Cumpra-se a Constituição: Partidos e movimentos cobram retomada da Reforma Agrária
PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede e movimentos movem ADPF contra medidas do Incra que suspendem processos de obtenção de terra para 32.968 famílias famílias
Publicado em
por Nilton Tubino e Luiza Dulci*, 14/12/2020, para a Revista Teoria e Debate, Edição 203 – Dezembro/2020**.
Em 9 de dezembro de 2020 foi protocolada no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 769, que trata da paralisação da reforma agrária no Brasil. A ADPF foi elaborada por movimentos de luta pela terra e partidos políticos (PT, PSOL, PSB, PCdoB e Rede) e tem entre os signatários a ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat e o ex-ministro da Justiça, também ex-procurador, Eugênio Aragão. No STF, sua relatoria foi designada ao ministro Marco Aurélio Melo.
O documento cobra do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do governo federal de maneira geral a revogação de três Memorandos de 2019 que interromperam a reforma agrária; bem como a recomposição do orçamento para aquisição de terras e garantia de qualidade de vida nos assentamentos rurais; e a elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária. Solicita ainda que o STF promova audiências para discutir a reforma agrária com a participação de especialistas, movimentos sociais e governo.
Com relação à paralisação da reforma agrária, a ADPF denuncia que as medidas do Incra suspenderam todos os 513 processos de obtenção de terras em curso, que compreendem 1.024.710,44 hectares e podem beneficiar 32.968 famílias. Dentre eles, há 187 processos em que já houve a indenização dos proprietários, faltando apenas o Incra assumir a posse do imóvel e assentar as famílias, conforme dados disponibilizados pela Lei de Acesso a Informação (LAI). Questionado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Incra respondeu que estariam paralisados 413 processos, em distintas fases de análise.
A ADPF também aponta que em diversos casos de disputa judicial o Incra tem desistido de áreas que já haviam sido declaradas de interesse público para a reforma agrária, expondo as famílias acampadas a uma situação de grande vulnerabilidade e incerteza. A ação – ou melhor inação – do governo em relação à obtenção de terras privadas possui correspondência no âmbito de terras públicas, segundo informa levantamento elaborado pelo próprio Tribunas de Contas da União. A análise do TCU mostra que há relevante estoque de terras públicas na área da Amazônia Legal, porém: o governo se eximiu de “providências para a recuperação de mais de R$ 1 bilhão em áreas irregularmente ocupadas”; “omitiu-se na retomada e destinação de imóveis cujo valor corresponde a R$ 2,4 bilhões”; descumpriu “95% das cláusulas fixadas para regularização fundiária”; “praticamente não emitiu títulos após 2019”; “como consequência, há um desmatamento de mais de 82 mil hectares”; e “houve um prejuízo de mais de R$ 12 milhões em titulações irregulares”.
No que tange ao orçamento destinado à reforma agrária o desmonte é completo e comprova como esta é, de fato, encarada como uma “política adversária” para atual administração federal. Em comparação ao ano anterior, os recursos previstos para o Incra na LOA de 2021 indicam redução de 99,9% para Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater)1; 82,3% para Monitoramento de Conflitos Agrários e Pacificação no Campo; 99,8% para a Promoção da Educação do Campo2; 89,8% para Reconhecimento de Indenização de Territórios Quilombolas; 71,1% para Consolidação de Assentamentos Rurais; 94,6% para Aquisição de Terras3; 99,5% para Reforma Agrária e Regularização Fundiária; e 93,4% para Concessão de Crédito-Instalação às Famílias Assentadas. Nota-se ainda que da dotação orçamentária de R$ 3,4 bilhões para o órgão, “66% dos recursos foram reservados para o pagamento de precatórios, ou seja, dívidas com fazendeiros que conseguiram na justiça elevar o valor de indenização por terras desapropriadas por improdutividade – um aumento de 22% em relação ao orçamento deste ano [2020]”4. Cabe notar que parte dos precatórios corresponde aos chamados juros compensatórios, cuja lógica é controversa, pois se trata de juros pagos para compensar os prejuízos durante o período de tramitação do processo de obtenção de terras que foram comprovadamente consideradas improdutivas.
Ainda sobre o aspecto fiscal, vale notar que os problemas não se encerram na previsão dos recursos, uma vez que os valores efetivamente empenhados são muito baixos. Considerando-se a aquisição de novas terras, os valores empenhados reduziram-se de R$ 140,4 milhões para R$ 21,1 milhões de 2017 para 2019 e caíram para R$ 2,1 milhões em 2020. É também sintomático o fato de que até 2019 a ação “aquisição de novas terras” encontrava-se vinculada ao Programa Orçamentário Reforma Agrária e Governança Fundiária, denominado apenas de Governança Fundiária em 2020.
