarefa prioritária, ingente e agônica da esquerda e dos liberais progressistas é esmagar o ovo da serpente antes que a peçonha contamine por completo o corpo social, costurando as bases de um Estado reacionário, conservador, autoritário e, ninguém se engane, protofascista. Assim se vem modificando o caráter da sociedade brasileira, aos poucos mas sistematicamente.
Ele se manifesta sob as mais variadas facetas, no Parlamento e na vida social.
O antipetismo em nome de um moralismo de fancaria – esse que a imprensa e os partidos de oposição destilam – é apenas uma só de suas máscaras, como o moralismo é apenas um disfarce. Pois tudo, fatos e criações, são, tão-só o instrumento de uma tentativa, em marcha desde 2013, ou antes, de implantação, entre nós, de uma clima de violência que lembra (pelos efeitos psicossociais) o fascismo italiano e o nazismo alemão em suas infâncias, envenenando as entranhas de suas sociedades.
Não caminham, ainda, pelas ruas, os camisas pretas, os grupos paramilitares quebrando lojas de judeus e espancando homossexuais, prostitutas, negros e comunistas, mas celerados conspurcam velórios e atacam o Instituto Lula. Ontem, nos anos da ascensão integralista brasileira, os camisas verdes das hordas de Plínio Salgado desfilavam impunes até a tentativa de assassinar o presidente Vargas em um putsch covarde que lembrava e imitava a primeira tentativa hitlerista de tomada do poder (levante de Munique, 1924) pelo golpe de força.
Nos idos brasileiros da repressão militar, grupos de aloprados depredaram no Rio de Janeiro o Teatro Opinião e em São Paulo invadiram o Teatro Ruth Escobar durante montagem de “Roda Viva”? Nos estertores do terrorismo praticaram atentados contra a OAB e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e tentaram o felizmente frustrado massacre do Riocentro. São sempre os mesmos, variam os países, variam as datas e os pretextos mas a ideologia do ódio e a covardia na ação são as mesmas.
Agora, súcias de ululantes bem nutridos, vestidos ou não com a camisa da seleção canarinha, tentam, em todo o país, mediante o amedrontamento físico, interditar, em um hospital da grã-finagem paulistana, nas ruas, nos bares, nos aviões, nos aeroportos, a livre circulação de homens de bem como, Guido Mantega, João Pedro Stédile e, de último, o ministro Patrus Ananias.
Tudo isso está na crônica jornalística. Mesmo em seus momentos mais acres de disputa política, a direita brasileira jamais havia ousado tanto e jamais nossas esquerdas haviam recuado tanto, e jamais os liberais foram tão omissos.
Os primeiros sinais foram dados na abertura dos Jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro (2007), e replicados em Brasília na abertura da Copa das Confederações em 2013. A esquerda não quis ver nem ouvir, fez-se de morta, como se as vaias e as agressões – primeiro a Lula, depois a Dilma – não lhes dissessem respeito e, assim, silente e inerte permaneceu sem qualquer tentativa de compreender as jornadas de 2013 – prenúncio as dificuldades de 2014, que assistiu atônita.
Assim foi entre nós nos idos de 1954 quando a classe média, majoritariamente, e setores liberais da sociedade, populares e mesmo o movimento estudantil, e mesmo setores da esquerda e comunistas sob a liderança de Pestes, abraçaram o cantochão da direita que a todos mobilizou no pedido de renúncia de Getúlio Vargas, quando o alvo, encoberto pela denúncia de um ‘mar de lama’ que jamais existiu, era a política nacionalista do ditador feito presidente democrata. A história não se repete, mas há pontos de contato entre dois momentos históricos tão distintos.
Getúlio também levara a cabo uma campanha presidencial levantando as teses progressistas do nacionalismo e do trabalhismo, mas, para executa-las, montara um ministério reacionário. Era a sua forma de compor com as elites, especialmente paulistas, que sempre lhe foram hostis. Era a velha ilusão da conciliação de classes, que conquistaria Lula tantos anos passados.
