Artigo: O Desafio da Democracia Participativa, por Raul Pont
A lei orçamentária é picotada na pior forma possível através de uma política clientelística e corruptora que se estende aos Estados e municípios
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Em várias oportunidades, Lula tem defendido que a alternativa ao chamado “orçamento secreto” praticado pelo atual Congresso, deve ser o “orçamento participativo” através da participação popular. O ex-presidente e candidato atual para voltar ao Planalto sabe que a afirmação é forte e um verdadeiro desafio.
Mas, a resposta é clara e correta, principalmente diante dos abusos que o parlamento brasileiro vem praticando nos últimos anos. A criação de “emendas parlamentares impositivas” e, mais recentemente, a figura do “orçamento secreto” praticado pelo relator do projeto de lei orçamentária é a negação do regime presidencialista previsto na Constituição e a ausência de qualquer planejamento e racionalidade no gasto público.
A lei orçamentária é picotada na pior forma possível através de uma política clientelística e corruptora que se estende aos Estados e municípios numa relação personalista e sem o planejamento que deveria nortear o recurso público.
O regime presidencialista previsto na Constituição no qual a elaboração e a execução dos orçamentos cabe ao Poder Executivo dos entes federados é substituído pelo casuísmo clientelista e corruptor que vem se estendendo aos Estados e municípios. São bilhões de reais que deixam de ser investidos de forma planejada no interesse coletivo pelo atendimento personalista e eleitoreiro.
São cada vez mais frequentes os painéis nas cidades e estradas com deputados e senadores alardeando os milhões de reais que “investem” nas regiões e localidades onde buscam votos.
Defender o caráter republicano e transparente do Orçamento, recuperar a racionalidade e o planejamento no gasto público e revogar a lei do teto de gastos são alguns dos obstáculos mais difíceis para um governo que aposta na reconstrução do país e para governantes que querem garantir os direitos constitucionais previstos na forma de serviços públicos básicos à população.
No compromisso público assumido pelos sete partidos que compõem a Frente Vamos Juntos pelo Brasil – Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil – afirma-se que precisamos de uma “reforma política que fortaleça as instituições da democracia representativa e, ao mesmo tempo, amplie os instrumentos da democracia participativa” (§107 e 108 das Diretrizes).
Essa afirmação correta e necessária será um dos maiores desafios na disputa de outubro. Transformar isso em realidade, diante de um Congresso acostumado nos privilégios e na aprovação de leis baseadas no clientelismo, será tarefa dificílima para um governo de feição democrático-popular.
Por isso, os temas da democracia participativa precisam estar no centro da campanha presidencial desde agora e não no pós-eleição, quando o sistema eleitoral atual, baseado no voto nominal, no financiamento privado de pessoa física e na ausência de proporcionalidade idêntica para todo o país na Câmara Federal, garantirá bancadas reacionárias e serviçais ao capital que farão de tudo para inviabilizar o governo popular.
A Frente Vamos Juntos pelo Brasil e, em em especial, a chapa presidencial precisa assumir a defesa dessa tese e transformá-la em uma das bandeiras prioritárias, se não a mais importante, da campanha eleitoral.
Temos a definição, o compromisso firmado nas diretrizes. Precisamos tornar realidade esse tema no debate e na propaganda eleitoral.
Em 2000, quando da preparação do I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Bernard Cassen, então diretor do Le Monde Diplomatique e um dos organizadores do Fórum, propunha a realização na capital gaúcha pois defendia que a experiência do Orçamento Participativo e a participação popular decidindo o orçamento do município era a forma mais avançada e eficaz para enfrentar o neoliberalismo.
Concordamos com a tese e defendemos que as candidaturas majoritárias e legislativas da Frente assumam e transformem esse tema no elemento central do desafio de governar o país após a destruição praticada pelo atual governo em relação aos avanços realizados pós-Constituição de 1988 e, em especial, nos governos de Lula e Dilma.
Em primeiro lugar, fazendo valer a Constituição que estabelece ao Poder Executivo o direito e a possibilidade de elaborar o orçamento público com participação popular em sua realização. Para isso não há necessidade de novas leis que estariam à mercê de um Congresso conservador e contra a participação popular.
Consultar, ouvir, assumir o compromisso de respeitar as decisões da participação popular é o fundamento dessa experiência de democracia participativa.
Em segundo lugar, retomar a experiência vivida com as grandes conferências nacionais temáticas com base nos Conselhos já existentes e que estendem sua capilaridade nos Estados e municípios, fazendo com que eles expressem a participação desde a base municipal até as conferências setoriais nacionais. Nas experiências dos primeiros governos de Lula, após começo promissor, as conferências foram sendo secundarizadas e não tinham o caráter vinculante de suas deliberações com o Orçamento federal.
Em terceiro lugar, combinar essa experiência com formas diretas de participação territorial. Neste caso, é preciso apostar na iniciativa e auto-organização das entidades sindicais, comunitárias, culturais, da juventude, das cooperativas, das universidades e outras instituições que assumam a iniciativa junto com o governo para sua viabilização.
O próprio processo e experiência vivida e correspondida pelas ações governamentais encarregam-se de produzir normas, critérios e formas de participação direta possíveis.
Os mecanismos da participação direta, bem como a permanência organizada das comunidades no acompanhamento das obras e serviços aprovados e na prestação de contas pelos governos do que foi decidido são, também, formas de fiscalização e controle, colocando a participação da cidadania em outro patamar de consciência política.
O orçamento participativo só se realiza plenamente numa via de duas mãos. Não é e não pode ser um simples espaço de demandas e lamentações, mas o local de conhecimento, de informação que o governo fornece de forma transparente e honesta, ou seja, de todo o Orçamento. Com a participação se constroem prioridades e estas são vinculantes de acordo com a capacidade previamente conhecida do investimento de cada ente federado.
Por fim, essa experiência de gestão pública cumpre um papel pedagógico no debate sobre a superação democrática da mera representação. Esta, hoje, encontra-se completamente desacreditada pela sua burocratização e incoerência programática, por partidos que dobram de tamanho ou caem pela metade fora dos processos eleitorais ou de convenções democráticas onde filiados e eleitores possam rever rumos ou programas com participação consciente.
As experiências participativas de gestão pública cumprem também o papel de abrir o debate teórico e programático sobre novas instituições mais democráticas para o mundo em que vivemos com as novas tecnologias de informação e comunicação e com a rapidez quase instantânea de colher opiniões e posicionamentos já disponíveis mas que não estão a serviço da democracia.
Este momento eleitoral é uma grande oportunidade que não pode ser perdida. Não é razoável que com o grau de desenvolvimento alcançado se mantenham práticas de representação parlamentar de dois séculos atrás.
Raul Pont é professor, membro do PT-DN e ex-prefeito de Porto Alegre