Em tempos de coronavírus

Em artigo, Azil Ferreira Viana aponta que a solidariedade e arte das pessoas LGBT é o melhor remédio contra o individualismo 

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Quando problemas e desafios se apresentam para a sociedade em determinado período histórico trazem consigo mudanças paradigmáticas para a vida das pessoas, seja em seu aspecto financeiro, laboral, relacional ou mesmo sanitário.

Num mundo globalizado em que as informações circulam em tempo real e a propagação de seus efeitos exercem impacto direto em territórios e não apenas nas fronteiras territoriais dos países assistimos, como expectadores, impotentes a evolução de uma doença   cuja expansão global foi classificada como pandemia.

Não se sabe ao certo quais as consequências a médio e longo prazos e como a humanidade lidará com seus efeitos após o apogeu da manifestação da doença, mas uma coisa é certa: a humanidade não será mesma.

É muito cedo para tentar estabelecer critérios e mecanismos de mensuração das mudanças, tampouco indicar possíveis caminhos.

Diante desse cenário de incertezas e apreensões podemos construir perspectivas que no futuro poderão ser avaliadas e testadas cientificamente.

Não se sabe ao certo quais as consequências a médio e longo prazos e como a humanidade lidará com seus efeitos após o apogeu da manifestação da doença, mas uma coisa é certa: a humanidade não será mesma.

Com este pequeno trabalho espera-se contribuir com reflexões acerca dos impactos da pandemia em relação a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

No intuito de concretizar a análise proposta o itinerário adotado perpassa pela história do segmento LGBT numa reflexão acerca dos mecanismos que atuam tanto na afirmação quanto na negação de sua identidade, além de seus elementos constitutivos. Um exemplo desses elementos vincula-se as expressões da cultura LGBT.

Convidamos o amigo leitor para essa viagem tomando como ponto de partida a controvérsia e a polêmica instaurada em diferentes períodos da história referentes as questões de identidade de gênero e orientação sexual.

Nas últimas décadas esses assuntos estavam, de uma maneira ou de outra, presentes na ordem do dia.

O embate esteve presente entre os que defendem a diversidade sexual e de gênero e aqueles opositores a essa multiplicidade percebida inclusive na realidade humana.

Discutir esse aspecto numa cronologia exigiria um trabalho muito extenso e para trazer atualidade do tema optou-se por iniciar com as eleições de 2018 que revelaram manifestações e posicionamentos radicais em defesa da chamada “moral e bons costumes”.

A disputa em relação a essa temática mobilizou parte da sociedade e apresentou uma narrativa que cristalizou a figura do cidadão de bem em detrimento dos demais.

Mas o que significa ser cidadão de bem na atual conjuntura?

Essa e tantas outras perguntas povoam o imaginário coletivo, sem oferecer resposta ou mesmo um direcionamento para que se alcance uma resposta.

O incômodo e a ansiedade por uma resposta pode levar à primeira vista a um pensamento pretensamente justificável e, para alguns, até mesmo verdadeiro, todavia traz consigo uma narrativa que expõe claramente a intolerância e preconceito nas questões relativas à sexualidade e, em especial, às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

Historicamente as manifestações e formas de preconceito foram explicadas a partir de trabalhos de diferentes autores como Conde (2004), Facchini (2002), Mott (2006), Molina (2011), e Simões e Facchini (2009).

No intuito de demonstrar o argumento apresentado segue pequeno trecho elaborado por Mott (2006, p. 509) no qual esclarece o mecanismo de controle e vigilância pois “o Ocidente repetiu, ad nauseam, que o amor e o erotismo entre pessoas do mesmo sexo eram ‘o mais torpe, sujo e desonesto pecado’, e que por causa dele Deus castigava a humanidade com pestes, inundações, terremotos, etc”.

Fomos surpreendidos e essa mudança desconstruiu nossos referenciais, crenças, modelos e valores

Esse era o pensamento vigente na idade Média relativa às lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) e que ainda hoje encontra defensores e propagadores.

