Gleide Andrade: A necessidade de um programa de esquerda para a segurança
A polícia surge no Brasil, como em todo o mundo, com o papel de preservação daquilo que se pode chamar, num plano muito geral, de “ordem pública”. A despeito de…
Publicado em
A polícia surge no Brasil, como em todo o mundo, com o papel de preservação daquilo que se pode chamar, num plano muito geral, de “ordem pública”. A despeito de no passado terem lhe sido reservadas atividades que hoje soam esdrúxulas como o zelo do espaço público (iluminação, calçamento etc.), transparece desde sua origem a proeminência de sua função de controle sobre a sociedade, notadamente sobre as camadas mais populares. Isso porque o que é considerado “normal”, o aceitável, o desejável, geralmente é definido pelo conjunto de indivíduos ocupantes do ápice da pirâmide social. Esse fenômeno toma, em países histórica e profundamente marcados pelo patrimonialismo1, como é o caso do Estado brasileiro, contornos assaz drásticos, com os inerentes reflexos sobre a atuação de suas polícias, acompanhando-as ainda na atualidade.
Entre a vinda da família real e a Constituição de 1988, a evolução dos órgãos policiais no Brasil vivenciou movimentos pontualmente paralelos, quais sejam, os processos de especialização e militarização, em meio à prevalente submissão ao poder central (à corte imperial ou à União federal), entremeada por eventuais períodos de relativa autonomia concedida às províncias, estados-membros e municípios.
O advento do golpe militar de 1964 parece trazer o momento de maior ascendência do poder central sobre a estrutura das polícias, valendo citar, como exemplo, o fato de que todos os postos de comandantes das polícias militares eram ocupados por oficiais do Exército3. Foi criada a Polícia Federal, que aliada aos serviços de informações das Forças Armadas, das próprias polícias e ao Sistema Nacional de Informação (SNI), além de outros entes, tinha agora também como atribuição o combate ao “inimigo interno” representado pelas forças de resistência ao regime.
A estruturação geral existente nesse contexto não fez senão, obviamente, aprofundar o já vigente viés das polícias enquanto braços armados a serviço do governo e de seus apoiadores nas funções de manutenção da ordem e controle social.
Chega a redemocratização, e a Assembleia Nacional Constituinte não promove – não só por pressões corporativas, mas sobretudo pela ação de grupos hegemônicos interessados na perpetuação da lógica narrada, que bem lhes servira – nenhuma mudança de fundo na formatação herdada do regime militar.
Assim, hoje temos como base de nossa estrutura de segurança o plexo Polícia Civil/Polícia Militar aliadas a polícias especializadas (Federal e Rodoviária Federal)4 e a crescente importância das guardas municipais, instituições às quais foi recentemente conferido poder de polícia. Isso para não mencionar os mais de 1 milhão de seguranças privados existentes no país.
E, diante dessa nada singela estrutura, os mais escabrosos números. A violência ceifa a vida de cerca de 60 mil brasileiros todos os anos, ao passo que apenas 8% dos homicídios são elucidados5. Os percentuais de elucidação de crimes contra o patrimônio chegam a ser desprezíveis.
Mesmo a Polícia Federal, enxergada pela sociedade como uma ilha de excelência em razão de suas notórias operações, não foge à regra. Segundo dados do Ministério Público Federal, considerados os anos de 2010, 2011 e 2012, apenas 8,3% dos inquéritos policiais serviram de base efetiva para que os procuradores oferecessem denúncias ao Judiciário, ou seja, trouxeram algo de útil enquanto resultado dos trabalhos, já incluídos aí os casos de flagrante delito. Estes, por sua natureza, de regra esgotam de pronto a investigação.
Aliás, a 7ª Câmara de Coordenação e Revisão, responsável em última instância pelo controle externo da atividade policial no MPF, já teve oportunidade de assim se manifestar acerca do método atualmente vigente: “Tem-se aqui em vista que o inquérito policial mostra-se uma ferramenta anacrônica e burocratizante, que privilegia o modelo cartorial em detrimento de uma efetiva apuração dos fatos, com o propósito de subsidiar a titular da ação penal com os elementos necessários para a formação da opinio delicti6“.
As causas imediatas dessa tragédia, no que concerne especificamente às polícias, são várias. Mas não se pode perder de vista o que sempre as permeia: a concepção de polícia historicamente prevalente, que afasta sua atuação dos objetivos primordiais de “proteger e servir” os cidadãos; o engessamento da estrutura promovido por sua inserção no texto constitucional; os ônus políticos de toda sorte advindos de eventuais alterações efetivas no modelo, uma vez que o tema é encarado como “vespeiro” pelos governantes.
Mostras disso se veem no fato de que desde um passado próximo, resguardadas disparidades naturais de uma Federação, vêm sendo feitos vultosos investimentos nas estruturas, equipamentos, quadros e salários das corporações policiais. Se é certo que eles ainda estão longe do ideal, razoável seria esperar que resultassem em decréscimo da criminalidade, quando, em verdade, acontece o oposto.
As polícias militares ressentem-se primeiramente do próprio fato de serem militares, formalmente designadas como “forças auxiliares e reserva do Exército”7. A hierarquia militar justifica-se por atender ao pressuposto do pronto emprego, momento em que não é oportuno dar aos subordinados a prerrogativa de pensar, ter escolhas. Muito conveniente num teatro de operações em que a ideia é o combate a um inimigo declarado, mas difícil de conciliar com o ideal de uma polícia “cidadã”, garantidora de direitos e imbuída na missão de servir e proteger.
