Alberto L. Kopittke Winogron: A questão ética como elemento estratégico

No 6º Congresso, a questão ética é um dos elementos estratégicos que o partido deve debater, não para amplificar o ataque dos golpistas, mas para dar satisfação aos milhões que confiaram no PT

Paulo Pinto/Agência PT
Tribuna de Debates do PT

La6º Congresso

A questão ética é o grande tema que o PT deveria analisar no seu 6º Congresso do PT. O setor majoritário, responsável pelas opções feitas pelo menos desde 2001, busca explicitamente interditar esse tema afirmando que o “congresso não pode se tornar um tribunal”. Por outro lado, setores da minoria partidária buscam utilizar o tema apenas como elemento de disputa interna, utilizando elementos superficiais para explicar as causas dos acontecimentos. O futuro do partido depende que se consiga produzir uma efetiva reflexão coletiva capaz de modificar completamente as concepções e estruturas internas, por onde se permitiu o envolvimento estrutural do partido com as piores práticas da política brasileira.

Se não fizer essa reflexão e continuar fugindo da verdadeira reflexão autocrítica que deve fazer, utilizando subterfúgios retóricos como a explicação de que tudo não passa de artifício golpista, o PT corre o risco de não dar nenhuma resposta aos vastos setores sociais que já apoiaram o partido.

No 6º Congresso, a questão ética é o tema estratégico mais relevante que o partido deve debater, não para amplificar o ataque dos golpistas, mas para dar satisfação aos milhões de brasileiros e brasileiras que confiaram no PT durante décadas e depositaram no partido a sua esperança para modificar a cultura política do país e hoje se encontram frustrados.

Abordar este tema com transparência e com a profundidade que ele merece é chave para que o partido retome a iniciativa política e retomar o diálogo com vastos setores da sociedade que foram cooptados pelo bloco político que se uniu para derrubar o PT do governo e que hipocritamente novamente se utilizou do tema da ética para dar um golpe de Estado, como já havia feito nos anos 50 e 60 para derrubar Getúlio e o Getulismo.

Mas não é pelo fato de a questão ética ser utilizada por setores nacionais e internacionais para provocar um golpe de Estado que o PT e a esquerda não devam realizar uma profunda reflexão sobre o tema e incorporá-lo como um tema central de sua estratégia.

O PT só conseguirá fazer a denúncia sobre a parcialidade da Lava Jato e dos órgãos de investigação e do Judiciário, se realmente não fugir da realidade inaceitável de que dirigentes do partido se utilizaram dos espaços de poder e se apropriaram de forma privada de recursos públicos e, mais, que o partido introjetou práticas inaceitáveis para dentro de sua vida interna.

Para avançar nesse tema, a justiça de transição pode auxiliar o partido a implementar mudanças internas que consigam modificar as práticas cometidas e evitar que elas se repitam. Os mecanismos de justiça de transição (responsabilização, memória e verdade, reparação e reforma das instituições), têm sido utilizados para provocar mudanças culturais profundas nas tradições sociais das nações onde ocorreram graves violações aos direitos humanos e evitar que o assunto seja esquecido ou justificado por algum discurso legitimador.

Se por um lado a punição individual não é suficiente, por outro ela é condição fundamental para que se avance para uma reflexão coletiva. Apenas com a aplicação de mecanismos de responsabilização, memória e verdade e reforma organizacional, o PT pode avançar na sua cultura interna e dar os primeiros passos para que que os graves erros não venham a se repetir.

Para conseguir realmente provocar uma profunda mudança interna, o PT precisa reconhecer duas grandes dimensões sobre o problema da corrupção, ambas da mesma gravidade e que precisam ser enfrentadas de forma específica: uma dimensão coletiva da corrupção, que foi utilizada para impulsionar a ação política coletiva, e uma ação individual, voltada para o enriquecimento privado.

