Artigo: Resistência sem armas, por Paulo Rocha
O governo Bolsonaro pretende tornar o Brasil uma terra sem lei, como nos antigos filmes de faroeste, através de um projeto que corre na CCJ
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Entre as mais importantes melhorias implantadas no Brasil pelos governos do PT, o Estatuto do Desarmamento está entre eles. Sancionado em 2003, logo no primeiro ano de Lula no Palácio do Planalto, o texto foi uma reação do governo federal e do Congresso Nacional a uma criminalidade crescente registrada nos anos anteriores.
Foi um momento rico da democracia em que toda a sociedade, de especialistas até a classe política, se uniu contra a onda de violência e debateu a fundo caminhos para estimular a cultura da paz.
O Estatuto do Desarmamento se tornou um marco para o país e contribuiu muito para reduzir os índices de violência. A Lei criou um sistema nacional para controlar a produção e restringir o comércio e o porte de armas de fogo e munições, entre muitas outras medidas.
E ninguém estava inventando a roda. O conceito da nova legislação foi o mesmo adotado por outros países: quanto menor a quantidade de armas em circulação, menor a quantidade de crimes e maior a segurança das pessoas. Desde então, já se sabia que boa parte das armas registradas acabaram nas mãos de criminosos, o que se confirmou em pesquisa recente do Instituto Sou da Paz.
No entanto, o Brasil foi lamentavelmente tomado de assalto. Depois de uma enxurrada de mentiras que iludiu boa parte da população, o país elegeu um presidente cujo símbolo de campanha era uma arminha feita com a mão, reproduzida, inclusive, por ele mesmo, nas mãos de uma inocente criança de colo, para o deleite de apoiadores e para o assombro dos democratas daqui e do mundo inteiro.
Assim, desde 2019, o retrocesso se tornou a marca do governo federal, tendo como principal alvo o Estatuto do Desarmamento.
Foram baixadas mais de 30 medidas para minar o Estatuto por dentro. A maior parte delas ferindo a Constituição. Partidos e entidades da paz acionaram o Supremo Tribunal Federal diversas vezes, algumas com sucesso – ações foram derrubadas ou revogadas pelo próprio Executivo, diante do vexame iminente.
Mesmo assim, vários desses ataques se consumaram. Como numa guerra, o governo adotou uma estratégia sorrateira: fortalecer os chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) para atingir seu objetivo de liberar geral.
E conseguiu: de 2019 para cá, triplicou o número de pessoas registradas como CACs – eram 491 mil no final do ano passado, segundo dados oficiais. Além disso, os CACs passaram a ter o direito de adquirir arsenais de até 60 armas e 180 mil munições, cada um! Com isso, o número de armas registradas explodiu de 638 mil em 2017 para 1,28 milhão no final de 2020, sendo que os CACs já detêm mais armas do que a Polícia Militar.
Agora, a trincheira dessa batalha é a Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Desde dezembro passado, o governo tenta aprovar ali um projeto de lei (PL 3.723/2019) que, com a desculpa esfarrapada de regulamentar os CACs, pretende tornar o Brasil uma terra sem lei, como nos antigos filmes de faroeste.
Caso aprovada a lei, bastará um registro de colecionador, atirador ou caçador para que qualquer pessoa consiga comprar grande quantidade de armas de fogo de vários tipos, inclusive fuzis, e transitar com elas livremente, desde que diga estar indo ou voltando de um clube de tiro, de um torneio ou de uma atividade qualquer relacionada aos CACs.
O projeto, um dos mais perversos da história do Congresso, também enfraquece os sistemas de controle e acaba com a marcação das munições, por exemplo, numa medida que só agrada a milicianos e outros criminosos.
Nada é mais prejudicial à democracia do que uma arma de fogo. O que dizer de um arsenal delas camuflado entre milhões de pessoas, transitando nas ruas, mercados, feiras, botecos?
Democracia pressupõe a paz, a solução da controvérsia pelo diálogo, a convivência que tolera a diferença de opinião, sem ofensa ou discriminação, o repúdio a qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, e a representação política definida pela maioria em votação direta.
A bancada do PT no Senado está em alerta permanente para impedir que o país seja submetido ao mais grave retrocesso gerado pelo atual governo, dentre todos os que infelizmente já vivenciamos.
Paulo Rocha é senador pelo PT-PA e líder da bancada do PT no Senado
Artigo publicado originalmente no site do Brasil 247