A síndrome de Sinhá: fragilidade branca elevada à (pre)potência

O sentimento de superioridade nutrido no âmago da branquitude, consciente ou inconscientemente, está cravado na sua memória ancestral

Wikicommons

Imagem do Brasil escravagista de 1860

Na esfera das relações raciais que se desenrolam em uma sociedade marcada pelo racismo como sistema de dominação e opressão, há entraves que, quando não entendidos e combatidos, perpetuam as práticas que alimentam as desigualdades. Quando criticamos as condições sociais o intento é trazer caminhos que levem ao equilíbrio social e à ruptura do padrão excludente que vigora em nossa sociedade e que transformam direitos em privilégios, uma vez que não são distribuídos de maneira justa e homogênea entre todas as camadas sociais.

Pois bem, um desses entraves podemos seguramente chamar de Síndrome de Sinhô/Sinhá, que acomete pessoas brancas de ambos os gêneros. É a continuidade do comportamento e pensamento colonial que habita no cerne emocional das pessoas brancas, alimentando sua noção de supremacia, de superioridade humana, herdada quase que geneticamente de seus antepassados violentos e gananciosos. Esse comportamento fomenta a reprodução de ações contraditórias que mostram claramente que há uma questão entendida pelo raciocínio, no caso o desejo de não ser racista, mas não pelo emocional, que domina o impulso inconsciente de extravasar a postura supremacista.

Os mais atentos ou os que estão em processo sincero de entendimento e questionamento das relações raciais no Brasil, enxergam de longe essa prática. Alerto que nem sempre é consciente, é verdade. Mas não ter consciência da reprodução de um comportamento pode ser sinal de desinteresse ou pouca autocrítica na resolução das sombras humanas que precisamos trabalhar, isso em todo e qualquer assunto. Aliás, ainda que estejamos tratando de uma questão política, pois o racismo é uma disputa política pela hegemonia branca do poder, penso cada vez mais que observar nossas sombras humanas também é necessário nesse processo, afinal, uma das práticas mais bem-sucedidas do racismo é a projeção daquilo que a branquitude rejeita (em si mesma e no mundo que a cerca) em cima do outro, nesse caso, negritude e indígenas, dois grupos cuja trajetória social é terrivelmente atrasada pela desigualdade racial (Kilomba, 2015). A branquitude precisa identificar o que rejeita em si mesma e o quanto isso é nocivo a ponto de projetar no outro a sua incapacidade de lidar com suas amarras emocionais. Isto posto, voltemos à reflexão que direciona o texto.

Esse sentimento de superioridade nutrido no âmago da personalidade social da branquitude, consciente ou inconscientemente, está cravado na sua memória ancestral.

E a ancestralidade branca é bastante comprometida por maldades e covardias direcionadas aos povos africanos em situação de escravidão. A prática colonial de dominação se estabelecia para além da restrição do espaço físico, representado pela senzala. Podemos afirmar que criou-se uma estratégia de confinamento mental das pessoas negras, uma senzala emocional, onde a força do açoite era o instrumento utilizado para inibir e coagir qualquer mobilidade, também do pensamento. Partindo do princípio da projeção das sombras brancas nas existências negras, o mecanismo complementar era se enxergar como alguém biologicamente superior, com mais capacidade e mais merecimento que o seu “outro” projetado. Ou seja, desumaniza-se sujeitos negros para poder crer que a superioridade branca é real e legítima.

Essa mentalidade jamais foi questionada e segue sendo o motor das relações raciais no Brasil.

Como isso se manifesta em um país onde o mito da democracia racial criou ao menos três gerações de pessoas brancas encobrindo, até de si mesmas, essas ilusões de superioridade e uma geração de descendentes de africanos escravizados que, grosso modo, de alguma forma e em algum momento acabaram sendo convencidos de que essa “superioridade” existia.

Bem, nenhum brasileiro/a se pensa como racista, ainda que o racismo esteja por trás das estatísticas que apontam um plano de extermínio físico da população negra no país e que, ao colocarmos esses dados pesquisados e comprovados nas mesas de discussão, a grande maioria de pessoas brancas que ocupam espaços de poder e decisão negam que pretos morrem mais nas mãos da polícia do que brancos.

Mas ainda assim, existem aquelas pessoas brancas que pensam no racismo como um elemento do âmbito da moralidade e se sentem responsáveis em algum nível, por mais que precário status social que a população negra vivencia, sendo maioria absoluta em todos os índices de vulnerabilidade social.

Esses se propõem a lutar contra o racismo, gritam palavras de ordem, se colocam como “aliados na luta”( o que por si só já é difícil, já que os seus privilégios são o alvo da luta…). E óbvio que muitos têm a intenção real de acabar com esse problema social, até porque suas inteligências já os fizeram concluir que os efeitos das desigualdades não são unilaterais, ao contrário, em menor ou maior escala, atinge a todos. Mas esses aliados, em geral, não se questionam, não se auto-analisam, não fazem a autocrítica de suas ações, necessária para entender onde exatamente ele se encaixa na estrutura que não criou, mas se vale dos privilégios que ela construiu para pessoas com as suas características humanas.