A dimensão coletiva da corrupção

Na justiça de transição, o reconhecimento de que houve uma aceitação coletiva, mais ou menos explícita das violações de direitos, é um elemento fundamental para se garantir a não repetição. Não basta culpar determinados governantes pelas atrocidades cometidas. A sociedade, enquanto sujeito coletivo, poderia e deveria ter feito mais para garantir que determinadas práticas não ocorressem, mas não o fez.

Na maioria das vezes, a instauração de determinado “regime” teve o apoio de grupos majoritários, ou então o conjunto da sociedade, mesmo aqueles que não apoiaram determinadas ações, não foram fortes o suficiente para evitar que tais práticas se tornassem usuais. O discurso de que determinada prática antiética foi responsabilidade apenas de determinados indivíduos, ou então de determinados grupos políticos, não é suficiente para que se enraíze a incorporação de determinados valores universais e se evite violações, como é o caso da corrupção.

É nessa dimensão coletiva que a ética deve se tornar elemento principiológico substancial e não apenas formal de determinada organização política ou sociedade. Nessa perspectiva não basta que os atos praticados estejam dentro das formalidades legalmente exigidas (como no caso das doações imorais devidamente registradas), eles devem estar profundamente motivados e balizados por valores mais amplos do que a mera finalidade de curto prazo que almejam.
No nível coletivo do PT, houve paulatinamente uma aceitação silenciosa do inaceitável.

De uma forma milagrosa, a estrutura política do partido passou a dar sinais de enriquecimento e empoderamento que não condiziam com relações sociais históricas. Recursos nunca antes imaginados começaram a abastecer a estrutura interna e potencializar a ação política dos mais variados setores, rapidamente modificando padrões de comportamento.
Mas aquilo que era sinal de poder, mostrou-se sinal de nossa pobreza ética.

A desculpa de que “essas eram as regras do jogo da política no Brasil” e que somente assim o PT poderia acumular forças para implementar um projeto de transformação no país, se tornaram a justificativa rotineira do injustificável.
Nessa perspectiva, antes de se identificar “culpados” individuais, é fundamental que seja encarada de forma franca e pública a responsabilidade coletiva, de todos os grandes grupos internos do partido. Mesmo aqueles que fizeram a crítica interna, não acionaram os mecanismos jurídicos para impedir práticas que tinham conhecimento e mantiveram o silêncio em nome de uma pretensa fidelidade coletiva.

Por mais difícil que seja, precisamos reconhecer que houve um silêncio coletivo sobre práticas em que, se é verdade que a imensa maioria dos militantes não tinha conhecimento, os seus sinais eram muitas vezes visíveis e presumíveis. Para poder mudar, é preciso que o PT assuma que introjetou as regras tradicionais do jogo da política brasileira, incorporando os modelos de financiamento irregular e imoral de campanha como uma prática cotidiana.

Para sobreviver ao aumento da “intensidade” da disputa política interna, cada grupo procurou formas de garantir sua força. Em muitos momentos, a disputa de bastidores por espaços de governo, não era para aplicar determinado programa, mas sim para assumir espaços de poder que dessem capacidade de produzir as famosas “relações”.

Em nome da defesa de um projeto coletivo, todos, de alguma forma ou outra silenciamos, mesmo os que criticaram ou não aceitaram beneficiar-se na sua ação política poderíamos ter feito mais para denunciar os sinais de corrupção que eram evidentes.

A superação dessa dimensão exige um profundo repensar interno e uma completa reformulação organizativa para garantir que essa situação não venha a se repetir no futuro.

As tentativas formais de criar e fortalecer mecanismos de controle interno, feitas no 4º Congresso, como a criação do Código de Ética não tiveram nenhum efeito prático, pois os mecanismos jurídicos de controle interno continuaram subsumidos às relações internas de poder e até hoje não foram utilizados para punir nenhum grande dirigente que tenha praticado atos de corrupção.

