Câmara faz ofensiva contra direito das brasileiras com PL da gravidez infantil
PT condena projeto e faz defesa de mulheres e crianças vítimas de violência sexual; movimentos sociais realizam protestos em capitais
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Em mais um ato que atenta contra o direito de mulheres e crianças, a Câmara dos Deputados aprovou na noite de quarta-feira (12), em regime de urgência, o Projeto de Lei 1904/24. De autoria do deputado da extrema direita Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o PL quer alterar o Código Penal Brasileiro para aumentar a pena em caso de interrupção da gravidez após a 22ª semana de gestação, até em casos de violência sexual, equiparando à pena de homicídio.
Em outras palavras: mulheres, adolescentes e crianças, que foram violentadas e engravidaram do estuprador, serão obrigadas a seguir com a gestação. A ideia dos parlamentares favoráveis à medida é que a interrupção da gravidez seja equiparada ao crime de homicídio simples, que tem plena de reclusão de seis a 20 anos. A proposta representa uma ameaça real ao direito das brasileiras que foram violentadas sexualmente.
A legislação brasileira prevê a interrupção legal da gestação em casos de gestação de feto anencéfalo, decorrente de estupro ou de risco de vida da pessoa gestante. Os dois últimos casos estão previstos no Artigo 128 do Código Penal e não estabelecem limite gestacional.
No X, a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, condenou o projeto de lei: “Pessoalmente sou contra o aborto, mas defendo o que está previsto na nossa legislação. O projeto de lei, que teve sua urgência aprovada de forma atabalhoada na quarta-feira, mexe com a legislação em vigor”, afirmou a parlamentar.
“Além de aplicar uma pena maior para a vítima de estupro que faz aborto do que para o estuprador, impede que uma menina ou mulher estuprada possa fazer aborto após 22 semanas de gravidez. É importante saber que 61% dos estupros são contra meninas de até 13 anos, que muitas vezes por medo, vergonha ou desconhecimento a gravidez só é descoberta quando está mais avançada. É desumano obrigar uma criança a ser mãe de outra criança, ainda mais quando a gravidez é resultado de violência”, afirmou a deputada federal do PT-PR.
Pessoalmente sou contra o aborto, mas defendo o que está previsto na nossa legislação. O projeto de lei, que teve sua urgência aprovada de forma atabalhoada na quarta feira, mexe com a legislação em vigor. Além de aplicar uma pena maior para a vítima de estupro que faz aborto do…
— Gleisi Hoffmann (@gleisi) June 14, 2024
Também no X, a secretária nacional de mulheres do PT, Anne Moura, se manifestou contrariamente à proposta: “Não podemos retroceder! Diga não ao PL da Gravidez Infantil! A aprovação da urgência do PL 1904/24 é uma afronta a todas as conquistas das mulheres. Não nos calaremos. Crianças não são mães, estupradores não são pais!”
Não podemos retroceder!
Diga não ao PL da Gravidez Infantil!A aprovação da urgência do PL 1904/24 é uma afronta a todas as conquistas das mulheres. Não nos calaremos. Crianças não são mães, estupradores não são pais! #criançanãoémãe #pl1904não #pldoestupradornão pic.twitter.com/2ydsKzHGVS
— Anne Moura (@annemouraam) June 14, 2024
Moura ainda destaca que a pena para o estuprador é de seis a 10 anos. Já para as mulheres que interrompem a gestação, a reclusão pode chegar a até 20 anos. “Infelizmente, no Brasil, a violência sexual contra mulheres e crianças ainda é uma chaga, e o campo ultraconservador deseja ceifar o direito das brasileiras com mais esta manobra capitaneada pela extrema direita. As mulheres do PT sempre irão defender a vida umas das outras. Não podemos ignorar as tristes estatísticas que demonstram que a maioria dos casos de estupro ocorrem por familiares e conhecidos da vítima. Se o Congresso votar favoravelmente este PL ele estará dando um triste recado para as mulheres: o de que elas estão sozinhas”, afirmou.
“Nós vamos trabalhar para que o projeto não seja votado pela Câmara Federal porque no dia 12, à noite, o que foi apreciado foi o regime de urgência e não o mérito da proposta. É importante ressaltar que a bancada do PT vai articular e lutar para que esse PL absurdo não seja votado no plenário”, afirmou o deputado federal (PT-SP) e secretário de comunicação do PT, Jilmar Tatto.
A Bancada Feminina do PT na Câmara também se manifestou: “A criminalização do aborto legal, nos casos de gravidez resultante de estupro após a 22ª semana, representa um retrocesso sem precedentes, violando gravemente os direitos fundamentais e impondo tratamento desumano e degradante pelo Estado às meninas e mulheres brasileiras. Somos pela defesa da vida, da saúde e da autonomia e da dignidade das meninas e mulheres brasileiras. Pela proteção à infância das crianças que têm sua vida devastada pela violência sexual. Contra a criminalização de todas as vítimas de violência sexual.”
