PEC da Função Social da Propriedade é inconstitucional diz PFDC

Segundo Nota Técnica da PFDC/MPF, a proposta assinada pelo Senador Flávio Bolsonaro (PSL-SP) retrocede a regime de propriedade superado desde 1964.

Nota técnica publicada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão que integra o Ministério Público Federal, acusa a PEC 80, proposta por Flávio Bolsonaro (PSC/SP), de representar a “expressão genuína do retorno a um regime de propriedade superado pelo direito brasileiro pelo menos desde 1964”, atacando direitos fundamentais, “como a dignidade, a moradia, a saúde e a intimidade de todas as pessoas que ainda não têm terra para trabalhar e viver, e tampouco teto para morar”.

A proposição pretende alterar os artigos 182 e 186 da Constituição Federal,  retirando critérios para o cumprimento da função social da propriedade sobre imóveis urbanos ou rurais, além de dificultar a atuação do poder público na execução de desapropriação em casos de descumprimento, condicionando-a à prévia autorização do poder legislativo ou de decisão judicial.

A nota técnica aponta ainda que aprovação da proposta resultaria em impactos danosos sobre o meio ambiente ao reduzir exigências de proteção, comprometendo assim o direito das gerações atuais e futuras.

Segundo o documento publicado no início de outubro, ao tratar a propriedade privada sobre terras e imóveis como “direito sagrado” – portanto acima de direitos fundamenteis, como a dignidade humana, o acesso moradia ou a soberania alimentar da nação – a proposta de emenda constitucional do senador Bolsonaro “subverte o conceito de propriedade inscrito na Constituição de 1988” e “compromete todo o seu sentido no tocante à organização coletiva da vida”, além de ofender os princípios federativo e da separação de poderes e diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação desses imóveis.

Leia a seguir a íntegra da Nota Técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão:


PGR-00461814/2019
Nota Técnica nº 17/2019/PFDC/MPF, de 4 de outubro de 2019

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Assunto:
Proposta de Emenda à Constituição n°80, de 2019: redução das exigências relativas à função social da propriedade. Inconstitucionalidades. Cláusulas pétreas: subversão do sentido da Constituição e ofensa aos princípios federativo e da separação de poderes.

Ref.: Procedimento Administrativo n° 1.00.000.020954/2019-00

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES E SENHORAS PARLAMENTARES DO CONGRESSO NACIONAL

I – INTRODUÇÃO

O propósito da presente nota técnica é apontar a inconstitucionalidade da iniciativa consubstanciada na PEC n° 80/2019, que vem com a seguinte redação:

Art. 1º  Os artigos 182 e 186 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 182 . ……………………………………………………………… .
§2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor:
I – parcelamento ou edificação adequados;
II – aproveitamento compatível com sua finalidade;
III – preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico,artístico, cultural ou paisagístico.
§
5° O descumprimento da função social de que trata o § 2° somente será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Poder Legislativo, ou por decisão judicial.
§
6° A desapropriação por descumprimento da função social será feita pelo valor de mercado da propriedade urbana.” (NR)
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, ao menos um dos seguintes requisitos:
§
1º O descumprimento da função social de que trata o caput somente será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Poder Legislativo, ou por decisão judicial.
§
2° A desapropriação por descumprimento da função social será feita pelo valor de mercado da propriedade rural.”

Segundo o autor da proposta, as sugestões no tocante à função social da propriedade urbana e rural têm o objetivo de “diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.

A tese a ser adiante desenvolvida é a de que a proposta subverte o conceito de propriedade inscrito na Constituição de 1988 e, com isso, compromete todo o seu sentido no tocante à organização coletiva da vida, além de incorrer em ofensa aos princípios federativo e da separação de poderes.

II – ASPECTOS INICIAIS[1]

O conceito de “propriedade” está longe de ser unívoco, sujeitando-se a contextos histórico-legais e sociopolíticos. Costuma-se atribuir a Locke o desenvolvimento da ideia do “direito natural à propriedade”. O Estado, de acordo com essa visão, foi fundado primariamente para ratificar e proteger os direitos territoriais adquiridos pela lei natural. Na Europa, o direito natural à propriedade foi codificado no artigo 17 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e depois incorporado no Código Napoleônico de 1804, sempre com a ideia de ser um direito inviolável e sagrado, do qual nenhuma pessoa podia ser privada, salvo no caso de necessidade pública, legalmente investigada, claramente requerida e mediante o pagamento de prévia e justa compensação.

