Yuri Felix: Juízo de Curitiba e o “rigor” processual; confusões e falácias

A sentença de Sergio Moro nada mais é do que uma das mais monstruosas arbitrariedades cometidas no (e pelo) sistema de justiça criminal brasileiro

Lula Marques

Sérgio Moro

Inicialmente, é imperioso destacar a dificuldade de atribuir um nome a esta pequena contribuição, tendo em conta que as inconsistências e impropriedades são férteis e reluzentes quando o assunto é a decisão de primeiro grau proferida na presente ação, onde figura como um dos acusados o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Pois bem, buscando a precisão e o mínimo de rigorosidade, elegeu-se – de forma arbitrária, pois ao menos este subscritor confessa este arbítrio, diferente de outros que protagonizam este malsinado evento da Justiça Federal Criminal – os itens de número 795 e 804 do presente decisum, o que segundo meu juízo já servirá de exemplo das (im)propriedades e (in)consistências. São os que seguem:”795.

Algumas medidas cruciais, porém, foram deixadas de lado, como a necessária alteração da exigência do trânsito em julgado da condenação criminal para início da execução da pena, algo fundamental para a efetividade da Justiça Criminal e que só proveio, mais recentemente, da alteração da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal (no HC 126.292, julgado em 17/02/2016, e nas ADCs 43 e 44, julgadas em 05/10/2016). Isso poderia ter sido promovido pelo Governo Federal por emenda à Constituição ou ele poderia ter agido para tentar antes reverter a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.

E também:

“804. Usualmente, se um subordinado pratica um crime com a ignorância do superior, quando o crime é revelado, o comportamento esperado do superior é a reprovação da conduta e a exigência de que malfeito seja punido. Não se verificou essa espécie de comportamento por parte do ex-Presidente, pelo menos nada além de afirmações genéricas de que os culpados deveriam ser punidos, mas sem qualquer designação específica, como se não houvesse culpados cuja responsabilidade já não houvesse sido determinada, como, no caso, aliás, da Ação Penal 470, com trânsito em julgado. Trata-se de um indício relevante de conivência em relação ao comportamento criminoso dos subordinados e que pode ser considerado como elemento de prova”.

No item 795, naquele momento, o julgador narrava (não se sabe por qual motivo) os feitos do Governo Lula e suas possíveis falhas, com relação a política do sistema de justiça criminal, sendo assim o julgador da presente ação, assevera ter sido uma insuficiência da gestão presidencial, o fato da mesma não ter empregado esforços para que o instituto da Presunção de Inocência fosse flexibilizado já naquela época, dando a entender que não foram empenhados esforços suficientes para o necessário combate a corrupção. Com perdão da crítica, chega a ser risível a argumentação. A pergunta que fica é: Qual a necessidade desta narrativa do ponto de vista decisório? Respondo: Nenhuma! Absolutamente desnecessária.

Por certo, a decisão do HC 126. 292, de 2016, (que mudou a orientação até então consolidada na Corte no HC 84.078, de 2009) para dizer o mínimo, o óbvio, o que não é pouco, feriu além da Constituição da República – art. 5º, LVII – toda a sistemática internacional de Direitos Humanos, tais como, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (art.9º); a Declaração Universal de Direitos do Homem (art. 11); a Convenção Européia de Direitos do Homem (art. 6.2); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2); o Estatuto de Roma (art. 66.1) e, com especial destaque, a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.2).

Enfim, aquilo que o julgador de Curitiba aponta como “algo fundamental para a efetividade da Justiça Criminal“, nada mais é do que uma das mais monstruosas arbitrariedades cometidas no (e pelo) sistema de justiça criminal brasileiro e que em nada contribui para o aperfeiçoamento das instituições democráticas, ou seja, cuida-se de um desserviço ao Estado democrático e constitucional, pondo de lado toda construção histórica e internacional de Direitos Humanos, servindo apenas para o incremento da seletividade e superlotação prisional.

Melhor sorte não carrega o item 804 da sentença condenatória. Antes que perguntem vou dizer, este item trata do tema Ação Penal 470 (Mensalão!!!), pasmem, Mensalão, a pergunta seguinte é: Mas qual a relação, como diria o outro, dos alhos com os bugalhos? Respondo: Nenhuma! Absolutamente desnecessária.

