Artigo: Entrai pela porta esquerda, por Idenilton Barbosa

Em seu ensino, Jesus pregou a felicidade como sendo resultado do compartilhamento da maior riqueza com os pobres, do consolo dos que sofrem, da entrega da terra para os humildes

Entrem pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram“.
Jesus, conforme Mateus 7.13-14 https://bibliajfa.com.br/app/nvipt/40N/7/13

Tenho a certeza de que muitos sequer se darão ao trabalho de ler o presente texto porque terão se escandalizado de antemão com o título que escolhi. Sei que este título não apenas tem o elã de gerar antipatia, como, mais que isso, fará os poucos conservadores que ainda não me vêem assim, se juntarem à grande multidão daqueles que me consideram um herege. Deste modo, é para o, possivelmente, pequeno grupo de bereanos aos quais me dirijo nesta breve reflexão sobre aquilo que chamo de equivalência política da profissão de fé em Jesus.

Devo esclarecer, antes de tudo, que minha referência de profissão de fé não se reduz à mera declaração de um credo ou aceitação tácita desse para ingressar numa instituição religiosa. Trato a profissão de fé cristã como a aceitação da vida proposta por Jesus como um exercício cotidiano de espiritualidade que tem como alvo a reconciliação da humanidade consigo mesma e com todos os seres vivos como expressão da sua reconciliação com Deus, tendo em vista que “foi do agrado de Deus que nele (Jesus) habitasse toda a plenitude, e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Colossenses 1.19).

Essa espiritualidade, portanto, não se fragmenta por meio da dicotomia entre corpo e espírito ou, considerando a concepção tricotomista, entre corpo, alma e espírito. Mas, enxerga o ser humano em sua integralidade e defende que nenhum aspecto da constituição humana deve ser ignorada ou o seu suprimento adiado para o “céu”, considerando ser possível e imprescindível a construção da nova humanidade e, com ela, relações justas entre as pessoas que a compõem e entre ela e todas as outras formas de vida no universo, desde já. Não creio numa divindade que aceite um culto dissociado da luta por justiça em todas as relações.

Isto posto, é necessário que a profissão de fé cristã se valha da ética do reino de Deus ensinada por Jesus para intervir no mundo caracterizado por uma ética que naturaliza a exploração de uns sobre os outros, que admite que uns tenham muito, enquanto outros nada têm, que acha aceitável a destruição daqueles que não se harmonizam com as ideias hegemônicas, muitas delas construídas sob lógicas injustas. A ética ensinada por Jesus propõe a desconstrução do mundo injusto e a construção da paz por meio do estabelecimento da justiça, tendo como base irrevogável o amor.

A narrativa do apóstolo Mateus coloca a passagem do capítulo 7, versículos 13 e 14, exatamente no contexto do conjunto de ensinamentos de Jesus que ficou conhecido como Sermão do Monte ou Sermão da Montanha (Mateus capítulos 5, 6 e 7), no qual o Mestre denuncia a falência das relações humanas tal como exercidas até aquele momento e apresenta como alternativa uma nova maneira de viver pautada no amor como o caminho para se fazer parte do reino de Deus.

Por ser um caminho que desafia cada pessoa, e a humanidade toda, a fazer uma crítica profunda da sua lógica existencial, refazer a rota e abrir mão de concepções e posturas que, embora naturalizadas e aceitas como normais, são a causa da infelicidade humana, Jesus o chama de “caminho estreito” e “porta estreita”. Jesus afirma que a porta larga e o caminho amplo levam à perdição e muitos entram por eles. Enquanto a porta estreita e o caminho apertado levam à vida e poucos os encontram.

Jesus não estava falando de política partidária, mas, com base naquilo que afirmamos antes, é impossível não encontrar nas ideologias simetrias e assimetrias em relação aos ensinos de Jesus. Para tanto, basta analisar esses ensinos e compará-los com a visão de mundo e as correlatas posições defendidas pelas principais correntes ideológicas, historicamente denominadas de direita e esquerda. E, para fazer essa comparação, é necessário também refletir sobre o que significa ser de esquerda ou de direita, de acordo com a origem dessas designações. A despeito das muitas mudanças ocorridas ao longo dos tempos, essencialmente esses dois lados ainda guardam muito das posições originais.

É sabido que a origem dessas designações remonta ao período da Revolução Francesa (1789), levando em conta a localização geográfica dos grupos nas assembleias. De maneira bem sucinta pode-se afirmar que aquele grupo que defendia os interesses dos mais ricos sentava-se à direita e aquele grupo que defendia os interesses dos mais pobres sentava-se à esquerda. Os que estavam do lado direito eram conservadores em suas posições, ao contrário daqueles que estavam do lado esquerdo que propunham mudanças profundas na sociedade da época para que os mais pobres fossem contemplados em suas necessidades. Caso esses grupos tivessem invertido os lados em que ficavam nas assembleias francesas, as definições seriam invertidas também.

