Cidades, ordem pública e livre acesso à cultura

“Eu sou a rua e esta autoridade ninguém me negará” – Orestes Barbosa in: Samba

Flavio Aniceto*

Em diversos municípios brasileiros temos visto ações de ordem pública, algumas espetaculosas, mas não efetivas. Em todo caso, acreditamos que a população em princípio as enxerga positivamente: afinal “quem não quer calçadas livres”, seja de vendedores ambulantes, estacionamentos irregulares, lojas e bares que estendem suas mercadorias e mesas até o meio-fio, sem falar nos problemas sociais ligados à população em situação de rua? Mas, por outro lado, ninguém quer classificar algumas destas ações como higienização, não é?

Como o tema deste pequeno texto não é a questão urbana no geral, mas a cultura e o direito à cidade vamos aos fatos, dentro destas ações, assistimos outro choque: a repressão pura e simples ou as vezes velada aos artistas de rua.

Estes artistas, atuando como solistas ou em grupo, são autônomos por natureza, o dramaturgo Amir Haddad define os seus ofícios como arte pública, ou seja, àquela “que se faz e se produz por todos, em espaços variados, sem distinções de classe ou gênero”.

Na perspectiva de garantir a sobrevivência legal do trabalho destes artistas, acreditamos que os mesmos deveriam agir em duas frentes: a busca da legitimidade – junto ao público, seja nas comunidades ou nos centros urbanos – o que é desafiador e complexo, dado que a assistência é irregular, passante, “infiel” – e a legalidade – amparando-se na legislação em vigor, mas também propondo alternativas e inserindo-se no processo de formulação de políticas públicas para a cultura e o urbanismo.

A busca da legitimidade na ação nas ruas, espaços públicos, alternativos e comunidades

Estes grupos de artistas para além da preocupação com o repertório deveriam ser também politicamente atuantes, mas, sobretudo, diferenciadores, fugindo de uma atuação nos moldes dos anos 1960, quando imperava a velha ideia civilizatória de “levar cultura a…”. Ao contrário, como grupos contemporâneos e alternativos, devem se inserir no contexto atual de “fazer junto com”, incentivando a construção da cidadania cultural. Inclusive pelo fato de que os grupos hegemonicamente culturais ou ligados ao mercado estão mais aptos para uma ação cultural não dialógica, a arte pública deveria ir a outro caminho.

A ação destes grupos, em outra perspectiva, pode ser exemplar, uma vez que quando realizam uma ocupação cultural de um determinado local, também o revitalizam, seja como provocadores de reclamações por serviços urbanos (como a iluminação e a limpeza), assim como melhorando a ambiência e a circulação. Por outro lado, na esteira de um grupo ou profissional ativando um local, podem surgir outros projetos sócio-culturais.

É preciso inserir o público como agente cultural, não sendo só passivo e abrindo a possibilidade de que sendo também um criador, este defenda o processo legítimo da rua como palco e espaço cultural, diferenciando-se ainda de outras ações-alvo da ideia de limpeza urbana que está presente em diversos municípios, justamente ou não.

O sujeito não pode ser um mero espectador, ao contrário, a ação cultural objetiva dotá-lo das mesmas experiências existentes nas áreas privilegiadas e ainda nos locais nos quais se pratica a “arte privada” (com duplo sentido) em oposição à arte pública. E principalmente, estes grupos podem atuar para a superação da lógica artística e cultural distintiva. Como fazer isto? As soluções podem ser apresentadas pelos próprios grupos, aqui apenas pontuamos algumas provocações.

Marta Porto afirma que existe uma distinção entre os movimentos culturais dos anos 1960 – como o CPC da UNE, grupo Opinião e outros – e os dos anos 1990 – das periferias, os grupos emergentes juvenis, etc., quanto ao protagonismo da população periférica ou que não é artista “profissional” – antes vista como mera receptora, platéia, público alvo. Mas, chama a atenção que a absorção das práticas da periferia não pode correr o risco de promover novas desigualdades nos seios destas comunidades. Este falto pode acontecer quando se prioriza apenas os protagonistas destas ações, criando novos emergentes sociais e culturais e não ativando a potência cultural de toda a comunidade. Este é um que fato se observa em diversos grupos culturais hegemônicos nas comunidades e nos bairros periféricos das grandes cidades.

A estratégia de legitimação é política, assim como a esfera legal, que apresentaremos em seguida. Mas antes fazemos um pequeno comentário sobre as políticas urbanas atuais, tomando como base Lilian Fessler Vaz.

Vimos nos anos 1980/90 a mercantilização e a espetacularização das cidades e das culturas (“capitais européias da cultura”, grandes festivais e exposições circulando nas cidades mundo afora, etc.). Neste “planejamento culturalizado”, os projetos menos ambiciosos são descartados, ao passo que os mais espetaculares são priorizados (alguma semelhança com o que vemos no Rio de Janeiro e nas demais cidades-sede da “Copa do Mundo”?). Infelizmente é um modelo que atinge administradores de todas as posições políticas, mesmo as gestões progressistas e de esquerda encantam-se com esta lógica, de olho nos benefícios que podem ser gerados para os seus munícipes.