No final do século XIX e começo do século XX, começam a surgir reações ao conceito absoluto de propriedade inscrito nesses documentos, exatamente pelas iniquidades dele decorrentes. Léon Duguit, apoiando-se no pensamento de Augusto Comte, segundo o qual as pessoas em sociedade só têm deveres umas para com as outras, introduz a noção de “função social da propriedade”. Na compreensão de Duguit, não há um direito subjetivo à propriedade que nasce ilimitado e, posteriormente pode ser modelado por uma função social, que operaria como limite externo a ele. Ao contrário, o direito de propriedade já nasce conformado pelo atributo de sua função social.

Tal formulação de Duguit vai ter eco na Constituição mexicana de 1917, que é considerada o primeiro exemplo mundial do que veio a ser chamada “constitucionalismo social”, e posteriormente acompanhada por vários países na Europa e na América Latina.

Essa última região, desde o início do século XX, registrou inúmeros esforços para aliviar os problemas e conflitos inerentes a um histórico de forte concentração de terras, e que ganharam força com a introdução da “Doutrina da Função Social” no léxico da filosofia política e sua incorporação nas políticas agrárias.

No Brasil, a função social da propriedade está prevista de forma expressa em textos constitucionais desde 1967 (art. 157, III[2]), e a Constituição de 1934 já condicionava de alguma forma aquele direito a um interesse social ou coletivo[3]. Em 1942, ao analisar a constitucionalidade do até hoje vigente Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que regula o instituto do tombamento, o STF já considerava legítima a redefinição do conteúdo do direito de propriedade[4]. Em seu voto, o Ministro Relator Castro Nunes destacou que o direito de propriedade tem o conteúdo delimitado na lei: “Estão nas tendências contemporâneas refletidas nas legislações de todos os povos restrições extensas, desconhecidas da concepção clássica do direito de propriedade, com base no Código Civil Francês, restrições que o espírito jurídico vai consentindo e que, como observa Brugi, vão crescendo de dia para dia por efeito de uma maior valorização do interesse público”.

Em 30 de novembro de 1964, é promulgada a Lei 4.504, o Estatuto da Terra, que agrega a função social ao conceito de propriedade. Confira-se a literalidade do texto:

Art. 2º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nelalabutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d)observa as disposições legais que regulam as justas relações detrabalho entre os que a possuem e a cultivem.

A Constituição de 1988, como Constituição social que é, além de seguir a linha das suas predecessoras, vai cobrar intervenção do Estado para garantir a função social da propriedade no paradigma dos chamados “direitos humanos de segunda e terceira geração”, assim considerados os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Dessa forma, passa a alcançar também o meio urbano.

III – PROPRIEDADE PRIVADA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

A despeito da localização topográfica do direito de propriedade, mesmo com a sua conformação atual, de observância à função social, há muita controvérsia sobre se tratar de um direito fundamental, concorrente com os demais. Ferrajoli[5] aponta diferenças estruturais entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais.

A primeira diferença consistiria no fato de que os direitos fundamentais – nos quais se inclui tanto os direitos à liberdade, à identidade e à vida, como o direito a adquirir e dispor dos bens objeto de propriedade – são direitos universais (omnium), no sentido lógico da quantificação universal da classe dos sujeitos que são seus titulares; já os direitos patrimoniais são direitos singulares (singuli), no sentido, também lógico, de que para um deles existe um titular determinado, com exclusão de todos os demais. Assim, os primeiros são reconhecidos a seus titulares em igual forma e medida, enquanto os segundos pertencem a cada um de maneira diversa, tanto pela qualidade quanto pela quantidade.

A segunda diferença é que os direitos fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis, personalíssimos. Ao contrário, os direitos patrimoniais são disponíveis por natureza, negociáveis e alienáveis. Estes se acumulam; aqueles permanecem invariáveis. Não é possível, juridicamente, ser mais livre, mais eu, ter direito a mais vida. No entanto, a ordem jurídica consente em que alguém seja mais rico.

A terceira diferença está em que os direitos patrimoniais, exatamente porque disponíveis, estão sujeitos a vicissitudes, i.e., destinados a ser constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos. Já os direitos fundamentais têm seu título imediatamente na lei. Assim, enquanto os direitos fundamentais são normas, os direitos patrimoniais são predispostos por normas. Aqueles decorrem direta e imediatamente de regras gerais de nível habitualmente constitucional, enquanto estes dependem da intermediação de um ato (a aquisição da propriedade, por exemplo, depende de registro imobiliário).

De modo que esses direitos, a par de não serem equivalentes, têm, entre si, relação óbvia de hierarquia, homologada pelo próprio texto constitucional.

O que constituições de países capitalistas inscrevem como direito fundamental é o direito de todos a serem proprietários. Nesse sentido, não há como se recusar o caráter universal e indisponível de tal direito. Diferentemente, contudo, é o direito de propriedade em si, que, por sua própria natureza, não pode ser concebido, logicamente, como fundamental e, portanto, universal.