Nessa perspectiva coletiva, refletir sobre a questão ética é refletir profundamente sobre a forma de organização política do PT. O formato vertical e de ambientes internos ocupados por uma burocracia partidária, que foi fundamental para o sucesso da experiência do PT como um Partido político orgânico, já não é compatível com as novas energias sociais colaborativas e horizontais que brotam das novas formas de organização social e exigem outros padrões de transparência e ação política efetivamente coletiva.

Nem mesmo a mudança do modelo de eleição interna, embora relevante, é efetivamente suficiente. Uma democracia interna que se restringe a um modelo de representatividade formal, voltado apenas para eleições de dirigentes, já não é mais suficiente para os novos anseios democráticos que brotam das novas forças sociais. Uma efetiva revolução ético-organizativa pressupõe muito mais do que a mudança formal de normas, mas sim a efetiva horizontalização dos processos de tomada de decisão.

Se quiser mudar, o PT precisa aprender com organizações políticas e sociais que hoje utilizam plataformas digitais de consulta permanente aos seus membros, com efetivo poder de vinculação sobre as decisões partidárias e de suas bancadas legislativas, além de implementar efetivamente processos de financiamento coletivo e primárias abertas abertas à sociedade, entre outras medidas.

Embora a política não se confunda com a ética, com a moral ou com o direito, e seja inerente dela as vicissitudes das relações humanas, a organização política do século 21 deve primar por fazer a portas fechadas apenas aquilo que possa ser compartilhado na praça pública. Embora a existência de uma direção forte e com efetiva capacidade de ação política continue a ser um elemento fundamental, essa direção não pode se considerar acima da “base” partidária, e apenas ela detentora de um conjunto de informações que a autorize a fazer “acordos secretos”.

A força política de uma organização transformadora deve sempre brotar das ruas, da transparência e da luta pela distribuição pública dos recursos públicos. Mais do que o crime formal de corrupção previsto na legislação penal, o PT precisa admitir que passou a utilizar o fisiologismo como método de governabilidade política, o que pressupõe relações de privatização dos espaços públicos e é em si uma forma de violação ética.

Apenas um novo modelo organizativo, baseado num sistema de financiamento social e coletivo e com efetivos mecanismos de decisão colaborativa, pode modificar as práticas internas e reconstruir a legitimidade social do PT, não como máquina eleitoral, mas como efetiva força de transformação social.

As pessoas somente colaborarão se puderem efetivamente influenciar nas decisões, não apenas elegendo direções, mas participando elas mesmas dos processos mais difíceis de tomada de decisão política.

Somente o reconhecimento público e coletivo dos erros e uma remodelação interna profunda da sua estrutura organizativa pode demonstrar que o PT efetivamente está disposto a aprender algo com o que aconteceu.

A dimensão individual da corrupção

Na Justiça de Transição a responsabilização individual das pessoas que executaram práticas de violação, embora não seja suficiente, é fundamental para que ocorra uma efetiva mudança cultural e as práticas não se repitam. Do contrário, esses comportamentos continuam presentes, mesmo que de forma latente por longos anos e na primeira oportunidade voltam novamente a se manifestar, uma vez que ficam introjetados nas tradições mais profundas da sociedade ou das organizações.

Um ambiente interno fechado e verticalizado, com as característica que apontamos acima abriu espaço e impulsionou as práticas individuais de corrupção, inclusive por parte de lideranças históricas que tiveram um papel de grande relevância na luta política do país e na formação do partido.

Porém, nem a cultura vigente do país, nem a trajetória pessoal, nem o fato de estarem sendo julgados por tribunais claramente parciais eximem essas pessoas do fato de que elas utilizaram os espaços de poder construídos coletivamente para desviar recursos públicos em benefício pessoal.

Enquanto não responsabilizarmos individualmente as pessoas que cometeram atos comprovadamente ilegais, continuaremos convivendo internamente com a impunidade e o espaço aberto para a reprodução dessas práticas.
É importante lembrar que responsabilização não é sinônimo de defenestração, como bradam os defensores do punitivismo. Trata-se do fato de reconhecer a responsabilidade individual e realizar a imputação de responsabilidade na medida do quanto o comportamento desse pessoal colocou em risco determinado bem jurídico, no caso concreto, a ética pública e a ética partidária.

