Especial: Desmonte da CLT precariza as relações de trabalho

Um quinto da população adulta do país presta serviços a empresas de plataformas digitais para obter renda. Contratos temporários avançam até na indústria

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Governo de precarização e arrocho salarial

A pandemia de Covid-19 agravou a precarização das relações de trabalho desencadeada pelo usurpador Michel Temer e acelerada pelo desgoverno Bolsonaro. Em meio ao desemprego, sem o auxílio emergencial de R$ 600 e sem perspectivas, os deserdados do golpe se submetem a jornadas cada vez mais longas de serviços prestados a empresas de plataformas digitais, sem garantias trabalhistas e recebendo cada vez menos.

O Instituto Locomotiva constatou que desde fevereiro de 2020 mais 11,4 milhões de pessoas passaram a recorrer aos aplicativos para garantir ao menos parte, ou até a totalidade de suas rendas. Já são 32,4 milhões de trabalhadores e trabalhadoras atuando com aplicativos pelo Brasil. O correspondente a 20% da população adulta do país, contra 13% em fevereiro do ano passado.

Entre esses 32,4 milhões, 16% afirmaram que os aplicativos são a única fonte de renda. Para 15%, eles respondem por metade dos ganhos. Outros 24% os utilizam apenas para um serviço eventual, como entregas de um negócio próprio.

O processo foi batizado de “plataformismo” pelo engenheiro Roberto Moraes, professor do Instituto Federal Fluminense (IFF). No portal da Central Única dos Trabalhadores (CUT), ele chama a atenção para a iniquidade da relação com os trabalhadores e também com os pequenos negócios, “engolidos” pelas grandes empresas de e-commerce. Ao fundo, o sistema financeiro, umbilicalmente ligado às plataformas. “É um processo de dominação tecnológica, de super exploração”, explica Moraes.

“Quem financia isso é o setor financeiro, que fecha seus setores de pesquisas e incentiva o surgimento de startups”, prossegue o professor. Para ele, está ocorrendo uma etapa da reestruturação produtiva na qual a dominação tecnológica reforça a hegemonia financeira do capitalismo. “A consequência é mais precarização, a vampirização da renda, num processo sem igual na história da humanidade”, conclui.

E com um agravante. “Quando uma empresa deixa de pagar a Previdência de um trabalhador terceirizado, ela não ajuda a pagar o sistema de saúde e a educação gratuitos que esse trabalhador e seus filhos utilizam. Ela sobrecarrega o serviço público, transformando a economia das cidades”, prossegue o professor do IFF.

“Os aplicativos são intermediadores que extraem o valor do trabalho, e seu volume de vendas vai acabar com os pequenos negócios, mudando até o processo de urbanização das cidades. Com tanta precarização, que tipo de trabalho vai sobrar?”, questiona Moraes.

Entregadores de app param pela quarta vez em São Paulo

O desmazelo levou à quarta paralisação em menos de um ano dos entregadores que trabalham para aplicativos como iFood, Loggi e Rappi em São Paulo. Nesta sexta (16), eles realizaram mais um ato para protestar contra as más condições de trabalho e renda.

Trabalhadores e trabalhadoras exigem reajustes na taxa mínima de corrida e o pagamento padronizado por quilometragem. Só assim conseguirão suportar os aumentos periódicos dos combustíveis e dos custos de manutenção dos veículos.

Desde julho do ano passado, quando houve o primeiro breque dos APPs, como ficou conhecido o movimento da categoria, nada mudou. A grande maioria continua trabalhando os sete dias da semana e boa parte, mais do que 11 horas diárias.

Paula Freitas, que atou como pesquisadora do Grupo de Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (GTTD/REMIR), alerta para os dados “alarmantes” sobre a exploração da categoria.

Segundo a professora, a pesquisa ‘Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19’, da Universidade de Campinas (Unicamp), revela que o percentual desses profissionais que trabalham acima das nove horas diárias subiu de 57% para 62% durante a pandemia. Ao mesmo tempo, embora passassem a ser mais requisitados, seus rendimentos caíram.