Essa constatação observada na Idade Média encontra eco em nossos dias a partir do fenômeno informacional que facilita o acesso e a difusão de informações e dados sem controle e sem veracidade. Prova disso é a proliferação desordenada das chamadas “fake News”[2] sobre diversos conteúdos, inclusive relativas à vida privada das pessoas.

De acordo com Bauman (2001) vivemos a era da modernidade líquida. Isso significa dizer que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos, logo, não há estabilidade ou mesmo segurança.

É nesse mundo fugidio e sem controle no qual nos encontramos que trouxe para a arena social um novo elemento:  o surgimento da pandemia global do coronavírus (Covid-19).

Fomos surpreendidos e essa mudança desconstruiu nossos referenciais, crenças, modelos e valores.

Uma nova realidade se impôs: o isolamento social com restrição de deslocamento das pessoas.

A realidade como a conhecemos transformou-se.

Hoje é possível apenas especular cenários, pois muitas variáveis não controláveis estão em curso. Citarei apenas algumas para exemplificar: duração e controle da contaminação, terapias de tratamento, expectativa de retorno à normalidade laboral, econômica e social.

Todos esses elementos refletem a insegurança e a instabilidade de um cenário de possibilidades diversas sem controle ou monitoramento porque estamos vivendo um novo ciclo no mundo.

Mesmo se considerarmos os avanços tecnológicos, as redes virtuais de informação, o acesso rápido e fácil de informações e dados ainda estamos perplexos e sem direção.

Especula-se muito, sem, contudo, haver garantia efetiva que as projeções se concretizarão.

A pandemia abalou toda a estrutura de crença e certezas de nosso mundo.

Vivemos um período de transição no qual muitas certezas ruíram, projetos serão alterados, estimativas e previsões serão modificadas.

Nesse espectro é preciso olhar para o cenário atual com especial atenção principalmente para as pessoas que vivem nas periferias, relegadas à própria sorte pois elas estão mais suscetíveis de serem atingidas pela desigualdade social.

Essa constatação revela que o acesso rápido a tratamento e cuidados adequados concentram-se nos grandes centros urbanos onde há facilidade de acesso aos serviços públicos de saúde e à rede privada.

Outro aspecto que não pode ser desconsiderado se refere as dimensões territoriais do Brasil, pois há desigualdades entre as regiões o que fragiliza ainda mais a questão do acesso, pois a região norte não possui os mesmos recursos financeiros, tecnológicos que a região sudeste e assim sucessivamente.

A informalidade é uma opção que não garante continuidade de trabalho e manutenção de renda. Assiste-se a uma corrida sem trégua contra o desemprego, a fome e a perda de moradia

Além das desigualdades e diferenças regionais, as limitações econômicas e tecnológicas exigem a solidariedade e a empatia como elementos de sociabilidade entre as pessoas. Essa mesma medida deve ser aplicada aos segmentos sociais mais vulneráveis, incluindo o segmento LGBT.

Vítima do preconceito e discriminação sociais lésbicas, gays, bissexuais travestis e transexuais veem sua realidade ser ainda mais restringida porque as possibilidades de trabalho reduziram drasticamente.

A informalidade é uma opção que não garante continuidade de trabalho e manutenção de renda. Assiste-se a uma corrida sem trégua contra o desemprego, a fome e a perda de moradia.

Essa é a realidade atual que pode ser constatada com a multiplicidade de campanhas de arrecadação de alimentos e materiais de higiene pessoal por Organizações da Sociedade Civil (OSC) LGBT. Iniciativas dessa natureza deixam claro que a desigualdade necessita ser combatida e vencida para que a dignidade de todas as pessoas possa ser assegurada.

Essa foi uma breve explanação da relação entre a suscetibilidade para contaminação pelo coronavírus e a vulnerabilidade social nas quais se encontram as pessoas LGBT.

Seria incorreto pensar que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais não oferecem respostas às situações limite quando ocorrem. Prova disso é a rica e variada cultura LGBT que, em suas cores, exuberância e irreverência estabelece diálogo com a sociedade.

Por isso mesmo uma outra reflexão se faz necessária pois a cultura sempre foi instrumento de reivindicação e luta por parte dos atores sociais. Nesse diapasão, O segmento LGBT, por sua própria constituição, possui os elementos da pluralidade e diversidade que se expressam no mundo das artes.

