Acesso à Justiça só será imparcial após radical inclusão social
Altos salários do Judiciário, em comparação com o restante da sociedade, impedem o juiz de ter empatia com o cidadão sub-integrado à sociedade
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O Brasil apenas terá a garantia do acesso à Justiça por parte do cidadão e a garantia de julgamento imparcial por parte dos juízes quando o Brasil passar por um radical processo de redução da desigualdade social presente no País. Essa é a conclusão dos palestrantes que participaram, nesta terça-feira (10), de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) que deu início ao ciclo de debates para discutir a “garantia institucional do acesso à Justiça e a imparcialidade do juiz”.
“A transformação da sociedade para fins de maior acesso ao Judiciário e a construção da imparcialidade do Judiciário depende de uma sociedade menos excludente e que tenha um menor grau de desigualdade. Com a estrutura social que temos é improvável termos uma Justiça imparcial, quando um juiz ganha 30 mil reais ao fazer o concurso aos 23 anos e o salário mínimo não chega a mil reais”, disse o acadêmico e advogado Marcelo Neves.
O advogado ainda alertou para o fato de que qualquer país do mundo onde massas imensas são excluídas, como em países africanos e latino-americanos, o acesso à Justiça cai abruptamente e, em conexão com isso, a imparcialidade do Judiciário.
“O acesso à Justiça fica prejudicado quando temos uma minoria que pode passar por cima da lei e da Constituição e não sofrer as devidas consequências. Não é possível as diferenças entre salários, mesmo no serviço público, entre o salário de um senador e de um funcionário terceirizado. O Judiciário passa a expressar essa diferença entre os cidadãos sub-integrados e os sobre-integrados. O juiz começa a incorporar esses valores da sobre-cidadania pelos salários altíssimos, logo, ele não tem o elemento de empatia”, disse.
A senadora Regina Sousa (PT-PI), presidenta da Comissão de Direitos Humanos (CDH), explicou que o tema com o advento da operação Lava-Jato, apesar de mesmo antes dela, algumas questões ocorridas tanto no âmbito do Judiciário já terem deixado a parlamentar “inquieta”.
“Me inquietava o tratamento de réu dado a pessoas que nem rés ainda eram. Quando debatemos a lei do abuso de autoridade, muitos rejeitaram o assunto afirmando que estávamos nos levantando contra a Lava-Jato. A lei é para todos, como dizem. Então [a lei do abuso de autoridade] valeria do guarda da esquina até o presidente da República. Não era para a Lava-Jato ou será que lá estão abusando da autoridade? ”, questionou.
Para Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), quando o juiz está no campo da violação da imparcialidade, ele também se afasta do ideal de busca da verdade, de busca da solução justa para um determinado caso. “Você passa a estar no campo da adoção de uma narrativa compatível com a hipótese assumida como verdadeira e isso gera uma série de distorções”, salientou.
As interferências do Judiciário na política
A promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Lúcia Helena Oliveira, defensora da ampliação da possibilidade do impedimento do juiz afirmou que “não basta ele ser imparcial, mas também deve parecer imparcial”.
“Se um juiz é fotografado conversando no ouvido do opositor político do seu réu ou se o juiz vai aos jornais, como o presidente do TRF-4 o fez, para fazer apreciação de valor da sentença que ele vai julgar dizendo que a sentença do Moro é irrepreensível, ele já é suspeito. Fora dos autos ele já diz o que acha da sentença? Assim como o Gilmar Mendes não pode almoçar com o pessoal do PSDB no mesmo dia em que impediu a nomeação de Lula para a Casa Civil. Não pode”, criticou.
A senadora Regina Sousa ainda lembrou de dona Marisa Letícia, ex-primeira-dama e de Luiz Carlos Cancelier, reitor da UFSC, vítimas, segundo ela, do espetáculo que tem se tornado as ações policiais no País que precedem o processo no âmbito judicial.
Dona Marisa foi vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) meses após a condução coercitiva de seu marido para prestar depoimento e Luiz Carlos Cancelier cometeu suicídio após ser afastado do cargo de reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Cancelier deixou um bilhete afirmando que sua morte teria sido decretada no momento do banimento da universidade, decretado judicialmente.
“O trabalho da Polícia Federal é válido, mas a forma está exagerada, virou espetáculo. Parece que tem satisfação a dar para alguém que não é a população brasileira. A Polícia Federal tem patrocinado um espetáculo para a mídia que tem assassinado reputações”, disse Regina.
A senadora Fátima Bezerra (PT-RN) afirmou que a situação no País tem piorado desde o golpe parlamentar ocorrido em 2016 e que afastou a presidenta Dilma do cargo conquistado nas urnas. “A partir desse episódio, estamos assistindo uma escalada autoritária de retrocessos nas mais diversas áreas”, resumiu.
A senadora ainda fez críticas à condução das investigações feitas em torno de Lula lembrando que no caso, ao invés do acusador ter o ônus da prova, é o acusado que tem produzido provas de sua inocência, deixando clara a conotação política que permeia as investigações do ex-presidente.
Parcialidade nas decisões da Justiça Trabalhista
Paulo Boal, diretor de assuntos legislativos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), criticou a postura dos parlamentares favoráveis ao texto transformado em lei com a reforma trabalhista que justificava a flexibilização das leis trabalhistas em favor da diminuição do número de processos na Justiça do Trabalho. Porém, os legisladores apenas patrocinaram o afastamento dos trabalhadores na busca de seus direitos ao se sentirem lesados.
“Taxaram de volumosas e absurdas as 3,9 milhões de ações na Justiça do Trabalho em 2016. Quem dá efetivamente motivação para o número estratosférico de ações no Brasil, 101 milhões, ao todo, é o próprio Estado. Devemos imputar pelo menos metade ao próprio Estado, seja na condição de autor, réu ou na figura que não conseguiu efetivar as garantias e direitos mínimos da população”, disse.
Cobertura midiática dos direitos humanos
A diretora de Programas da Secretaria Nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Fabiana Gadelha criticou o fato de a imprensa brasileira, em sua maioria, realizar uma cobertura enviesada da questão dos direitos humanos.
“Infelizmente quando a mídia fala de direitos humanos, ela sempre atrela ao conceito das pessoas privadas de liberdade, que cometeram algum ato danoso ou criminoso e marginalizam o conceito desta importante política. Comumente, a sociedade ignora o conceito de direitos humanos como os direitos das pessoas, de qualquer pessoa. Seja ela estando em sua casa, na rua, que tem condições de acessar aos direitos básicos e aquelas que não”, explicou.
Além disso, destacou Fabiana, o Estado autoritário prejudica todas as pessoas, de todas as classes sociais, de todos os saberes e todas as posições. Assim, quando a Justiça deixa de aplicar o direito e se torna justiceira, o resultado que é o vivido atualmente em que “se tenta reduzir a maioridade penal, que trará mais injustiça, se tenta aumentar o tempo de internação acreditando que ficando mais tempo fora do convívio social esses jovens vão aprender a se comportar”.
“Quando se aumenta a exclusão social, se diminui a igualdade. Uma medida de direito não pode jamais ser uma medida de segurança pública. Uma sociedade humanamente desenvolvida é aquela em que todos têm direitos iguais para alcançar os mesmos objetivos e se possa enfrentar o mínimo de obstáculos para a realização de suas potencialidades. E o sistema de Justiça hoje tem um senso punitivo sobre as violações”, enfatizou.