Se 47% ganhavam até R$ 520 por semana, com a pandemia o percentual subiu para 72%. Ou seja, 25% desses trabalhadores passaram também a receber a média rebaixada. Para 49% dos pesquisados, o bônus que recebiam diminuiu. Os que mantiveram seus rendimentos foram 45%, e apenas 5% confirmaram aumento da renda no período.

“A pandemia contribuiu para mostrar rapidamente que este governo não deu certo. Aprofundamos os efeitos tão fortemente que de fato as pessoas ficaram sem alternativas de renda, mas elas precisam pagar as contas e utilizam aquilo que está ao alcance da mão: o celular vinculado a um algoritmo que manda na vida delas”, critica a doutoranda em Desenvolvimento Econômico no CESIT/IE/Unicamp.

Para a pesquisadora, a exploração das empresas de aplicativos foi aprofundada com a reforma trabalhista do governo golpista de Temer. Em seis meses, foram introduzidas mais de 200 modificações legislativas – só na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), foram 130. Nenhuma ampliou direitos dos empregados frente aos empregadores. O desgoverno Bolsonaro só piorou a situação, com tentativas de retiradas de mais direitos.

“O Brasil está assistindo a uma economia desestruturada, com desmantelamento da legislação, diminuindo a proteção dos trabalhadores, justificando as retiradas de direitos como forma de impulsionar o quadro de empregos. Mas isto se demonstrou falacioso”, argumenta Paula Freitas. “Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento da relação causa-efeito entre medidas econômicas de regulação e mercado de trabalho sabia que não daria certo.”

Para a pesquisadora o problema não está no fato de as plataformas digitais incorporarem pessoas para trabalhar, mas sim na ausência de legislação protetiva. “Já existe uma norma, é a antiga CLT, de antes da reforma trabalhista, que precisa ser aplicada“, conclui.

Fenômeno avança até na indústria

O desmantelamento da CLT atingiu inclusive setores da economia onde os sindicatos são historicamente fortes. Levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) com 523 empresas mostra que 15% delas empregam no regime intermitente de trabalho. “Frankestein” criado por Temer no qual o trabalhador não tem nem jornada nem salário fixo, o regime é alvo de ações no Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo o levantamento, 45% das empresas disseram ter ampliado o uso desses contratos durante a pandemia. Outras 44% mantiveram os funcionários contratados na modalidade.

“O trabalhador não tem segurança alguma. Você pode ficar contratado e passar o mês inteiro sem ser chamado para trabalhar”, explicou o supervisor do escritório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em São Paulo, Victor Pagani, ao ‘Jornal Brasil Atual’ de terça (13).

“O trabalhador não tem garantido nem o piso da categoria, podendo receber menos do que está convencionado coletivamente. Pode inclusive receber menos que um salário mínimo. Nesse caso, o tempo em que ele está contratado não é sequer considerado como tempo de contribuição para fins previdenciários”, acrescentou.

Nota técnica do Dieese revelou que 22% dos trabalhadores intermitentes não tiveram nenhum rendimento em 2019. Além disso, o rendimento médio dessa modalidade foi de R$ 637, valor equivalente a cerca de 64% do salário mínimo oficial.

Guedes manipula número de empregos com o “novo Caged”

Mudança da metodologia, em 2020, descolou o índice da economia real e trata trabalho precário como emprego de carteira assinada. Contratações temporárias explodiram em 2020

O crescimento de contratações temporárias em janeiro e fevereiro foi de 25% em comparação com o mesmo período de 2020. Levantamento da consultoria Employer aponta que houve em janeiro mais de 176 mil contratações do tipo, e mais de 300 mil em fevereiro. No ano passado, foram 130 mil no primeiro mês e 255 mil em fevereiro. A Employer confirma que a indústria é o setor que mais está contratando temporários.