A inflexão pós-golpe de 2016
Todas essas medidas evidenciam o que já era sabido por todos porque expresso em termos literais pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em diversas ocasiões: sua intenção em acabar com “a farra da distribuição de terras” para reforma agrária, indígenas e quilombolas. O desmonte das políticas públicas está vinculado a ações objetivas de enfraquecimento e destruição das organizações de luta por direitos e por terra no país. Quando das indicações da ministra Tereza Cristina, a musa do veneno, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento(MAPA), de Nabhan Garcia para a Secretaria de Assuntos Fundiários deste ministério, e de outras nomeações nas pastas ligadas aos temas agrário e ambiental do governo federal a avaliação era de que Bolsonaro havia indicado “raposas para cuidar do galinheiro”5. Esses órgãos encontram-se povoados de generais e coronéis que nunca haviam tratado do problema da terra em nosso país.
Outra mudança implementada pelo Incra no último período tem a ver com a proibição de reuniões com entidades desprovidas de CNPJ, numa tentativa explícita de desconsiderar a interlocução com MST. As audiências com a presidência do Incra e com as superintendências do órgão foram burocratizadas de tal maneira que o Ministério Público Federal chegou a encaminhar recomendação para alterar a forma de atendimento, sob o risco dos dirigentes responderem por improbidade administrativa.
A prioridade conferida ao tema da governança fundiária ocorre em detrimento da reforma agrária e do necessário reordenamento territorial atento às dimensões social e ambiental. Assim, dá seguimento e aprofunda ainda mais uma inflexão no tratamento da questão agrária por parte do governo federal iniciada ainda no governo Temer. Parte das mudanças tem lastro na Lei n. 13.465/2017, derivada da MP 759, a “MP da grilagem”, que dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural. A nova legislação flexibilizou a regularização fundiária, sobretudo nas áreas da Amazônia Legal, bem como passou a priorizar a titulação dos lotes dos assentamentos rurais. Com isso, deu início a uma corrida pela titulação entre as trinta superintendências do Incra nos estados, medida pelo que ficou chamado de “titulômetro”. Cabe notar, contudo, que ao emitir os títulos, o órgão se vê desobrigado do provimento de infraestrutura básica, como estradas, moradia, água e energia, bem como de conceder crédito subsidiado para a produção agrícola. Em resumo, as famílias recebem o título e abdicam de diversas obras que seriam de responsabilidade do Incra. De quebra, milhares de hectares são disponibilizados ao mercado de terras nacional.
Como se vê, estas mudanças rompem com esforços históricos de promoção da reforma agrária e garantia de direitos das populações do campo, das florestas e das águas no Brasil. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária foi criado em 1970 com a missão de executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional – ainda que, como se sabe, à época a prioridade era mais de colonização do que de reforma agrária propriamente dita. Antes dele, no primeiro ano da ditadura, os militares haviam editado o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964), que tratava expressamente da execução da reforma agrária e da promoção da política agrícola. O Estatuto também apontou a necessidade de um cadastro de terras para fins de fiscalização de sua função social e ambiental.
Vale lembrar que o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária data de 1985. A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 184 a 189, indica expressamente a diretriz de desapropriação de terras improdutivas e a imprescindibilidade do cumprimento da função socioambiental da propriedade. Este conjunto de esforços visa garantir direitos fundamentais de sem-terra e reverter – ou minimamente atenuar – as desigualdades fundiárias, que estão na raiz da produção e da reprodução das desigualdades de renda e poder que historicamente caracterizam a sociedade brasileira.
De 1985 para cá foram assentadas 1.364.057 famílias, alocadas em 9.431 assentamentos criados pelo governo federal ou reconhecidos pelo Incra. Diversos estudos demonstram as conquistas dessas famílias em termos de renda, oportunidade e cidadania. É notável também sua contribuição para a produção agrícola nacional. Conforme aponta o documento da ADPF 769, os estabelecimentos da reforma agrária contribuíram com 13% do valor agregado pela agroindústria brasileira em 2006, com produção equivalente a R$ 9,4 bilhões – agregando proporcionalmente mais valor do que a média das unidades produtivas rurais. Em tempos de desabastecimento de alimentos básicos como arroz e feijão, é importante destacar que os estabelecimentos da reforma agrária produziram 9% do arroz e do feijão, 15% da mandioca, 6% do milho, 11% da banana e 9% do leite de vaca em 2006. Se mostram, assim, essenciais para as políticas de combate à fome e à pobreza rural, bem como para a garantia da soberania alimentar no campo e na cidade.