Na avaliação da deputada federal, coordenadora da Bancada Feminina do PT na Câmara e presidenta do PT-ES, Jack Rocha (PT-ES), a movimentação da Câmara sinaliza a imposição e um retrocesso no direito das mulheres que remonta a 1920 e 1940 para que mulheres e meninas violentadas gerem filhos concebidos a partir de uma violência sexual:
“Criança não é mãe! Nossas meninas precisam ser amparadas e cuidadas e não criminalizadas quando violentadas. O projeto quer alterar o Código Penal para equiparar o aborto realizado após a 22ª semana ao crime de homicídio, com pena prevista de 6 a 20 anos, enquanto o mesmo Código Penal estabelece pena de 6 a 10 anos para crime de estupro. Aprovar esse projeto é ignorar os mais de 70 mil estupros que acontecem por ano no Brasil, sendo mais de 60% deles com vítimas de até 13 anos de idade. Para além disso, é preciso contextualizar que esse projeto não tem benefício prático nenhum para o Brasil. Não gera empregos, não busca solucionar os desafios das desigualdades, divide a sociedade e aprofunda o sofrimento de meninas e mulheres.”
Sem debate com a sociedade civil
O projeto não ouviu especialistas da área da saúde e da assistência social, logo, não houve um debate maduro e participativo com toda a sociedade. Os bolsonaristas parecem ignorar dados e estatísticas do Anuário de Segurança Pública: em 2022, Brasil registrou maior número de estupros da história; 6 em cada 10 vítimas tinham até 13 anos. O que esses parlamentares, em sua maioria homens, desejam é que a criança que foi estuprada, além de ser obrigada a ter um filho fruto de uma violência, seja também considerada criminosa.
Os movimentos de mulheres e feministas nomearam a proposta de PL da gravidez infantil. As redes sociais foram inundadas com as hashtags #criançanãoémãe #estupradornãoépai a fim de chamar a atenção da sociedade. Importante destacar que, por dia, 1.043 adolescentes se tornam mães no Brasil. E, por hora, 44 bebês nascem de mães adolescentes, sendo que dessas 44, duas têm idade entre 10 e 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), ferramenta do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em rápida resposta ao movimento na Câmara, na noite de quinta-feira, diversas capitais do país registram manifestações contrárias ao PL. Espera-se que nos próximos dias, o movimento ganhe ainda mais adesão da sociedade civil e movimentos sociais.
Em entrevista à revista Marie Claire, a antropóloga Debora Diniz, afirma que a tramitação com urgência causa preocupação em entidades, pesquisadores e organizações de justiça reprodutiva no país. “Na verdade, esse PL tem impacto brutal nas mulheres que sofreram violência sexual estupro e engravidaram.”
Também em entrevista à revista, Ligia Cardieri, coordenadora executiva da Rede Feminista de Saúde (RFS), afirma que uma aprovação deste PL é “inadmissível”. “Se virar lei, isso se refletirá de imediato na rotina dos serviços. Gestores de saúde deveriam estar divulgando os serviços e assegurando o direito de decidir. Além disso, pouco se faz para prevenir essa violência de gênero”, analisou.
Perigos da gravidez na infância e adolescência
Na publicação “Gravidez na Adolescência – Impacto na vida das famílias e das adolescentes e jovens mulheres“, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) destaca o quão nocivo é para este público a chegada de um bebê:
“Uma gravidez acarreta, para a adolescente e futura mãe, além das transformações físicas e emocionais inerentes à gravidez, a responsabilidade por outra vida, o que requer maturidade biológica, psicológica e socioeconômica para prover suas próprias necessidades e as do filho/a.”
Ainda de acordo com o texto, em 2018, a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) divulgaram relatório afirmando que a taxa mundial de gravidez adolescente é estimada em 46 nascimentos para cada mil adolescentes e jovens mulheres entre 15 e 19 anos.
Na América Latina e no Caribe, a taxa é estimada em 65,5 nascimentos. No Brasil, onde um em cada cinco bebês nasce de uma mãe com idade entre 10 e 19 anos, o número chega a 65 nascidos, superando a da região. Ainda, no país, a proporção de nascidos de mães entre 10 e 19 anos é de 18%.
Além disso, há o grande índice de abandono escolar. Dados do IBGE/Censo Demográfico (2010) apontam que a proporção de adolescentes e jovens mulheres brasileiras entre 15 e 19 anos que não estão inseridas no mercado de trabalho ou na escola é maior entre as que já tiveram filhos do que em relação às que nunca foram mães. Além disso, dentre as que já tiveram filhos, a taxa de fecundidade entre adolescentes e jovens mulheres que se declararam como pretas e pardas está em patamares superiores (69%).
Se aprovado, o PL representará um retrocesso de um século nos direitos sexuais e reprodutivos brasileiros. A bancada conservadora do Congresso teima em punir mulheres e crianças com a defesa de teses religiosas, mas ignoram que o estado é laico e que somente as mulheres podem decidir sobre seus corpos.
Da Redação Elas por Elas, com informações Agência Câmara, G1, revista Marie Claire e MDS