Também no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, o direito de propriedade não se encontra reconhecido nem no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, nem no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

E, a despeito de previsto no artigo 21 da Convenção Americana, junto com a sua função social, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos publicou texto[6], onde consigna:

Sem pretender negar sua importância ou sua função na estrutura da sociedade, a propriedade é um direito que, assim como muitos outros direitos, não corresponde à essência dos direitos humanos, enquanto direitos inerentes à pessoa como tal, que não dependem de um título de propriedade e que não podem ser renunciados e alienados, como pode ser a propriedade; este é um direito que não tem que ver com a dignidade intrínseca do ser humano, com o qual nem todos nascemos e que é desconhecido por milhões de despossuídos. Se trata de um direito que não deriva da condição de ser humano, sim do fato de ter ou possuir determinados bens, cuja incorporação em um catálogo de direitos humanos tende a trivializar a importância e a hierarquia desses direitos”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu o Parecer Consultivo OC-22, sobre a impossibilidade de acesso de pessoas jurídicas ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Na ocasião, o Juiz Roberto F. Caldas emitiu voto adesivo do seguinte teor:

2. Inicialmente, é importante atentar para algo que pode ser entendidocomo uma “baixa receptividade” do direito à propriedade privada no sistema interamericano de direitos humanos. Neste sentido, desde o início, notável é o fato que este foi um dos direitos mais discutidos quando da proposta do projeto original da Convenção Americana pela respectiva Comissão, ainda em 1969:

 

“La discusión de este artículo, que consagra el derecho a la propiedad privada, fue tal vez uno de los más extensamente debatidos en el seno de la Comisión. Las delegaciones manifestaron, desde el primer momento, la existencia de tres corrientes ideológicas que podrían resumirse en esta forma: una tendencia a suprimir del texto del proyecto toda referencia al derecho de propiedad, a semejanza del Pacto de los Derechos Civiles y Políticos de las Naciones Unidas; otra tendencia a consagrar el texto del proyecto tal y como fue presentado, y una tercera posición conciliadora, que reforzará la función social de la propiedad.

Después de un prolongado cambio de opiniones sobre este apasionante tema, prevaleció el criterio mayoritario de incorporar el derecho de propiedad en el texto de la Convención tal como aparece en el proyecto, agregando al primero de sus dos párrafos la expresión de que, tanto la usura como cualquier otra forma de explotación del hombre por el hombre serán prohibidas por la ley.”

 

3. As divergências apenas foram superadas, de modo a inserir estedireito no rol de direitos protegidos pela Convenção Americana, mediante a inclusão de um conceito genérico de direito à propriedade privada enquanto “direito ao uso e gozo de bens” e a relativização do direito em face do “interesse social” e da “utilidade pública”.

 

4. Esta resistência à incorporação do direito à propriedade privada éobservada ainda nos sistemas universal e europeu de direitos humanos. Embora o direito à propriedade privada tenha sido estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 17, este acabou não sendo contemplado pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) ou pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). No que diz respeito ao sistema europeu de direitos humanos, o direito acabou por ser excluído da versão final da Convenção Europeia de Direitos Humanos, sendo incluído apenas em 1952, pelo I Protocolo Adicional,2 de forma consideravelmente restrita, inclusive dando ao Estado amplos poderes para restringir o gozo de tal direito.

5. Apesar de o sistema interamericano haver inovado neste sentido,incorporando o direito à propriedade privada na Convenção Americana, existem claras limitações a tal direito. A primeira corresponde, como anteriormente dito, à relativização do direito, decorrente do próprio dispositivo que o estabelece. Este traz em seus incisos previsões de restrição ao gozo do direito à propriedade privada tendo em vista o interesse social e a utilidade pública, inclusive estabelecendo a necessidade de pagamento de justa indenização quando da privação do direito:

Artículo 21.  Derecho a la Propiedad Privada

  1. Toda persona tiene derecho al uso y goce de sus bienes. Laley puede subordinar tal uso y goce al interés social.
  2. Ninguna persona puede ser privada de sus bienes, exceptomediante el pago de indemnización justa, por razones de utilidad pública o de interés social y en los casos y según las formas establecidas por la ley.
  3. Tanto la usura como cualquier otra forma de explotación delhombre por el hombre, deben ser prohibidas por la ley.