Com o passar do tempo, porém, a designação de que quem atua para a manutenção da ordem social hegemônica é de direita e de que quem luta para que haja transformação social de modo a estabelecer a igualdade entre as pessoas e os povos é de esquerda, se consolidou. Embora uma análise mais profunda – que não é o caso da minha nesse momento, possa apontar outros aspectos, para fins de simplificação sem contudo comprometer a verdade, é correto afirmar que, entre as diferenças principais entre direita e esquerda, estão: A) a ênfase que a direita dar ao indivíduo, enquanto a esquerda enfatiza o coletivo; B) a direita defende a inexistência ou pouca intervenção do Estado, enquanto a esquerda defende a necessidade de o Estado ser forte para evitar que grupos mais poderosos dominem sobre os pobres; C) a direita propõe a melhoria de vida a partir da meritocracia de cada indivíduo, já a esquerda contrapõe mostrando que a meritocracia é inaceitável enquanto persistirem as desigualdades; D) a direita acredita na competição entre os indivíduos, a esquerda acredita em oportunidades iguais para todos.

Diante disso, o leitor atento do Evangelho, ao invés de se escandalizar com o título do presente texto, perceberá nos ensinos de Jesus a sua justificativa. O tempo de Jesus era bem diferente da época da Revolução Francesa e do nosso tempo, tanto quanto o nosso é diverso comparado a qualquer outra época. No entanto, em todos os tempos há opressores e oprimidos, ricos e pobres, incluindo a realidade do primeiro século, quando Jesus conviveu fisicamente com a humanidade. Jesus encontrou uma sociedade dividida entre aqueles que detinham o poder e os dominados, entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. Jesus mostrou que essa realidade contraria a ética do reino de Deus e desafiou seus seguidores a serem agentes de transformação por meio daquilo que ensinou com suas palavras e com seu modo de vida.

Em seu ensino, Jesus pregou a felicidade como sendo resultado do compartilhamento da maior riqueza com os pobres, do consolo dos que sofrem, da entrega da terra para os humildes, da saciedade daqueles que anseiam por justiça, das relações regidas pela misericórdia (equivalente a se colocar no lugar do outro), da paz que advém da justiça social (Mateus 5.1-12). O Mestre ensinou que as relações entre as pessoas devem ser baseadas no amor e o verdadeiro amor não admite a ideia da meritocracia, conforme exemplificou na atitude do próprio Deus, que ama a todos incondicionalmente (Mateus 5.43-45). Jesus se opôs à acumulação e à concentração de riquezas e apresentou a distribuição destas aos pobres como modo de glorificação a Deus (Mateus 6.19-24; Lucas 12.13-21) e a busca da justiça como meio de contentamento (Mateus 6.33). Cristo se opôs à dominação pela força, pela riqueza ou por qualquer outra forma por considerar que na humanidade não deveriam existir fortes e fracos, ricos e pobres, exploradores e explorados, senhores e escravos (Mateus 20.25-26).

Sendo assim, “entrar pela porta estreita” é trilhar um caminho oposto ao modo como a nossa sociedade funciona. E isto implica em fazer a revolução. Não a das armas, mas a do amor, sem a passividade de quem vive em cima do muro. Mas, assumindo o lado que propõe a transformação. Uma revolução que exige coragem para enfrentar os poderosos como Jesus enfrentou, denunciando a hipocrisia dos religiosos (Mateus 23.1-34), confrontando a crueldade e a inveja dos governantes quando inclusive chamou Herodes de raposa (Lucas 13.31-32), expulsando com rigor os gananciosos capitalistas do seu tempo que exploravam os pobres com a anuência dos religiosos (Mateus 21.12-13).

Não quero reduzir a caminhada proposta por Jesus às questões de ideologia política. No entanto, considero impossível viver o Evangelho tal como apresentado por Jesus, nos esquivando da responsabilidade da transformação social incluída na proposição do estabelecimento do reino de Deus. Não há como conceber a esperança em novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça (II Pedro 3.13) acomodando-nos à injustiça social vigente em nossos dias, como faz a posição assumida pela direita, que não contraria os poderosos e nem se importa em mudar nada, apenas em manter o sistema injusto em que vivemos. Um caminho fácil para os poderosos, mas extremamente difícil, penoso, cruel para as vítimas da desigualdade. Ao contrário, a esquerda se dispõe a fazer o estreito e apertado caminho da revolução, denunciando as injustiças, enfrentando os exploradores, lutando pelo direito inegociável da dignidade humana para todos, para que, afinal, haja justiça, haja paz. Sendo assim, é inegável: para acessar a porta da vida, é preciso entrar à esquerda.

Idenilton Barbosa é teólogo, pedagogo, mestre em Educação (UFBA). coordenador pedagógico da SEC no CEEP do Oceano em Vera Cruz. Professor da Rede Municipal de Educação de Salvador. Pastor da Igreja Batista do Costa Azul, em Salvador. Membro do NEPT Bahia.

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