Não deu certo com Getúlio como não daria certo com Lula e não está dando certo com Dilma. Atacado pela direita, inconformada com a aliança do trabalhismo com o nacionalismo, viu-se Vargas em 1954 sem o apoio das massas trabalhistas. Essas só foram às ruas – e foram como turba, sem vanguarda – depois do suicídio. E, aí, nada mais havia a ser feito.
Naquela altura como hoje, e como nos preparativos de 1964, a imprensa brasileira, igualmente monolítica e igualmente de forma quase unânime, servia à saturnal dos ódios que envenenava a opinião publica e deixava aturdido o povo, mesmo os trabalhadores – então como agora desassistidos ideologicamente por seus partidos e organizações.
Uma vez mais o governo de centro-esquerda se vê no cume de uma campanha de descrédito presidida pela imprensa, uma vez mais a partir da cantilena moralista. Uma vez mais o governo de centro-esquerda se vê desprotegido no Congresso, onde dominam ora uma oposição ensandecida, ora uma base parlamentar movida a negócios e negociatas e negocinhos a cada votação.
Para não dizer que a história se repete, lembremos que os postos antes ocupados por Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Aliomar Baleeiro e outros de igual calibre é exercido hoje por Paulinho da Força, Jair Bolsonaro, Ronaldo Caiado e Eduardo Cunha – o que apenas diz que o aviltamento da linguagem e dos procedimentos alcançou o mais baixo nível da República.
Uma vez mais, agora como em 1954, as grandes massas não afluem em defesa de seu governo.
Uma vez mais a moralidade é um mero biombo dos grandes interesses em jogo.
Pois o que está em jogo não é a moralização dos costumes – e quem é contra? – nem é só a tentativa de assalto ao mandato legítimo da presidente Dilma. Não é só a destruição do PT e dos demais partidos de esquerda, inclusive daqueles que ainda hoje pensam que passarão incólumes. Não é apenas a destruição de Lula, ainda a maior liderança popular deste país depois de Vargas.
O que está em jogo são os interesses dos trabalhadores, da economia e da soberania nacionais, de defesa ainda mais difícil após eventual derrocada do atual governo. Adiada – até quando ? – a hipótese do impeachment clássico, a oposição põe em prática um novo projeto de golpe, contra o qual nem a base parlamentar do governo – heterogênea e frágil –, nem muito menos sua articulação política parecem preparadas para enfrentar.
A direita, sob a batuta de Eduardo Cunha, faz sua parte, e dessa desconstituição conservadora fazem parte o fim do desarmamento, o fim da demarcação das terras indígenas (fim dos índios?), o fim dos direitos sexuais das mulheres, e a quase legalização do estupro, o fim da pós-graduação pública gratuita.
Este é o golpe.
A destruição do governo Dilma levará de roldão a política de prioridade nas compras estatais aos produtos e bens nacionais, levando consigo, de saída, a indústria naval brasileira. Levará de roldão os projetos sociais, como o Minha casa, Minha vida; o Luz para Todos; como o Bolsa Família. Mudará a política de reajuste do salário-mínimo e, fundamentalmente, a política de transferência de renda.
Será a renúncia ao pré-sal (já caminha o projeto José Serra), será o fim de uma política externa autônoma, com a aliança subserviente e submissa aos interesses dos EUA, será o fim do Mercosul e a retomada da Alca, nossa recolonização, será um torpedo contra os BRICS e uma ameaça às experiências de governos independentes na América do Sul.
Por isso, certa está a Frente Brasil Popular por entender que os erros da atual política econômica – agravados pela crise ética que assolou os governos do PT – não podem servir de argumento para a omissão na defesa do mandato da presidente Dilma, ou, dito por outras palavras, nem a defesa do mandato inviabiliza a crítica à política econômica, nem a crítica à politica econômica inviabiliza a defesa do mandato.
Ao contrário, a defesa do mandato deve ser feita de par com o combate à política recessiva e esse combate deve ter em vista a reaglutinação das forças progressistas de esquerda, com objetivo claro, deter a reação. Para isso é preciso construir uma nova correlação de forças.
Roberto Amaral é cientista político, ex-presidente do PSB, ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004