Religião e Fé: Especialista avalia comportamento das igrejas diante da epidemia

A pesquisadora Rafaela Marques analisa a repercussão do COVID-19 nas redes religiosas

Pastor coreano pede perdão por ter negligenciado orientações sanitárias

Da Redação, Agência Todas

Uma das imagens que marcaram a semana foi o pedido de perdão do pastor  coreano Lee Man-hee, que não apenas não seguiu as orientações das autoridades em relação à contenção do COVID-19, como escondeu que a sua igreja era um foco de contaminação. Aqui no Brasil, as lideranças religiosas ainda possuem posicionamentos diversos em relação a manter ou não as igrejas abertas e realizar ou não celebrações coletivas. Vídeos de pastores, postagens, declarações difusas sobre os procedimentos a serem tomados inundam as redes sociais.

Em um cenário de ascensão do poder de influência dos evangélicos no Brasil, conversamos com a especialista Rafaela Marques, mestre em Estudos Culturais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião da UFF (LePar). Ela é autora da dissertação “Um embate entre Marcelos: uma análise das interfaces entre política, mídia e religião nas eleições 2016 no Rio de Janeiro”.

Rafaela Marques, mestre em Estudos Culturais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião da UFF (LePar)

 

Rafaela realizou uma análise sobre os conteúdos que vêm circulando sobre o COVID-19 nas redes ligadas às religiões, principalmente evangélicas. “Hoje, no Brasil, o pluralismo religioso está crescendo aceleradamente. Durante séculos, o catolicismo era a ampla maioria. Essa nova composição do perfil religioso é muito diversa, de modo que também estamos observando as lideranças religiosas reagirem de modos diversos. Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, se colocou em posição de enfrentamento às autoridades estaduais, inclusive judicializando a questão e contestando decreto assinado por Wilson Witzel (PSC), governador do Rio. Agora, voltou atrás e decidiu suspender os cultos”, aponta Rafaela.  

 

Silas Malafaia em vídeo publicado nas redes sociais. Pastor voltou atrás na decisão.

 

“Mas também existem iniciativas positivas, e acredito que elas sejam maioria. A Igreja Betesda de São Paulo deu uma aula de cidadania e cedeu seu templo com capacidade de 2.300 lugares para que as autoridades instalem ali centros de triagem ou um hospital de campanha”, complementa.

A pesquisadora explica que antes de olhar para o comportamento de uma denominação ou igreja específica, é preciso entender que a demanda pelo sagrado é própria da natureza humana, independente do exercício de fé em uma comunidade religiosa e da vinculação a uma institucionalidade. Mas, exatamente por esta razão, as igrejas entendem as suas atividades como essenciais, já que oferecem conforto espiritual nas horas de crise. 

 

Distanciamento social X exercício da fé em comunidade 

 

Com a recomendação das autoridades de reclusão social e distanciamento das pessoas, as igrejas vão ter que encontrar formas de manter as suas comunidades de fé unidas. A pesquisadora explica que os estudos que analisam as práticas de fé nas periferias relacionam a expansão do pentecostalismo com a formação de de laços sociais muito importantes para o enfrentamento das condições de exclusão e precariedade que marcam a vida nessas regiões. 

“A adesão às igrejas possibilita às pessoas o acesso a uma rede de apoio para a vida em comunidade. Os fiéis se ajudam, e isso é importante principalmente porque nos contextos de pobreza, essa é uma forma de fortalecimento individual que depende da ação em coletividade. A cara do pentecostalismo no Brasil é de mulheres negras, que são muito numerosas nesse segmento, e que representam um grupo social com acesso muito dificultado às políticas públicas. A comunidade da igreja, então, ajuda muito ficando com as crianças, os filhos, indicando oportunidades de emprego, etc. Isso também revela uma articulação importante entre a base teológica do pentecostalismo e a vida material. Há uma diferenciação doutrinária com outros tipos de protestantismo. No pentecostalismo isso é mais forte, porque segundo as interpretações das escrituras, a unidade da fé requer a unidade do Espírito, e a atuação cooperativa da comunidade”, afirma Rafaela. 