6. Com isso, ressalte-se que embora a propriedade privada constitua um dos direitos protegidos pela Convenção Americana, trata-se de um direito com claras limitações no plano internacional. A garantia ampla e generalizada deste direito poderia acabar por converter esta Corte de Direitos Humanos em um tribunal muito mais demandado por causas empresariais ou de corporações, por intermédio de seus sócios ou associados que aleguem perda patrimonial ou de propriedade, desvirtuando, assim, o objetivo e razão de ser de tais instituições: julgar direitos humanos, os mais fundamentais.
7. Para que isso não aconteça, mister limitar a abrangência do referido direito no âmbito interamericano, definindo os bens que podem, ou não, ser pleiteados perante o sistema interamericano de direitos humanos. Não sendo expressa a Convenção Americana neste sentido, a Corte poderia haver aproveitado a oportunidade para explicitar em que tipo de situações o direito à propriedade pode constituir objeto de pleito perante o sistema interamericano.
8. Apesar de indispensável a possibilidade de defesa – inclusive judicial – de todos os bens legalmente garantidos ao indivíduo com base no direito à propriedade privada, esta atuação jurisdicional não cabe a tribunais de direitos humanos. Isto é, caberia aos ordenamentos jurídicos internos e ao respectivo sistema judicial de cada Estado a garantia da defesa do direito à propriedade de forma universal; aqui, perante o Sistema Interamericano, somente aquela parte da propriedade mais nuclear.
9. À Corte e ao sistema interamericano, por outro lado, restaria a proteção judicial de bens especialmente protegidos pela legislação interna de muitos Estados, como é o caso de bens impenhoráveis e inalienáveis. A especial proteção dedicada a estes bens deve-se ao fato de estes constituírem o chamado “mínimo existencial”, cujo conceito está atado ao princípio da dignidade (artigo 11 da Convenção Americana), correspondente às necessidades mais básicas e essenciais da pessoa e de sua família.
10. O surgimento do ideal de “mínimo existencial” ganhou força a partir do II Pós-guerra, na doutrina de Otto Bachof, sustentando que a dignidade humana não se limita à garantia da liberdade, mas engloba também, necessariamente, os recursos materiais indispensáveis para a manutenção de uma vida digna. Pouco tempo depois da formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht) reconheceu o indivíduo como titular de direitos e obrigações no aspecto de manutenção de suas condições de existência.
11. Em outras palavras, deve ser garantida a atuação da Corte em defesa do direito à propriedade sempre que restrições a este direito ameacem necessidades básicas indispensáveis à manutenção da existência digna. Considerando que atentaria aos direitos humanos privar o indivíduo de parcela patrimonial mínima indispensável, apenas tais casos recairiam na esfera de competência da Corte.
12. A definição do que é, de fato, abarcado pela noção de mínimo existencial é determinada pelo contexto socioeconômico particular de cada Estado, pelo que cabe especialmente aos ordenamentos jurídicos internos a proteção do conjunto de bens que garantem ao proprietário a manutenção de sua existência não apenas física, como social, política e cultural digna.
13. Apesar de reconhecer a importância e absoluta necessidade da proteção judicial do direito à propriedade, esta Corte não pode tomar para si, ou aceitar que lhe outorguem, a responsabilidade de decidir sobre as mais diversas questões relativas ao direito à propriedade. Se assim o fizesse, acabaria por se desviar de sua função primária, a proteção de direitos humanos, aqueles mais essenciais da pessoa. Por isso, já se deveria delimitar a abrangência do artigo 21 da Convenção Americana, restringindo a admissibilidade de casos junto ao sistema interamericano de direitos humanos a esse núcleo impenhorável ou inalienável de bens.
14. Para que casos relativos ao direito à propriedade possam serconhecidos pelos órgãos que compõem o sistema interamericano de direitos humanos, estes devem: (i) estar limitados aos bens necessários à vida digna do indivíduo ou (ii) configurar bem vital para o desenvolvimento de atividade profissional, desde que também necessária para garantir a vida digna da pessoa.
15. Não se pode falar em dignidade da pessoa jurídica em seara dedireitos humanos. Por isso a via judicial comum nacional, e não a internacional dos direitos humanos, é que estará acessível a conhecer de lesões aos direitos de pessoa jurídica.
16. Concluo, portanto, que a intenção do presente voto não é propor acriação de um rol taxativo de bens inatingíveis; a definição deve sempre dialogar com a realidade socioeconômica e com a visão nacional do que representa o interesse geral, trazido no conjunto normativo democraticamente produzido. Visa, isto sim, estabelecer o princípio de que não são todas as propriedades que merecem proteção pelo sistema interamericano, pois certamente exclui propriedades supérfluas, suntuárias, luxuosas, vale dizer, que vão além das necessidades elementares das pessoas, aquelas garantidoras do mínimo existencial e da vida digna.”

Da mesma forma, como se desenvolverá melhor adiante, é inconcebível, no contexto da Constituição de 1988, que o direito de propriedade possa ser invocado de modo a interferir em um conjunto de direitos e deveres tendentes a alcançar maior justiça social.