Neste contexto, aparecem ainda a “shoppinzação” e “disneyficação” das cidades, além de uma estetização dos espaços públicos, e para isto, são necessárias as chamadas operações de “limpeza”, de ordenamento urbano e social. Consequentemente pode ocorrer uma expulsão – mesmo involuntária ou não formal – da população moradora devido à valorização destes espaços, pois os velhos moradores não conseguem se sustentar, sobreviver e consumir neste novo contexto. Para comprovar isto bastaríamos olhar os preços de alimentação e imóveis no chamado “Rio Antigo”, na Lapa e adjacências, região central do município do Rio de Janeiro. Criam-se novos guetos e mais desigualdade.

Nestas políticas as cidades são vendidas como imagem – produtos turísticos – esvaziando-se as culturas locais, privilegiando-se o que é palatável ou vendável e que dialoga com o “exterior”. Só parte da cidade vale aquela que é lucrativa, o resto não. Podemos afirmar que os mapas municipais são também mapas da exclusão social e cultural. Mesmo sabendo que a cultura é produzida em toda a cidade, só uma área geográfica é considerada. A arte pública se opõe na prática a esta lógica.

É a negação do acesso à cultura e do direito à cidade. Quanto maior for a espetacularização da cidade, menor é a participação da sociedade, da população e das culturas ditas populares. Na cidade-espetáculo o cidadão é um figurante. É este quadro que acreditamos ser necessário mudar, as ações-guerrilheiras destes artistas e grupos são alternativas para outra culturalização das cidades, na perspectiva democratizante. A participação dos artistas de rua e de movimentos sociais são antídotos à sociedade do espetáculo na conhecida formulação de Guy Debord.

Finalmente chegamos a ideia da Legalidade, quando as representações da arte pública podem buscar formas de instrumentalizar os artistas para a sua lida diária, não ficando reféns dos administradores gerais ou locais, dos guardas-municipais ou policiais, dos donos informais do pedaço como comerciantes, traficantes de drogas e milicianos, pastores evangélicos, etc.

No nível federal, merece destaque o PL 1096/2011 de autoria do Deputado Vicente Cândido PT/SP, em tramitação e que regulamenta as manifestações culturais de rua, se ancorando na Constituição Federal, em seus artigos 5º (liberdade de associação, expressão, artística, científica, comunicação, etc.), 215º (direitos culturais, acesso às fontes culturais, difusão e Plano Nacional de Cultura) e 216º (dos patrimônios culturais do Brasil).

Nos níveis estaduais e municipais, é necessário buscar legislações similares a lei (5429/2012) que institucionaliza a ação da arte pública no município do Rio de Janeiro. Esta lei foi precedida de uma mobilização dos artistas, de articulação política junto ao vereador do PT, Reimont, de apresentação de projeto pelo parlamentar e aprovação do projeto pela Câmara Municipal. A proposição sofreu veto do prefeito que resultou em uma grande mobilização dos artistas e após uma reunião destes grupos com o alcaide o veto foi derrubado e enfim foi sancionada a lei. Mas como o próprio prefeito disse em reunião com os grupos, o fato de ser aprovado não garante a sua real efetivação, uma vez que a prática repressiva à arte pública é uma característica da máquina burocrática. E em outra seara, é recomendada a participação nos Planos e Conselhos Municipais de Cultura. É preciso não restringir a participação ao nível das políticas culturais, ampliando o raio para os Planos Diretores Municipais, assim como estudar a necessidade de mudanças nos Códigos de Posturas Municipais e em outras legislações urbanísticas específicas e pertinentes, mas evidentemente não como ato isolado dos artistas e grupos de rua, mas em conjunto com outros segmentos culturais.

“Eu amo a rua. Este sentimento de natureza todo íntimo não seria vos revelado por mim, se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é compartilhado por vós”

João do Rio in: “A alma encantadora das ruas”

*Flavio Aniceto é produtor cultural, cientista social e mestrando em bens culturais e projetos culturais pelo CPDOC-FGV e filiado ao PT/RJ. flavio.aniceto.produtor.cultural@gmail.com

Referências:
Lei do Artista de Rua do município do Rio de Janeiro. Disponível em http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/50ad008247b8f030032579ea0073d588/67120c4c1ae54a6603257a14006d2b1d?OpenDocument acessado em 01/08/2012.
HADDAD, Amir. Justificativa do Projeto de Lei nº931/2011. Rio de Janeiro: Câmara Municipal, 2012.
PORTO, Marta: Brasil em tempos de cultura: cena política e visibilidade http://www.oei.es/pensariberoamerica/ric08a08.htm acessado em 26/06/2011
VAZ, Lilian Fessler: Regeneração cultural em cidades do terceiro mundo. Mimeo

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