Delivery: Realidade desfaz ilusão de que entregador seria seu próprio patrão
Relatório de fiscais do trabalho que investigaram atividades da Rappi no Brasil concluiu que os entregadores de aplicativos têm seu “horário de trabalho” controlado. O celular é novo “relógio de ponto” utilizado pelos novos patrões
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O argumento utilizado pelos serviços de entrega por aplicativo – também bastante difundido entre os próprios entregadores – de que os seus prestadores de serviços são “empreendedores”, o que lhes transformaria em seus “próprios patrões”, vem sendo desmentidas por operações realizadas por fiscais do trabalho.
Reportagem publicada recentemente pelo site do El Pais Brasil revela que, em um auto de infração feito pelos fiscais do trabalho contra a Rappi, multinacional do setor com sede na Colômbia, o cenário descrito é totalmente o inverso daqueles que os aplicativos tentam pintar.
No cenário real, os entregadores estão longe de ter qualquer tipo de controle sobre o seu trabalho e as suas rotas são monitoradas com rigor, com consequências que variam de punição a recompensa por parte do aplicativo, que transformou o telefone celular em uma espécie de “relógio de ponto”.
O relatório de 219 páginas elaborado pelos fiscais que investigaram as atividades da Rappi aponta para uma série de fraudes e violações trabalhistas cometidas pela empresa. Outras empresas do setor, como a Ifood e a Loggi,também já foram alvos de fiscalização semelhante.
Na reportagem, Rafael Brisque Neiva, auditor-fiscal do Trabalho, desconstrói ao empreendedorismo ilusório vendido pela empresa. “A Rappi afirma que os entregadores têm independência, mas a prática é outra. É um trabalho subordinado, eles estão vinculados totalmente ao aplicativo para desempenhar a função, e há um controle e monitoramento total da empresa. Eles não tem autonomia para nada. São comandados pela Rappi via tecnologia da informação e pelos algoritmos.”
Apesar de os serviços de delivery negarem a existência de vínculos trabalhistas e argumentarem que os entregadores trabalham onde, quando e quanto quiserem, a tecnologia permite, no caso da Rappi, impor mecanismos de punição e também de recompensa.
Os entregadores podem ser punidos sem nenhuma transparência caso recusem corridas ou atrasem entregas. As punições podem ser severas, de suspensão temporária até o descadastramento do fretista da plataforma. Mas podem ser recompensados por, por exemplo, permanecerem online nos locais indicados pelo aplicativo.
Outro ponto que chamou a atenção da fiscalização foi o de que quem determina o valor do frete é a Rappi e não o entregador. “O controle de preços é ato típico de gestão do serviço de entrega”, afirma o documento, o que contraria a versão da empresa, que alega apenas fazer a “intermediação” entre as partes.
Outra prática da Rappi considerada abusiva diz respeito à venda casada: para receber, o trabalhador precisa se cadastrar no aplicativo da SmartMEI, responsável por operacionalizar os pagamentos.
Segundo o relatório, os entregadores são obrigados a utilizar o aplicativo SmartMEI, caso contrário não irão receber pelos serviços prestados à empresa. A prática também é considerada como ilegal e fraudulenta pela fiscalização.
No mundo
Os problemas trabalhistas envolvendo empresas de delivery não são uma exclusividade brasileira, segundo o EL Pais. Na Espanha, a Glovo, que atua neste setor desde 2017, foi obrigada pela Justiça no início de fevereiro a pagar 21 milhões de euros (aproximadamente de 120 milhões de reais) ao órgão estatal que cuida da seguridade social. Os fiscais do trabalho apontaram que – assim como a Rappi no Brasil – a Glovo empregou falsos autônomos. Em sua defesa, a companhia catalã afirmou ser uma mera “intermediadora de serviços”.
Também na Argentina os apps de entrega chegaram a sofrer punições. Em abril de 2019 a Justiça argentina barrou entregadores da Rappi e da Glovo em Buenos Aires por tempo indeterminado alegando questões de segurança, como falta de capacetes e sinalização adequada.
No Brasil, as condições precárias dos trabalhadores de entrega já levaram a processos contra outras empresas, e até mesmo a uma greve dos entregadores – o breque dos apps, como foi chamado – para chamar a atenção para as condições impostas.
Da Redação, com El Pais Brasil