Se há um locus no qual a liberdade de ser, estar e experimentar acontece é exatamente no seio das expressões artísticas que revelam uma expressão própria de determinado povo ou grupo social.

No desejo de fornecer elementos para uma busca por respostas para as questões anteriormente apresentadas, é mister iniciar as reflexões a partir das contribuições de Bauman (2012) acerca do conceito de cultura que, enquanto atividade humana, consegue agregar diferentes sujeitos em torno de afinidades por meio da expressão da linguagem artística em suas variadas realidades de manifestação.

Esse locus preferencial pode permitir a expansão do universo cultural no qual se encontra inserido o segmento LGBT.

Todavia, o autor chama a atenção para a polissemia do termo cultura que possui significados e sentidos diferentes para as diversas áreas do conhecimento o que, de um lado, permite sua utilização variada numa miríade de possibilidades e, de outro lado, dificulta sua consolidação enquanto conceito válido universalmente.

Na dicotomia apresentada por Bauman (2012) emergem algumas questões estruturais que necessitam ser conhecidas, pois podem elucidar a problemática apresentada.

O autor relata que as mudanças experimentadas na sociedade podem estar associadas ao fenômeno apontado por Castells (1999) ao considerar que as últimas décadas trouxeram consigo, também, além de avanços comportamentais e sociais, as evoluções tecnológicas.

Essas mudanças se tornaram instrumentos fundamentais à contemporaneidade, haja vista que as redes sociais permitem interação imediata entre diferentes conteúdos, assuntos, informações, sem a exigência de utilização de espaços físicos.

Na perspectiva de Levy (1994), são espaços considerados desterritorializados, pois o ciberespaço configura-se como o espaço móvel das interações entre conhecimentos e conhecedores de grupos inteligentes sem territórios ou fronteiras definidas.

De maneira análoga, as mesmas categorias são aplicadas ao segmento LGBT por pessoas que almejam discutir questões relativas à sexualidade, moralidade e direitos.

Num primeiro momento essa argumentação se utiliza da ignorância na qual as pessoas vivem em relação ao segmento, ampliada pela mídia que funciona como sensor determinando o que deve ou não ser analisado, discutido, debatido.

Diante da constatação de manipulação da realidade e da informação, pode-se dizer que o segmento LGBT se utiliza da arte para apresentar sua mensagem, denunciar violências, celebrar a vida

Na sequência, a falta de comprovação da veracidade de informações contribui para uma pseudo concordância e validação desses dados disseminados por grande parte da população.

Sob esse prisma, tem-se, externamente, um ente capaz de direcionar e influir diretamente no pensamento das pessoas, a mídia coloca-se assim como sujeito coletivo capaz de interferir e modificar a percepção das pessoas sobre temática específica.

Diante da constatação de manipulação da realidade e da informação, pode-se dizer que o segmento LGBT se utiliza da arte para apresentar sua mensagem, denunciar violências, celebrar a vida.

O princípio utilizado pelos artistas LGBT apresentado em suas diferentes expressões artísticas para comunicar-se com a sociedade revela que a arte assume nessa perspectiva condição de mediação na qual sua interface deve convergir para a explicação dos fenômenos humanos em sua relação com a natureza.

Poder-se-ia dizer que sob esse prisma estaria imbricada uma questão ontológica, isto é, a própria expressão cultural seria algo constitutivo das pessoas e extrapolaria a mera noção de aptidão conformando-se como algo inerente ao ser humano.

Somos seres da diferença, complexos e únicos pois somos o somatório de uma infinidade de ligações e subjetividades que estão em constante duelo.

Por isso mesmo a realidade expressa essa dicotomia.

Como em todos os espectros da vida humana o conflito se faz presente e nessa disputa por legitimidade alguns problemas podem ser compreendidos pela ascensão do que Castells (2016) denominou de sociedade em rede.

Esse modelo apresentado pelo autor possui características muito peculiares e podem indicar um possível direcionamento a partir de seus elementos constitutivos: a) cooperação científica; b) estratégia militar; c) iniciativa tecnológica e d) inovação contra cultural.