Outro dado relevante diz respeito ao número de pessoas que ocupam as terras. Na contramão do esvaziamento do campo – e do inchaço urbano por ele acarretado –, os estabelecimentos da reforma agrária são ocupados, em média, por 6,4 pessoas/100 hectares. Este contingente é superior à média dos estabelecimentos agropecuários (5 pessoas/100 ha) e muito superior ao subconjunto das unidades não familiares (1,7 pessoas/100 ha).
A desigualdade fundiária brasileira e os conflitos agrários
De acordo com o relatório “Terrenos da desigualdade: terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural”6, as grandes propriedades, acima de mil hectares, somam apenas 0,91% do total de estabelecimentos rurais brasileiros, ao passo que concentram 45% das terras rurais do país. Na outra ponta, os estabelecimentos com menos de 10 hectares correspondem a 47% das propriedades rurais e ocupam somente 2,3% da área.
Dados do novo Censo Agropecuário de 2017 registram aumento da concentração das terras. As propriedades com mais de mil hectares agora concentram 47,6% da área rural e representam apenas 1% dos estabelecimentos. O aumento da desigualdade evidenciado pelo Censo se deu tanto pela redução do número de estabelecimentos – menos 2% – quanto pelo aumento da área que estes ocupam – mais 5,8% em relação à 2006. A despeito das desigualdades intrarregionais, estudos sobre a estrutura fundiária brasileira7 indicam entre os censos de 1975 e 2017, o Índice de Gini da Terra aumentou, passando de 0,855 para 0,864.
Os conflitos agrários são um espelho deste espectro de desigualdades. Dados parciais divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre o ano de 2020 registram 1.083 ocorrências de violência contra a ocupação e a posse das terras, as quais atingiram 130.137 famílias. As ocorrências de invasão de território têm nos indígenas as principais vítimas. Neste ano foram 178 ocorrências de invasão de territórios, afetando 55.821 famílias. Dos atingidos, 54,5% indígenas; 11,8% quilombolas; e 11,2% posseiros. O mesmo levantamento registrou 62 ações de pistolagem contra 3.859 famílias, quase o triplo em relação a 2019; e 18 assassinatos em conflitos no campo. O Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da CPT ainda aguarda informações de outras mortes, dentre elas um massacre que vitimou quatro pessoas, sendo três da mesma família, na saída de um garimpo no município de Aripuanã, no norte do Mato Grosso, no dia 21 de novembro último.
O relatório da CPT de 2019 registrou 1.833 conflitos no campo, o número mais elevado dos últimos cinco anos e 23% superior ao de 2018. O número de assassinatos chegou a 32, quatro a mais do que no ano anterior. Desse total, 28 estão associados a disputas por terra, três a conflitos trabalhistas e um à disputa por água.
Os números registrados pela CPT são resultado de violências civis e de Estado. Decorrem de ações deliberadas do governo federal de desmonte de políticas públicas, deslegitimação e criminalização das organizações sociais e reversão de direitos que datam da Constituição Federal de 1988 e de conquistas que a antecedem. Com relação à violência no campo, vale notar que foi extinta a Ouvidoria Agrária do Incra, substituída pela Câmara de Conciliação Agrária, que tem se omitido reiteradamente em todos os conflitos recentes.
Com as (muitas) idas e vindas da política nacional de reforma agrária, desde a sua criação em 1970 o Incra veio seguindo com suas obrigações, com ênfase na fiscalização cadastral que avalia a produtividade de propriedades rurais e faz a prospecção de terras passíveis de destinação para a reforma agrária.
Sem falsas expectativas em relação ao atual governo, a ADPF 769 vem denunciar justamente a interrupção de um processo árduo de lutas e conquistas históricas. Neste ato político, os movimentos e partidos que a subscrevem visam chamar a atenção pública sobre o tema, mobilizar trabalhadores do campo e da cidade e reforçar a atualidade da questão agrária no país.
* Nilton Tubino integra o Coletivo Agrário Nacional do PT e é assessor parlamentar do deputado federal Patrus Ananias (PT/MG).
Luiza Dulci é economista e integra o Coletivo Agrário Nacional do PT.
** Publicado originalmente na Revista Teoria e Debate, Edição 203 – Dezembro/2020.