No momento em que o julgador afirma que o ex-presidente disse “nada além de afirmações genéricas de que os culpados deveriam ser punidos” sublinhou seu total desconhecimento a elementar condição, em um processo penal democrático, de que corresponde exclusivamente à parte acusadora – e não a defesa – a carga probatória válida e suficiente para demonstrar a participação do acusado nos fatos a ele imputado, não podendo a defesa ser submetida, de modo algum, a uma “probatio diabólica“, de tal modo que a primeira forma de se garantir a presunção de inocência é o reforço deste axioma, exigindo assim provas válidas e suficientes para que seja possível quebrar o estado de inocência, presente em todas as fases do processo penal. Sendo assim, é flagrantemente inconstitucional a aplicação de quaisquer presunções que possam “ocasionar una inversión de la carga de la prueba con infracción de la presunción de inocencia (STC 105/1988)[2].

Dito de outra forma, o fato de o acusado exercer seus direitos constitucionais e convencionais, afirmando aquilo que deseja e que julga como o mais conveniente ou de alguma forma não colaborar com o órgão acusatório – ou até mesmo com esta nova figura jurídica que é o “juízo acusatório” -, frise-se, de forma alguma pode ser entendida como uma presunção ou mesmo indício de culpa, pois, todos possuem o direito “de ser tratado como inocente“,[3]ou “o derecho que a todo imputado asiste a que se presuma su inocencia hasta tanto no recaiga contra él una sentencia penal firme de condena[4], sendo este, corolário constitucional elementar do processo penal acusatório[5].

Desta arte, somente com estrita obediência aos corolários elementares do Estado de Direito, respeitando institutos como a garantia do direito de silêncio, a proibição de produção de prova contra si e a presunção de inocência, somente assim, poderá se desenvolver o escorreito exercício da jurisdição[6].

Com efeito, o ponto de início do julgamento justo é assegurar a liberdade do sujeito contra os eventuais excessos do poder estatal, o que na lição de QUEIJO, inclui-se “o resguardo contra violência físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração dos delitos, bem como contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações[7].

Cabe destaque que, GIMENO SENDRA[8], entende que caso a sentença penal condenatória esteja fundamentada em uma prova que tenha ferido a proporcionalidade, esta infringirá também o princípio basilar da presunção de inocência e, principalmente, o direito do acusado a um processo que obedeça todas as garantias[9]. É o que se apresenta neste caso que, como dito, um infeliz momento da justiça criminal brasileira.

No mais, quando o Juiz Moro afirma que: “Trata-se de um indício relevante de conivência em relação ao comportamento criminoso dos subordinados e que pode ser considerado como elemento de prova” (g.n.), demonstra total e profundo desconhecimento das diferenças elementares e processuais com relação a fonte, elemento, meio e função da prova no Estado de Direito, requisito este essencial para prolação de uma sentença democraticamente aceitável, afinal, toda e qualquer decisão deve ser proferida mediante provas sob o crivo do contraditório, elemento central no jogo do processo. Esta colocação subverte a formalidade e rigorosidade essenciais, transformando o tópico em mero golpe de cena processualmente sofrível o que é tecnicamente inaceitável e que necessariamente precisa ser reformado para o bem do Estado democrático e constitucional de Direito, é o que se espera desta decisão.

Referências

BINDER, Alberto M..Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani. rev. e apres. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007.

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003.

Notas

[1] Yuri Felix é professor de Direito Penal e ouvidor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).  Foi Presidente da Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP.

[2] GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 109-110.

[3] BINDER, Alberto M..Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani. rev. e apres. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85.

[4] GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 108.

[5] “El derecho a la presunción de inocencia significa, esencialmente, el derecho de todo acusado a ser absuelto si no se ha practicado una mínima prueba válida de cargo, acreditativa de los hechos motivadores de la acusación,desarrollada o constatada y ratificada en el acto del juicio oral, con sujeción a los principios de oralidad, inmediación, contradicción y publicidad”. In: GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 109.

[6] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 84-93.

[7] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 55.