Somos seres da diferença, complexos e únicos pois somos o somatório de uma infinidade de ligações e subjetividades que estão em constante duelo

Uma constatação em relação à sociedade em rede refere-se a capacidade de disseminação da informação que alcança quase que em tempo real milhares de usuários.

Essa nova realidade permite que a propagação e difusão de conteúdos seja uma atividade potente e incontrolável.

As realidades liquidas presentes em nossa realidade permitem e potencializam esses efeitos.

É nessa realidade mutável e dinâmica que o segmento LGBT externaliza suas manifestações artísticas para construir diálogos com outros sujeitos sociais. As expressões artísticas são utilizadas como vozes que mediam as relações através da cultura.

Essa mediação somente é possível porque a linguagem é canal dialógico que leva e traz as informações e impressões acerca da experiência humana.

Ao buscar a forma de sua estruturação nos pilares da arte que passa a constituir-se como braço explicativo para a realidade do segmento LGBT pode-se dizer que há uma inversão da lógica do mercado relacionada ao fazer artístico.

Supõe-se que uma perspectiva de sentido possa estabelecer uma nova representação para o labor num novo modelo denominado de sociedade pós-moderna.

Esse aspecto inédito confere a esse modelo flexibilidade para investigar de maneira criativa possibilidades que podem passar ou estar despercebidas pelas lentes dos pesquisadores e cientistas.

O alcance desse modelo flexível pode estar ligado a elementos como espontaneidade, alegria, irreverência e a crítica aos padrões sociais vigentes. Esses elementos não são quantificáveis de maneira objetiva.

Não há um maniqueísmo presente.

O que se revela é algo que transcende os limites da racionalidade e, por isso mesmo, torna-se difícil compreender sua existência.

O que pode explicar a resistência e a luta de parte da sociedade que percebe as pessoas LGBT como um perigo ou ameaça social.

Esse é o paradoxo que o segmento enfrenta diariamente.

A batalha por reverter essa visão encontra eco nas formas organizadas de luta que os movimentos sociais historicamente realizam.

A luta em questão lembra o embate entre Davi e Golias pois de um lado tem-se todo o aparato midiático das religiões fundamentalistas como rádios, emissoras de TV, além de bancadas religiosas em câmaras municipais e federal e de outro apenas as formas de divulgação de artistas e casas noturnas.

Essa luta torna-se uma tarefa inglória, mas de vital importância.

Essa é a questão que está em disputa: qual a narrativa capaz de construir novos conhecimentos e valores para um novo processo civilizatório pós pandemia do coronavírus?

A resposta do segmento LGBT para essas e outras questões revela que as manifestações e expressões da cultura LGBT podem constituir-se em uma possibilidade real e efetiva de encontro entre os diferentes sujeitos numa convivência pacífica na qual todas e todos sejam reconhecidos unicamente por aquilo que une toda a espécie: sua humanidade.

Azil Ferreira Viana é doutorando Ciência da Informação Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação – PPGCI/UFMG. Mestre em Ciência da Informação PPGCI-UFMG – 2017. Membro da Secretaria Nacional LGBT do Partido dos Trabalhadores.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

________. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012, p. 83-154.

CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, v. 3, 1999, p. 411-439.

__________. A revolução da tecnologia da informação. In: A sociedade em rede. 17. ed. rev. ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2016, p.87- 133. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; 1).

CONDE, Michele Cunha Franco. O movimento homossexual brasileiro, sua trajetória e seu papel na ampliação do exercício da cidadania. 2004. 350 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2004.

FACCHINI, Regina. “Sopa de letrinhas”? – movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. 2002. 241 f. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2002.

Lévy, Pierre. A Inteligência Colectiva: para uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Instituto Piaget. 1994.

MOLINA, L. P. P. Pluralizando a arte de amar: a homossexualidade e a historiografia e trajetória do movimento homossexual. Antíteses. Londrina: v. 4, n. 8, p. 949-962, jul./dez. 2011.

MOTT, Luiz. Homo afetividade e direitos humanos. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 509-521, maio/ago. 2006.

SIMÕES, Júlio. Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, 191p.

 

 

 

 

 

 

 

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