IV – A INCOMPATIBILIDADE DA PEC 80 COM O SENTIDO E COM CLÁUSULAS PÉTREAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Inicialmente, convém recordar que a compatibilidade de novas normas com o texto constitucional depende de sua adequação com o sentido da Constituição. Daniel Sarmento e Claudio Pereira de Souza Neto[7] apontam:

O princípio da unidade da Constituição deriva do elemento sistemático de interpretação constitucional. De acordo com o princípio da unidade, a Constituição deve ser interpretada não como conjunto assistemático de preceitos, mas como um todo integrado de normas que se completam e se limitam reciprocamente. Como esclarecia Hesse, “a conexão e a interdependência dos elementos individuais da Constituição fundamentam a necessidade olhar nunca somente a norma individual, senão sempre também a conexão total na qual ela deve ser colocada”. O Tribunal Constitucional alemão chegou a afirmar que “o princípio mais importante da interpretação é a unidade da Constituição, como unidade de um conjunto com sentido teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal”.

O Supremo Tribunal Federal tem diversos julgados nos quais normas provenientes de emendas têm a sua constitucionalidade aferida a partir da análise do sentido da Constituição, inclusive de seus princípios implícitos. A título meramente exemplificativo:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF.

1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo.

2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal.

3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).

4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e “a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral” (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).

5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).

6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.

7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência. (ADI 3685, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2006, DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL02241-02 PP-00193 RTJ VOL-00199-03 PP-00957)

Pois bem, no regime constitucional atual, marcado por forte compromisso com a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I), com a erradicação da pobreza e com a redução das desigualdades de todos os tipos (art. 3º,III), o instituto da propriedade privada submete-se a inúmeras conformações: tem que atender à sua função social (art. 5º, XXIII, e 186); cede diante de territorialidades indígenas (art. 231, § 6º); é transferida, mediante desapropriação, às comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT e STF: ADI 3239); está sujeita a confisco quando nela forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo (art. 243); e tem que atender “às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, § 2º).

Trata-se, como dito acima, de uma Constituição de forte acento social, e a PEC 80 é expressão genuína do retorno a um regime de propriedade superado pelo direito brasileiro pelo menos desde 1964. Como enunciado na exposição de motivos que a acompanha, a propriedade é tratada como direito sagrado, concepção que encontra alguma ressonância em Constituições liberais, mas que é completamente incompatível com a Constituição brasileira.

De resto, a propriedade, tal como concebida na PEC 80, praticamente inviabiliza o gozo de muitos outros direitos fundamentais, como a dignidade, a moradia, a saúde e a intimidade de todas as pessoas que ainda não têm terra para trabalhar e viver, e tampouco teto para morar. Sem falar no impacto que tem sobre o meio ambiente – cuja proteção é agora diminuída –   direito das gerações atuais e futuras. De modo que, em sua generalidade, a PEC 80 encontra proibição de tramitação no art. 60, § 4º, IV, da CR.

V – A PEC 80 E A OFENSA AO REGIME FEDERAL

Há forte consenso doutrinário no sentido de que a Constituição de 1988 buscou resgatar da Constituição de 1946 a ideia do federalismo cooperativo, mas com grande aposta nas soluções locais. Daí a inclusão, pela primeira vez na história constitucional brasileira e quiçá internacional, dos municípios entre os entes que compõem a união indissolúvel da República Federativa do Brasil. É de sua competência, dentre outros, “legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, I) e “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (art. 30, VIII).

O Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que a ofensa à forma federativa de Estado se configura quando não observada a divisão de competências estabelecidas no próprio texto constitucional. Confira-se:

CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. NORMAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DA BAHIA, COM REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL 7/1999. COMPETÊNCIAS RELATIVAS A SERVIÇOS PÚBLICOS. OCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIAS MUNICIPAIS (ART. 30, I E V). PARCIAL PROCEDÊNCIA.

1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse.

2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos – União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios – e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I).

3. O art. 59, V, da legislação impugnada, ao restringir o conceito de “interesse local”, interferiu na essência da autonomia dos entes municipais, retirando-lhes a expectativa de estruturar qualquer serviço público que tenha origem ou que seja concluído fora do limite de seu território, ou ainda que demande a utilização de recursos naturais pertencentes a outros entes.

4. O artigo 228, caput e § 1º, da Constituição Estadual também incorre em usurpação da competência municipal, na medida em que desloca, para o Estado, a titularidade do poder concedente para prestação de serviço público de saneamento básico, cujo interesse é predominantemente local. (ADI 1.842, Rel. Min. LUIZ FUX, Rel. P/ acórdão Min. GILMAR MENDES, DJe de 13/9/2013).