O pentecostalismo é o ramo do protestantismo que mais cresce no Brasil e se caracteriza, entre outras coisas, pela crença no poder de Deus em curar enfermidades físicas e espirituais. Diante do estado de crise deflagrado pelo COVID-19, tende a crescer a busca por exortações que ofereçam conforto psicológico e espiritual acionando essa chave. Em outras palavras, a Cura é uma chave teológica de um dogma que alicerça, em certa medida, uma grande corrente do pentecostalismo. “A crença na cura do poder de Deus, no poder sobrenatural da fé, isso é muito característico”, aponta Marques.

Por isso, de acordo com a pesquisadora, essas medidas de contenção afetam um ponto nevrálgico da existência das igrejas e de todas as experiências coletivas na relação com o sagrado, porque, cada uma a seu modo, as diferentes religiões interpretam a enfermidade como algo que também pode ser resolvido a partir de ritos e práticas espirituais coletivas. Determinadas comunidades indígenas, por exemplo, possuem vivências coletivas com  administração de princípios ativos de plantas e consumo de substâncias. Religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, também possuem forte enraizamento na experiência coletiva e no contato com o outro. Ou seja, a experiência com o sagrado pode ser individual: quando a pessoa se ajoelha, ora, acende uma vela, um incenso, se coloca em reclusão, incorpora uma entidade, canta. Mas, do ponto de vista social, é inescapável que o ser humano é um ser gregário, e isso se relaciona à gênese das religiões. 

 

“A reclusão social prolongada restringe a possibilidade das pessoas exercerem práticas de fé consoantes com aquilo que elas acreditam. A religião é uma demanda legítima das pessoas e por isso não deve ser analisada apenas sob a perspectiva da institucionalidade”, explica Marques.

 

Religião, cura e política no Brasil

 

Nas últimas semanas, repercutiu a postura dos líderes Edir Macedo (Universal do Reino de Deus) e Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo). Ambos foram na contramão das recomendações do Ministério da Saúde, de autoridades internacionais e dos dados científicos até agora conhecidos sobre o COVID-19. Edir Macedo, por exemplo, publicou um vídeo em que reproduz trechos da fala de um médico da Unifesp, com informações incorretas sobre o coronavírus. O conteúdo já havia sido contestado por outros médicos. 

Na análise de Rafaela, essas disputas resguardam outras dimensões da vida pública. Segundo a especialista, as disputas eleitorais também fazem parte do cenário: “Malafaia, por exemplo, é um líder religioso com um ativismo político forte, declara voto publicamente há anos, e sua igreja não fez parte da articulação que elegeu Wilson Witzel em 2018. Os rebatimentos das alianças políticas aparecem quando, por exemplo, ele manifesta descontentamento com o executivo estadual. Obviamente, essa não é a única camada de análise possível, mas não deve ser desprezada”. 

A disposição de enfrentamento manifestada por Silas Malafaia é um indicativo claro, segundo a pesquisadora, sobre o grau de empoderamento do segmento evangélico na política e na sociedade brasileiras. No entanto, ela reforça que, apesar do papel preponderante que estes grupos têm assumido no governo Bolsonaro, essas forças não constituem um campo monolítico. Portanto, é previsível que as correntes possuam posicionamentos divergentes. 

Por fim, Rafaela reforça a importância não confundir a posição dos líderes com as práticas dos fiéis. “Nas nossas pesquisas, observamos que as pessoas têm agência própria. As coisas não são tão simples quanto podem parecer. Os fiéis não são assim facilmente manipuláveis como muitos fazem crer. Na questão do coronavírus, há farta oferta de informação nas TVs, na internet, nos jornais”, levanta a pesquisadora. Segundo ela, as posturas dos líderes devem ser entendidas como posições de instituições, não como um pensamento partilhado por  evangélicos no geral, nem mesmo quanto aos fiéis dessas igrejas. 

 

“As pessoas não constroem sua subjetividade apenas nas igrejas — elas são afetadas por vivências pessoais, pelo grau de escolaridade, pela classe social, raça e gênero. Além disso, partilham das experiências do mundo do trabalho, dividem o dia-a-dia com família e amigos, etc. As experiências são radicalmente diferentes”, finaliza. 

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