Segundo a Associação Brasileira do Trabalho Temporário, as contratações desse tipo explodiram durante a pandemia: foram mais de dois milhões só no ano passado, em todos os setores. No primeiro trimestre de 2021, o cenário é ainda mais amplo: a projeção é de aumento de 25% nas vagas temporárias.

Esse fenômeno explica o aumento do número de empregados registrado no “novo Caged” do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgado mensalmente pelo Ministério da Economia, passou por uma mudança de metodologia em 2020 que descolou o índice do real desempenho da atividade econômica e tornou impossível a comparação dos dados recentes com a série histórica mais longa.

O saldo positivo de 400 mil vagas com carteira assinada em fevereiro deste ano, mês com menor número de dias, feriado de Carnaval, queda na produção industrial e em que a pandemia já dava sinais de piora, disparu entre os analistas o alerta de que o “novo Caged” é puro ilusionismo de Guedes, o mercador de ilusões.

“Estamos às cegas, sem saber com exatidão o que se passa no mercado de trabalho”, afirmou à ‘BBC Brasil’ Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. Para ele, os problemas são sintomas de um governo que não entende a necessidade de boas estatísticas para elaboração de políticas públicas, o que ficou evidente, por exemplo, no corte de mais de 90% na verba para realização do Censo demográfico este ano.

Encarregado do Censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aliás, tornou-se alvo de Jair Bolsonaro ao desnudar, com suas pesquisas, a falácia do “novo Caged”. “Estamos criando empregos formais, e bastante, mês a mês, mas tem aumentado o desemprego por causa dessa metodologia do IBGE, que atendia ao governo da época. Esse tipo de metodologia, no meu entender é o tipo errado”, declarou Bolsonaro em entrevista à CNN Brasil no último dia 8.

No entanto, as estatísticas de emprego do IBGE seguem metodologia internacional, a partir das recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao contrário da “contabilidade criativa” da equipe econômica.

Trabalho precário agora conta como “emprego formal”

A metodologia implantada no início de 2020 mudou o universo de trabalhadores abrangido. Os trabalhadores temporários agora são de preenchimento obrigatório pelas empresas, e não mais opcional. Além disso, categorias que antes não eram consideradas como emprego formal passaram a entrar na conta, como os bolsistas.

Diante dessas mudanças, os economistas alertam que o Ministério da Economia induz o público ao erro ao divulgar os resultados do Novo Caged como “recordes históricos” ou “o melhor resultado para o mês em 30 anos”. Isso porque a nova série não é igual à anterior e, com isso, a comparação no horizonte mais longo está errada.

“Quando você muda a forma de medir uma série, ela não pode mais ser comparada com a que era medida de uma forma diferente anteriormente”, explica Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

“Você está comparando banana com laranja, aí gera essas hipérboles”, reforça Luciano Sobral, economista-chefe da NEO Investimentos. “Se você se deixar levar pelo que o ministério está tentando vender como a situação do mercado de trabalho, tem uma impressão errada da economia.”

No passado, o indicador evoluía de forma próxima ao desempenho da economia segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). Quando a economia ia bem, cresciam as contratações, e quando ia mal, predominavam as demissões. Essa aderência se perdeu.

“Desde o último trimestre do ano passado, estamos observando altas muito fortes do Caged. Nunca teve altas tão elevadas na série histórica toda, nem em 2010 (ano em que o PIB cresceu 7,5%)”, observa Duque.

“Me parece que há um descaso geral com as estatísticas”, avalia Vale. “Precisaria haver um esforço maior do governo, porque quem vai pagar o preço desse descaso somos nós mesmos. Sem informações corretas, há dificuldade de fazer políticas públicas adequadas. Mas esse é um governo que não é muito fã de políticas públicas.”

“É um governo que gosta de viver no mundo que eles criam e não no mundo real, acho que essa é a questão de fundo”, conclui Sobral.

Da Redação

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