5. As normas previstas nos artigos 230 e 238, VI, não apresentam vícios de inconstitucionalidade. A primeira apenas possibilita a cobrança em decorrência do serviço prestado, sem macular regras constitucionais atinentes ao regime jurídico administrativo. A segunda limita-se a impor obrigação ao sistema Único de Saúde de participar da formulação de política e da execução das ações de saneamento básico, o que já é previsto no art. 200, IV, da Constituição Federal.

6. Medida Cautelar confirmada e Ação Direta julgada parcialmente procedente.[8]

 

Recurso extraordinário. Acórdão proferido em ação direta de inconstitucionalidade julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Número de Vereadores na Câmara Municipal. Previsão na Lei Orgânica Municipal. Artigo 29, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. Redação conferida pela Emenda Constitucional nº 58/09. Existência de limites máximos por faixa populacional. Ausência de limite mínimo constante da redação antiga no dispositivo constitucional. Homenagem ao princípio da autonomia municipal. Recurso extraordinário provido para declarar a constitucionalidade da Emenda nº 43 à Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto que reduziu de 27 para 22 o número de representantes na Câmara Municipal. Modulação dos efeitos. Aplicação do julgado a partir das eleições subsequentes ao julgamento do recurso.

1. O art. 29, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, em sua redação original, estabelecia três faixas populacionais para nortear as quantidades máximas e mínimas de vereadores em cada município, devendo esse, atendendo ao princípio da proporcionalidade, estabelecer o quantitativo suficiente ao atendimento das demandas locais.

2. A amplitude elastecida do espaço de decisão legislativa quanto ao número de vereadores permitiu distorções no sistema, levando o Congresso Nacional a editar a Emenda Constitucional nº 58, de 23 de setembro de 2009, que conferiu nova redação para o art. 29, inciso IV, da CF/88, ampliando de três para vinte e cinco as faixas populacionais que orientariam essa fixação e estabelecendo tão somente o limite máximo do número de vereadores para cada faixa populacional. A intenção do constituinte reformador foi conferir objetividade no estabelecimento do número de vereadores, sem, contudo, coartar a autonomia dos municípios, princípio que foi valorizado pela Constituição de 1988, permitindo certa flexibilidade na definição do número de representantes das casas legislativas municipais.

3. A Corte de origem, a partir de uma interpretação das alíneas do inciso IV do art. 29 da Constituição Federal, assentou que a fixação do número de vereadores, no âmbito dos municípios no Estado de São Paulo, deveria observar não apenas o quantitativo máximo correspondente ao número de habitantes do município expresso em cada alínea, mas também a quantidade mínima de representantes, que seria aquela constante da alínea imediatamente anterior. Mesclou-se o critério atual de limites máximos estabelecidos de forma esmiuçada e definida com o critério da redação constitucional anterior, concluindo que o número de vereadores no Município de Ribeirão Preto deveria estar compreendido entre 25 e 27 representantes.

4. A referida interpretação não encontra respaldo no sistema normativo constitucional. A uma porque inexistente norma nesse sentido na Constituição, não podendo, sequer, ser extraída de dispositivos constitucionais correlatos, uma vez que, na redação atual, não mais se estabeleceu limites mínimos à fixação do número de vereadores. A duas, porque criou regra limitadora de um princípio insculpido na Constituição Federal deveras relevante no modelo federativo brasileiro, qual seja a autonomia dos entes municipais. A EC nº 58/09 buscou viabilizar, exatamente, que municípios de realidades distintas, apesar de possuírem número aproximado de habitantes, pudessem fixar quantitativo de vereadores compatível com sua realidade, assegurando-se, ao mesmo tempo, o cumprimento dos princípios da proporcionalidade, da autonomia municipal e da isonomia. Para tanto, é que foram retirados do texto constitucional os limites mínimos, permitindo certa flexibilidade na atuação das Câmaras Municipais, sem que se corresse o risco de ser malferida a razoabilidade na fixação do número de vereadores.

5. No caso dos autos, verifica-se que a Emenda nº 43 à Lei Orgânica Municipal foi editada em 6 de junho de 2012, ao tempo, portanto, da vigência do art. 29 da CF/88, já com a redação conferida pela EC nº 58/2009. A norma impugnada, atendendo ao limite máximo de 27 vereadores, previsto na alínea j do inciso IV do art. 29 da Carta Magna (o Município de Ribeiro Preto tem população de 649.556 habitantes), reduziu de 27 para 22 o número de vereadores na Câmara Municipal.

6. Também não se observa, na redução perpetrada, ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tendo em vista que o ente municipal adotou quantitativo que não se distancia excessivamente do limite máximo previsto na Constituição.