A negação esquerdista

Para que se consiga aprofundar a introjeção da ética enquanto elemento programático central, é fundamental que se caia no outro extremo do debate: a negação esquerdista do problema da corrupção. Nessa concepção todos os problemas da ética se devem ao fato de que o partido aceitou constituir alianças com a burguesia nacional.

Nessa concepção tradicional, o fato de defender os interesses das classes trabalhadoras e uma “verdade histórica” traz duas consequências: transforma os dirigentes partidários em portadores de uma moral superior (“a nossa moral”), que os autoriza a tomada de decisões fora das balizas da legalidade e ao mesmo tempo cria o mito da pureza, que exige o isolamento entre iguais a fim de que se evite a contaminação com os valores burgueses, os quais seriam a raiz de todos os males morais.

Como a história já nos mostrou, essa concepção filosófica sobre a racionalidade, é produtora de imensas deturpações e barbáries históricas. A questão ética vai muito além do próprio programa partidário, sendo uma baliza principiológica junto com outros direitos como a liberdade e a democracia.

Um dos grandes avanços históricos que o PT representou no início dos anos 1980, com os partidos comunistas, foi superar a flexibilidade entre meios e fins. Desde sua fundação, o partido definiu que a construção dos fins deve ser feita com meios que carreguem em si os valores almejados para uma futura sociedade mais justa.

Uma das portas abertas que podem ter ocasionado a tragédia da corrupção interna foi exatamente o partido não ter aprofundado essa dimensão ideológica/filosófica que está na origem de sua formação.

É nessa mesma tradição que alguns companheiros, acreditando que estavam construído uma experiência histórica transformadora para a vida de milhões de pessoas (os fins), podem ter encontrado justificativa psicológica para meios não éticos, tanto ao nível da ação política coletiva, o fazer político, quanto para a apropriação privada dos recursos.

CONCLUSÃO

Enfrentar de forma franca e pública o cometimento de um erro grave nunca é uma tarefa simples. Mas somente dessa forma é que podemos mudar nosso pensamento e nossas práticas e somos capazes de evoluir enquanto indivíduos que vivem em comunidade.

Em meio a um violento ataque contra todas as formas de organização e pensamento humanista e socialmente transformador no Brasil, essa situação se torna ainda mais difícil. Mas nem por isso menos importante e talvez até mesmo por isso, ainda mais relevante.

O PT não pode sair dessa crise sem realizar aprendizados substanciais e mostrar para vastos grupos sociais que durante anos lhe apoiaram, que esse aprendizado é profundo e sincero.

É equivocada a ideia de “volta ao passado”, quando o partido seria puro. Somente depois do exercício do Poder é que se pode perceber os limites da cultura e da organização interna, cometer erros e com eles aprender.

Novas forças sociais transformadoras estão nascendo nas ruas. A necessidade de uma organização política que seja capaz de unificar as diversas partes dessas vozes fragmentadas que lutam contra as injustiças e os preconceitos. Mas o PT somente conseguirá restabelecer um diálogo efetivo com essas novas vozes se elas perceberem que a sua voz terá efetivo poder de decisão nos rumos internos e se o financiamento da ação política for coletivo e totalmente transparente. Enfim, se a ética pública e coletiva se tornar efetivamente um elemento estratégico central do programa, da organização, dos princípios e da prática dos seus membros.

Do contrário, se o PT não tiver capacidade de reescrever a si próprio, ele corre o risco de se tornar apenas um belo capítulo da história brasileira e perder a capacidade de continuar reescrevendo o futuro.

Alberto L. Kopittke Winogron, filiado ao PT e ex-secretário de Segurança Pública de Canoas, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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