Já disse em outro texto que, racismo também molda os afetos, também molda as manifestações emocionais e se expressa através da repulsa e/ou da limitação nas manifestações de admiração e amizade entre pessoas brancas e negras. Qualquer crítica que parta de uma pessoa negra, qualquer manifestação de autonomia, seja de ideias, seja de comportamento ou mobilidade social, são tomadas por esses aliados como uma ofensa mortal, que denuncia o sentimento ancestral de superioridade guardado nos quartos escuros da alma.

Desencadeia-se aí um conflito onde a negritude sempre sai perdendo, porque a branquitude age em um movimento de união silenciosa para a defesa da hegemonia social, a proteção aguerrida de sua posição de privilégios. Os comportamentos visíveis são de boicote sistemático a toda e qualquer iniciativa de sobrevivência de pessoas negras, perseguições e difamações agressivas/passivas, silenciamentos, apagamentos, acusações de levianas ou de linchamento direcionado a pessoas brancas (que é uma releitura das vozes dos sinhôs e sinhás do passado que dizia que a negritude não é civilizada!), a prática acirrada do negro único (que acende animosidades dentro do grupo de pessoas negras que colocam a culpa nesse negro único) ou ainda alimentando animosidade entre pessoas negras, atribuindo àquelas que estão em luta, a culpa pelos estragos causados pela supremacia branca na vida dessas pessoas negras (como vemos agora as baianas participantes da festa colonial culpando ativistas pela punição e perseguição de pessoas brancas a elas, sendo que isso não passa de represália branca para a revolta negra), entre outras práticas tão violentas quanto silenciosas que, na maioria dos casos, deixa a negritude rendida, sem ter como se defender.

Isso é motivado pelo sentimento de superioridade aliado à luta pela manutenção de privilégios sociais, os quais são a expressão das vozes ancestrais da branquitude que não foi questionada pelas pessoas brancas que vivem na contemporaneidade. Você, querido leitor, não precisa investigar muito para ouvir uma pessoa negra contando casos assombrosos da ação de pessoas brancas tomadas pela síndrome de sinhá/sinhô. Muitas vezes, tem requintes de crueldade tão danosos quanto os antigos açoites físicos, impostos aos negros em situação de escravidão. Doem na alma, adoecem e fragilizam o emocional da pessoa negra e enfraquece sua autoestima de maneira tão certeira, que ela passa a duvidar das próprias capacidades ou se sentir culpada por ter estar “maltratando” aliados brancos que só querem ajudar.

E claro, não podemos deixar de apontar a participação consciente de alguns negros nessas práticas. As vezes não é intencional, as vezes é, mas sempre é extremamente prejudicial para ele mesmo e para as relações raciais, impedindo o equilíbrio social que tanto precisamos.

Recentemente, por questões de incompatibilidade de agenda, tive que recusar um convite de uma mulher branca muito influente. Expliquei com todo carinho o porquê da minha negativa, embora soubesse que não era minha obrigação, pois eu posso dizer não quando não tiver vontade de participar de alguma coisa, é minha liberdade e autonomia pessoal sendo exercida. Mas a negativa acendeu a síndrome de sinhá dessa pessoa, que passou a me boicotar em eventos, deixou de interagir pelas redes e passou a jogar indiretas se referindo a mim como “diva de internet”, “ estrelinha”, “famosinha”, e outros apelidos pejorativos.

O que essa pessoa não sabe, é que estava falando com uma mulher de 43 anos, sozinha, mãe de 4 filhos que sempre batalhou muito pra sobreviver em um mundo onde a misoginia direcionada a mulheres negras é cinco, dez, quinze vezes mais cruel do que a direcionada a mulheres brancas. Sem contar em inúmeros casos onde o meu posicionamento comprometido com a transformação social, que me faz muitas vezes dizer coisas que (eu sei) são amargas, mas precisam ser ditas para o bem de todos, foi colocada como agressividade, isto é, coisas da selvagem que precisa ser domesticada….

Portanto, caríssimo leitor/a que já entendeu que o racismo é um crime coletivo e precisa de uma luta coletiva pela transformação e equilíbrio de nossa sociedade e quer fazer a sua parte (não importa o tamanho, importa o empenho), deixo a você um apelo: cuide das suas manifestações inconscientes de sentimentos de superioridade e supremacia para que não envenene suas práticas anti-racistas.

Se colocar como aliado/a é uma atitude nobre, sobretudo considerando que somos continuidade da história e, mesmo não sendo os causadores, temos como missão contemporânea eliminar os estragos feitos no passado e que perduram até hoje. Mas entender que você é parte principal do problema e que também traz no seu inconsciente informações erradas que motivam suas práticas diárias em todos os lugares por onde você interage, é fundamental para que a gente saia do estado de letargia em que vivemos, onde pular corpos tornou-se uma prática comum e aceita socialmente como algo (quase) natural.

Se não se conscientizar sobre si mesmo e sobre o quanto o racismo moldou seu caráter, sua subjetividade e como induz seu comportamento social, não adianta se dizer aliado, pois estará invariavelmente sendo hipócrita.

Por Joice Berth, na Carta Capital

Tópicos:

LEIA TAMBÉM:

Mais notícias

PT Cast