7. Necessidade de modulação dos efeitos da decisão para que a redução perpetrada pela Emenda nº 43, de 6 de junho de 2012, à Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto, somente passe a valer a partir das eleições subsequentes ao julgamento do recurso extraordinário.

8. Recurso extraordinário provido para reformar o acórdão recorrido e julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, declarando-se a constitucionalidade da Emenda nº 43, de 6 de junho de 2012, à Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto.[9]

Pela proposta, o artigo 182, §2°, passaria a ter a seguinte redação:

§2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor:
I – parcelamento ou edificação adequados;
II – aproveitamento compatível com sua finalidade;
III – preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico,artístico, cultural ou paisagístico.

Para facilitar a análise, reproduz-se a atual redação da norma que se pretende alterar:

§2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

A alteração retira da esfera de competência de cada município parte considerável da definição das suas normas fundamentais de ordenação urbana. A própria norma constitucional passaria a delimitar diretamente, em seus incisos, as hipóteses em que a propriedade urbana deixaria de atender sua função social. Assim, os gestores municipais seriam ceifados de importante instrumento apto a compatibilizar o usufruto das propriedades privadas com o interesse público. Consequentemente, aspectos da realidade local de cada município deixariam de ter relevância na definição da função social das propriedades urbanas.

Há aqui a mais séria interferência na autonomia municipal, especialmente na perspectiva dos sujeitos implicados. A cidade, nela incluída a possibilidade de sua expansão e desenvolvimento, é uma construção coletiva que se traduz no plano diretor. Essa preocupação também está expressa no art. 29, XII[10], da Constituição de 1988, que passou a exigir a efetiva participação popular no planejamento municipal.

A propósito, Raquel Rolnik[11] destaca:

“A formulação do planejamento como instrumento de reforma urbana tinha como finalidade incidir sobre o modelo de desenvolvimento urbano, construído ao longo de quatro décadas de urbanização intensa e marcado pela exclusão político-territorial de parcelas majoritárias da população. Implicava, portanto, a “quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda e às oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupação do solo urbano, assegurando a todos o direito à cidade como riqueza social em contraposição a sua mercantilização”.

Também procurava incidir sobre o modelo de gestão do território e sobre a definição de políticas urbanas na direção da construção da cidadania, para além de seu aspecto normativo, voltado para os procedimentos político-eleitorais. Para isso, buscava promover, no âmbito de cada território, a produção de um sentido coletivo de sua destinação e controle, confrontando um modelo de sociabilidade individualista que não respeita o interesse público.”

(…)

“A experiência de constituição de políticas no Conselho Nacional das Cidades, assim como os processos de planejamento territorial participativo, apostava na construção de espaços públicos como locus de exercício da solidariedade cívica e de conquista do “direito a ter direitos” pelos muitos brasileiros que se viam inseridos de forma precária nas cidades e políticas urbanas. A agenda desafiava a máquina pública, burocracias estatais, partidos e lideranças políticas a produzir instituições capazes de gerar trocas e acordos entre os diferentes atores locais a respeito do futuro de sua sociedade, promover redes de atores trabalhando sobre problemas públicos, instalar instrumentos de mobilização dos cidadãos, criar normas para garantir a implementação destes acordos, ter capacidade estratégica de articulação política e, sobretudo, ganhar a confiança dos atores e reduzir as incertezas do sistema político.”[12]

A tramitação da PEC, também nesse aspecto, encontra obstáculo no art. 60, § 4º, I, da CR.

VI – A PEC 80 E À OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES

Daniel Sarmento[13], muito embora reconheça que os desafios do Estado contemporâneo levem a uma releitura do princípio da separação de poderes, com possibilidade de novos arranjos institucionais, observa:

Como destacou Luís Roberto Barroso, insere-se no núcleo básico da separação de poderes a exigência de “especialização funcional”, que “inclui a titularidade, por cada poder, de competências privativas”. Esta imposição constitucional também se projeta sobre as competências do Poder Executivo, as quais envolvem funções administrativas que, pela sua própria natureza, só devem ser por ele desempenhadas. Trata-se da chamada reserva de administração, que, nas palavras de Canotilho, “compreende um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento”.

Arícia Fernandes Correia definiu a reserva de administração como “um espaço autônomo – e, por isso, insubordinado – de exercício da função administrativa, normativa e concretizadora da tutela de direitos fundamentais, infenso à sub-rogação legislativa e jurisdicional, à vista do princípio da separação de poderes”. O Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a existência deste princípio em reiteradas decisões, já tendo qualificado a reserva de administração como “decorrência do conteúdo nuclear do princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º).

