Dia de Combate à Intolerância Religiosa completa 12 anos com terreiros sob ataque
A partir de lei sancionada por Lula, data homenageia mãe Gilda de Ogum, morta em 2000 após ataques de ódio e agressões
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O Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas, e os adeptos de religiões de matriz africana estão entre os principais alvos. Segundo o último levantamento do Ministério dos Direitos Humanos, realizado há dois anos, umbanda e candomblé eram as religiões mais perseguidas no país.
Para estimular o debate sobre o tema, o ex-presidente Lula sancionou, em 2007, a lei que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro. A data coincide com a morte da ialorixá Gildásia dos Santos, conhecida como mãe Gilda de Ogum, fundadora do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã (BA). Em 2000, a religiosa foi atacada dentro do terreiro, e o trauma contribuiu para os problemas cardíacos que a levariam à morte.
“Membros da Assembleia de Deus atacaram verbalmente e fisicamente, jogando a Bíblia sobre a sua cabeça e dizendo que iam exorcizá-la, que iam tirar o demônio do corpo dela. Mãe Gilda ficou muito abalada”, relata Flávio Magalhães, filho do terreiro Abassá de Ogum.
No mesmo ano, a mãe de santo foi vítima de outra injustiça – que custou sua vida, segundo as palavras de Flávio. “Não bastando isso, a Igreja Universal do Reino de Deus [por meio do jornal Folha Universal] publicou uma foto da ialorixá, no seu jornal, com uma tarja com a chamada ‘macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes’. Ao ver essa chamada falsa, ela teve um ataque cardíaco fulminante”, relembra.
A partir de 2011, o Disque 100, número de telefone do governo que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos, começou a contabilizar os casos de intolerância religiosa. No primeiro ano de balanço, foram 15 casos. O número saltou para 109 no ano seguinte, chegou a 201 em 2013 e recuou para 149 registros em 2014, de acordo com a secretaria de Direitos Humanos.
Entre 2015 e o primeiro semestre de 2018, foram 1.729 casos de intolerância religiosa – uma média de 42 por mês.
Campanha
“O governo precisa pautar mais ações efetivas que possam coibir este ódio”, analisa mãe Jaciara Ribeiro, filha biológica de mãe Gilda, e atual ialorixá do Axé Abassá de Ogum.
Para ampliar a visibilidade do Dia Nacional de Combate à Intolerância, o coletivo Okàn Dìmó criou a campanha “Todxspor21”, que reúne relatos de pessoas pela liberdade de fé.
“A perseguição às religiões de matriz africana já vem acontecendo há muito tempo. Na formação da sociedade brasileira, nossos ancestrais escravizados passaram por um processo de ressignificação dos seus símbolos para que a gente pudesse pensar e cultivar o candomblé”, explica Odara Dèlé, professora de sociologia e membro do coletivo Okán Dìmó.
O nome do coletivo significa “corações que abraçam”. O grupo é resultado de uma iniciativa do babalorixá Rodney de Oxóssi. As reuniões mensais começaram no início de 2017 para discutir estratégias de proteção para a liberdade de culto e contra o racismo.
Casos recentes, como os ataques nas redes sociais contra a imagem, o legado e a memória de mãe Stela de Oxóssi, no final do ano passado, e o assalto ao terreiro Casa do Mensageiro, no dia 12 de janeiro, em Salvador, deixam o grupo em alerta para a onda de intolerância religiosa em tempos de governo de extrema direita.
“Nós acreditamos que, a partir dessa conjuntura política, em que as religiões pentecostais e a ideologia de direita têm tomado proporções fortíssimas, esses casos venham a crescer”, lamenta Odara.
Por outro lado, há exemplos de resistência dos povos de terreiro e lutas históricas por reparação e reconhecimento de direitos.
No caso da reportagem da Folha Universal, o terreiro venceu a Igreja do bispo Edir Macedo na Justiça.
“A Igreja Universal foi condenada a pagar R$ 1 milhão à família, referente a R$ 1,00 por jornal veiculado. Só que a Igreja Universal recorreu alegando que ‘não ia enriquecer família da mãe de santo'”. No final do processo, o valor ficou em R$ 140 mil, divididos em sete vezes.
Para a família de mãe Gilda de Ogum e seus filhos de santo, o dinheiro não importa, porque “não ia trazer a ialorixá de volta”. Mas, “só o fato de nós termos ganhado a causa contra uma igreja neopentescostal do tamanho que é a Universal, foi uma vitória enorme”, enaltece Flávio Magalhães.
Busto de fé
Em 28 de novembro de 2014, em meio às comemorações do mês da Consciência Negra, foi inaugurado um busto de bronze em homenagem à memória de mãe Gilda. A estátua fica no parque do Abaeté, em Itapuã. Em maio de 2016, a obra foi alvo de vandalismo.
Confira o relato da entrevista com mãe Jaciara de Ogum, filha biológica de mãe Gilda, sobre o caso:
“Foi a partir da minha luta de ter conseguido o busto de mãe Gilda que foi instalado aqui na lagoa de Abaeté. Foi muito difícil essa instalação. E depois, quando o busto completa dois anos, ele é violado. Foi apedrejado, foi violado todo. Daí, a gente teve que fortalecer de novo. Para mim, como filha biológica de mãe Gilda, ter visto a imagem dela ser maculada pela Igreja Universal do Reino de Deus, daquela matéria que maculava a imagem dela com o ‘macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso dos clientes’, vê-la morrer… Aí, depois, mesmo o busto dela, que é um símbolo… por mais que seja um busto feito de bronze e de ferro, mas é a imagem da ialorixá que foi maculada e apedrejada. Para mim foi muito difícil”, relembra, emocionada.
A estátua de mãe Gilda, no mesmo local, em Abaeté, foi restaurada e reinaugurada em novembro de 2016.
Por Brasil de Fato