[8] “De conformidad, pues, con la doctrina del TEDH (caso Handyside, S 7 de diciembre de 1976; ‘The Sunday Times’ S 26 de abril de 1979; Sporrong y Lohnroth, S 24 de septiembre de 1982; Bartoldt, S 25 de marzo de 1985) y jurisprudencia del Tribunal Constitucional (SSTC 62/1982, de 15 de octubre, 13/1985, de 31 de enero; 37/1989, de 15 de febrero; 50/1995, de 23 de febrero; 166/1999, de 27 de septiembre; 299/2000, de 11 de diciembre; 138/ 2001, de  10 de junio) pueden extraerse del principio de proporcionalidad, las siguientes notas esenciales: a) todo acto limitativo de un derecho fundamental ha de fundarse y estar previsto (principio de legalidad) en una Ley con rango de Orgánica, pues nuestra Constitución exige que sólo el Poder Legislativo y a través de una Ley con dicho rango (art. 81 CE) pueda autorizar los supuestos en los que, bien el Poder Ejecutivo, bien el Judicial, hayan de limitar alguno de los referidos derechos fundamentales (STC 207/1996); b) ‘toda resolución que limite o restrinja el ejercicio de un derecho fundamental ha de estar motivada‘ (SSTC 62/1982, de 15 de octubre; 37/1989, de 15 de febrero; 85/1994, de 14 de marzo; 181/1995, de 11 de diciembre; 54/1996, de 26 de marzo; 158/1996, de 15 de octubre; 123/1997, de 1 de julio; 236/1999, de 20 de diciembre; 239/1999, de 20 de diciembre, 299/2000, de 11 de diciembre; 47/2000, de 17 de febrero; 202/2001, de 15 de octubre; 138/2001, de 18 de junio; 14/2001, de 29 de enero; y SSTS 23 de junio de 1992, 23 de julio de 2001 -RJ 2001\7297-, 12 de septiembre de 2002 -RJ 2002\8331-, 3 de junio de 2002 -RJ 2002\8792-); c) ha de observarse el cumplimiento del subprincipio de necesidad, conforme al cual ‘las medidas limitadoras habrán de ser necesarias para conseguir el fin perseguido’ por el acto de investigación, fin o interés que habrá de estar constitucionalmente protegido, siendo indispensable la práctica del acto limitativo del derecho fundamental para alcanzar dicha finalidad constitucionalmente protegida (SSTC 13/1985, de 31 de enero; 66/1989, de 17 de abril; 57/1994, de 28 de febrero; 58/1998, de 16 de marzo; 207/1996; 18/1999, de 22 de febrero; 47/2000, de 17 de febrero; 70/2002, de 3 de abril; ATC 177/2001, de 29 de junio; SSTS 8 de marzo de 2004 -RJ 2004\2804-; 12 de septiembre de 2002 -RJ 2002\8331-, 4 de abril de 2002 -RJ 2002\5445-; SAP Guipúzcoa 26 de septiembre de 2003 -ARP 2003\768-; AAP Cádiz 17 de febrero de 2004 -ARP 2004\102); d) ha de existir una adecuación o ‘congruencia entre la medida prevista o aplicada y la procuración de dicho bien constitucionalmente relevante’, y e) la finalidad perseguida por el acto instructorio y lesivo del derecho fundamental no ha de poder alcanzarse, sino mediante dicho acto y no con otro igualmente eficaz, pero no restrictivo del derecho fundamental (subprincipio de la ‘alternativa menos gravosa‘ para el derecho fundamental) o no debe poderse comprobar ‘ex post‘ que el mismo objetivo hubiera podido alcanzarse con un medio no o menos restrictivo del derecho fundamental (BVerfG 30,292-316-, Gössel; SSTC 66/1985, de 23 de mayo; 178/1985, de 19 de diciembre; 19/1988, de 16 de febrero; 37/1989, de 15 de febrero; 215/1994, de 14 de julio; 122/2000, de 16 de mayo; 126/2000, de 16 de mayo; 299/2000, de 11 de diciembre; 169/2001, de 16 de julio; 138/2001, de 10 de junio y SAP Cádiz de 17 de mayo de 1989)”. In: GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 61-62.

[9] GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 62.

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