Pela proposta, seja em meio urbano, seja em meio rural, o descumprimento da função social somente será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Poder Legislativo, ou por decisão judicial. No entanto, trata-se de atribuição administrativa por excelência, que se desenvolve no âmbito de procedimentos específicos para fins de desapropriação. Compartilhá-la com outros poderes é avançar na “reserva de administração” e, com isso, atingir o núcleo insuperável da separação de poderes.

O Supremo Tribunal Federal tem vasta jurisprudência sobre o tema:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO DECISÃO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA PREVALECENTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONSEQÜENTE INVIABILIDADE DO RECURSO QUE A IMPUGNA – SUBSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS QUE DÃO SUPORTE À DECISÃO RECORRIDA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

– O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação “ultra vires” do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.[14] 

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 313 DA LEI ORGÂNCIA DO DISTRITO FEDERAL. DESAPROPRIAÇÃO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. SEPARAÇÃO DE PODERES. PROCEDÊNCIA.

É inconstitucional, por invadir a competência legislativa da União e violar o princípio da separação dos poderes, norma distrital que submeta as desapropriações, no âmbito do Distrito Federal, à aprovação prévia da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.[15]

A “reserva de administração” alcança, da mesma forma, o poder Judiciário. Sunstein e Vermeule chamam a atenção para o fato de que os principais teóricos da hermenêutica constitucional passaram ao largo da questão relativa à capacidade institucional do Poder Judiciário tomar determinadas decisões e avaliar os efeitos sistêmicos delas decorrentes.[16]

O Judiciário, com as habilidades que lhe são próprias, não é a instituição adequada para deliberar sobre questões técnicas de política urbana e de política fundiária e de reforma agrária.

De modo que, também nesse aspecto, a PEC 80 encontra-se impossibilitada de prosseguir, diante do que prescreve o art. 60, § 4º, III, da CR.

VII – PEDIDO

Pelo exposto, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão submete essas considerações ao Parlamento brasileiro, para eventual subsídio na análise da PEC n° 80/2019.

Brasília, 4 de outubro de 2019.

DEBORAH DUPRAT
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

DANIEL MEDEIROS SANTOS
Procurador da República
GT Reforma Agrária/PFDC

JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR
Procurador da República
GT Reforma Agrária/PFDC

JORGE LUIZ RIBEIRO MEDEIROS
Procurador da República
GT Reforma Agrária/PFDC

PATRÍCIA DAROS XAVIER
Procuradora da República
GT Reforma Agrária/PFDC

SADI FLORES MACHADO
Procurador da República
GT Reforma Agrária/PFDC

THALES CAVALCANTI COELHO
Procurador da República
GT Reforma Agrária/PFDC

[1] O esboço histórico objeto desse capítulo foi colhido em artigo: Tierra y Libertad: The Social Function Doctrine and Land Reform in Latin America .https://scholarship.law.ufl.edu/cgi/viewcontent.cgi? referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=1287&context=facultypub

[2] “Art. 157 – A ordem econômica tem por fim realizar justiça social, com base nos seguintes princípios: (…) III – função social da propriedade”.

[3] “Art. 113 (…) 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior”. A Constituição de 1937 previu que o conteúdo da propriedade seria delimitado pela lei, porém o dispositivo (art. 122, 14) foi suspenso pelo Decreto nº 10.358, de 1942, que declarou o estado de guerra em todo o território nacional. A Constituição de 1946, por sua vez, estipulou, em seu art. 147: “Art 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação 7.377. Rel. Min Castro Nunes. Julgada em 17.06.1942. RDA v. 2, n. 1, 1945, p. 109. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8121/6938> Acesso em 11 nov. 2017.

[5]  FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías – la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2001

[6] https://www.iidh.ed.cr/BibliotecaWeb/Varios/Documentos.interno/BD_125911109/SI_proteccion_ddhh_3e.pdf 

[7]  “Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho”. Belho Horizonte: Fórum, 2012, p. 436

[8] ADI 2077, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2019, DJe 16-092019.

[9] RE 881422/SP. Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 7/2/2018, Pleno, DJe 16-05-2018.

[10] “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(…)

XII – cooperação das associações representativas no planejamento municipal; (Renumerado do inciso X, pela Emenda Constitucional nº 1, de 1992)”

[11] Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças – 1ª ed. – São Paulo: Boimtempo, 2015, p. 318.

[12] Idem, pp. 322/323.

[13]  Direitos, Democracia e República – Escritos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018,

[14] RE 427574 ED, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, DJe 13-022012.

[15] ADI 969, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2006, DJ 20-10-2006.

[16] SUNSTEIN, Cass e VERMEULE, Adrian. Interpretations and Institutions. John M. Olin Law & Economics Working Paper nº 156. Acessível em http://www.law.uchicago.edu/Lawecon/index.htlm.

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