Democracia e a luta das mulheres negras: um enfrentamento às violências
Artigo de Isabel dos Anjos Leandro
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A história de formação da sociedade brasileira é profundamente marcada pelo processo de escravização e pelas formas de dominação da tríade raça-gênero -classe.Ao analisarmos a realidade brasileira identificamos nitidamente que a luta das mulheres negras está diretamente relacionada ao próprio direito de existência. Foi num passado recente que asmulheres negras e os homens negros tiveram a sua existência reduzida a mercadoria e a mão-de-obra para a sustentação da economia escravagista, a formação dos privilégios da elite brasileira e a criação e manutenção do racismo. A abolição inacabada, perpetuao racismo institucional, afastando e criando constrangimento para o exercício de poder das mulheres negras na política brasileira.
Conforme afirma MaurizioLazzarato e ÉricAlliez “a escravidão não nasceu do racismo, foi o racismo que nasceu da escravidão” (ALLIEZ & LAZARRATO, 2021, p. 39)[1]. As marcas desse processo de exclusões continuam atualizadas nos espaços de poder, principalmente, pela naturalização/banalização da violência contra as mulheres negras nos espaços institucionais. É fundamental reiterar as contribuições de Sueli Carneiro sobre o passado que atualiza no presente: “o que poderia ser considerado como história ou reminiscência do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções numa ordem suspostamente democrática, que mantém intacta as relações de gênero e raça instituídas pelo período de escravidão” (CARNEIRO, 2019, p.313)[2].
A partir da luta protagonizada pelas mulheres negras nos movimentos sociais, partidos, governos e organizações da sociedade civil, verificamos simultaneamente os avanços nas legislações para o acesso aos espaços de poder e a naturalização das violências de raça, gênero e classe. Esse processo de banalização da violência é uma grande desafio para a consolidação da democracia de fato. É importante recordar que a violência está presente na subjetiva da construção política; nos processos decisórios, nos silenciamento e invisibilidades provocadas. Esse formato tem sido um instrumento de obstrução a participação das mulheres nos espaços políticos.
As interrupções nas falas, as tentativas de interpretação ou traduções das expressões das mulheres negras demonstram a sutileza das violências nos espaços públicos. Não é incomum observamos essas situações nas rotinas políticas. O direito de fala, por mais que pareça dado, insere-se no conjunto de direitos conquistados pelas mulheres negras. O exercício da participação nos espaços políticos é fundamental para avançarmos na ampliação de direitos. Sem respeito e garantias do exercício de falas nos diversos espaços políticos permanecem as sutilezas das violências. Numa sociedade em que até mesmo a morte das pessoas negras tende a ser naturalizada as reflexões acerca das violências subjetivas ainda precisam ser reiteradas e assumidas como lacunas no processo de consolidação da democracia brasileira
Os ataques diretos no exercício dos Mandatos têm sido constantesnos municípios, estados e também em âmbito federal.A violência explicitada nos Parlamentos e Gabinetes demonstram a complexidade do enfrentamento ao pacto da branquitude que possibilita a naturalização e banalização da violência contra as mulheres negras. Não se trata de ataques personalizados, mas de uma cultura política que assimilou gênero e raça como distintos para exercício ou não do poder no Brasil. Diversas pesquisas demonstram que o poder no Brasil tem características de gênero, raça e classe. A transformação dessa estrutura de poder que mantém tais características tem sido diuturnamente enfrentada pelas mulheres se colocam a frente dessa luta na condição de (pré) candidatas e também nas redes de apoio que contribuem para a efetivação de sua participação política.
As eleições municipais de 2024 demonstram que as instituições brasileiras sobreviveram aos golpes e ataques antidemocráticos. Elas permanecem vigorosas nos exercícios de suas funções. Esse pleito também demonstra a necessidade de inclusão efetiva das mulheres negras na disputa eleitoral. Essa participação é uma forma contundente de enfretamento as violências políticas, principalmente, na forma do racismo institucional. Por isso, o fortalecimento das candidaturas das mulheres negras, a efetivação dos recursos financeiros/estruturais/institucionais e a manutenção das redes de apoio que viabilizam as presenças das mulheres negras na disputa eleitoral são imprescindíveis para a ocupação plural dos espaços de poder.
Os avanços alcançados são resultados das longas e intensas lutas por reconhecimento, principalmente, no que tange a paridade de gênero na direção partidária, as cotas de gênero e étnico –raciais nas eleições de 2024 e a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Todavia, é necessário compreender que as formas de exclusão também se atualizaram. O racismo institucional expresso nos espaços de poder da política é um entrave para a democracia de fato.
A naturalização da Democracia sem a presença das mulheres negras é uma forma sútil e eficiente de manutenção das violências advindas do racismo. A superação desse desafio não é exclusivo daquelas que permanecem em luta. Essa é uma responsabilidade do conjunto das pessoas que defendem uma forma de governar pautada na liberdade, igualdade, justiça, participação do povo, dignidade da pessoa humana, desenvolvimento e soberania nacional. Não seriam esses os pilares e objetivos fundamentais instituídos pela Constituição da República Federativa do Brasil? A quem tais princípios se dirigem? Para quem são voltados esses objetivos?
Isabel dos Anjos Leandro é socióloga. Doutora em Ciências Sociais e em estágio pós doutoral na UNESP. Assessora do Mandato Dep. Marquinho Lemos/ALMG. Professora substitutiva -PUC Minas. Integrante da Executiva Estadual- PTMG e Coletivo Nacional de Combate ao Racismo.