A despeito da mudança formal da maior parte dos currículos das academias, o fato é que ainda hoje o policial militar recebe formação para ir à guerra.
Um paradoxo incompreensível à luz do direito comparado é não ser dada às polícias militares, que têm o maior contingente – cerca de 500 mil policiais – e o contato mais imediato com os fatos delituosos, a prerrogativa de investigar. Por força de disposição constitucional, só lhes cabem “a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.
Já as polícias judiciárias padecem do mal do bacharelismo exacerbado, em que o Direito, em vez de informar – assegurando o respeito aos direitos individuais e a regularidade dos procedimentos –, pauta a atividade investigativa. Isso se dá através do espelhamento da atividade jurisdicional naquilo que ela tem de pior: os ritos, a forma e os expedientes burocrático-procrastinatórios.
A essas polícias judiciárias cabe a sequência intermitente, com todos os ritos arcaicos/cartoriais: protocolos, despachos, idas e vindas que compõem um inquérito, na maioria das vezes não concatenadas dos atos da investigação. Essa modalidade obviamente não atende a requisitos de racionalidade e eficiência, pois, como visto, despreza os princípios da oportunidade e imediatidade, bem como o conhecimento multidisciplinar que deveria orientá-la.
Como bem disse o sociólogo Marcos Rolim9, temos no âmbito dos estados não duas polícias, mas duas metades de polícia (pois cada uma só pode desempenhar metade da tarefa representada pelo binômio prevenir-reprimir) que se originam de dois campos: as PMs, do campo da Defesa, e as PCs, do campo da Justiça, cada qual segmentada internamente entre oficiais e não oficiais e delegados e não delegados.
Identificados estão, portanto, os três principais problemas estruturais das polícias no Brasil: a ausência de ciclo completo, na medida em que nenhuma das polícias pode se dedicar indistintamente às atividades de prevenção (polícia ostensiva, de preservação da ordem) e de repressão (investigativa); inexistência de cargo único, de uma “única porta de entrada”; a natureza militar de nossa polícia ostensiva.
Essa conclusão não chega a ser nova e é razoavelmente consensual entre os grandes estudiosos da segurança pública no Brasil. Medidas tendentes a atacar esses problemas chegaram mesmo a fazer parte do programa de governo do primeiro mandato do presidente Lula. Entretanto, nem chegaram perto de ser implementadas.
As soluções são claras: desmilitarização, implementação do ciclo completo e criação do cargo único. Do ponto de vista prático, contudo, vários são os desafios e as resistências a ser superados.
Diga-se, de pronto, que se deve descartar a ideia da unificação das polícias civis e militares, propalada como meio de fazer vingar o ciclo completo. O esforço necessário para fazê-lo não compensaria os custos de juntar quadros de instituições cuja antipatia mútua não raro gera graves e violentos atritos. Isso sem falar na difícil engenharia necessária para promover a transição e adequação de cargos e patentes, funções e comandos.
A ideia da desmilitarização enfrenta, por motivos óbvios, forte lobby contrário dos oficiais, embora seja desejada pela maioria dos praças10. Em relação a estes, os temores circunscrevem-se mais à perda de benefícios previdenciários e de assistência à saúde. A desmilitarização supõe alteração do texto constitucional, circunstância que dificulta sobremaneira sua consecução, pois demandaria extraordinário empenho do governo federal junto no Congresso Nacional.
Do ponto de vista legislativo, a mudança menos difícil de operar é a criação do cargo único, malgrado a natural e virulenta resistência de oficiais e delegados.
Delegados agarram-se a uma suposta necessidade de aprofundado conhecimento jurídico para a condução de investigações, o que lhes garantiria a precedência frente aos demais cargos de suas corporações. Isso é tão verdade quanto o grau de eficiência das investigações cartoriais. Referida precedência surge, e em parte se mantém, em razão da relatada confusão histórica entre as funções investigativas e judiciais.
Veja-se ademais que, além de as corporações poderem ter setores especializados em consultoria para questões jurídicas mais complexas, presente sempre estará o órgão do Ministério Público, com formação e competência específicas na área e ao qual se destina, em última instância, o resultado dos trabalhos.
A meu juízo, as soluções são bastante óbvias; caso não se resolva, por contingências políticas, empenhar esforços numa desejável mudança radical, à luz do que pode ser feito, por exemplo, através da PEC 51/2013 com uma ou outra correção, que se as implemente na ordem crescente da dificuldade de sua implantação.
Com isso seriam multiplicados em muitas vezes os responsáveis pela condução de investigações, em se tratando das polícias judiciárias, com previsível impacto imediato nos índices de elucidação de delitos.
No que tange às polícias militares, já se iria preparando o terreno para a adoção do ciclo completo.
Nesse caso, o chamado ciclo completo mitigado, em que permaneceriam com as funções preventiva/ostensiva/de patrulhamento, sendo-lhes entregue a competência para a investigação de crimes mais rotineiros.
As polícias civis tornar-se-iam polícias especializadas em crimes de maior gravidade, como homicídios, sequestros, crime organizado etc., ficando desafogadas para bem cumprir seu novo papel.
Crê-se que isso seria suficiente para reduzir os índices de impunidade, certamente a responsável pela violência e criminalidade desde sempre crescentes.
A desmilitarização das PMs viria a solapar qualquer ranço autoritário ainda existente, promovendo sua dissociação completa das Forças Armadas e abrindo de vez o caminho para tornarem-se polícias efetivamente cidadãs.
(Artigo inicialmente publicado no site “Teoria e Debate”, no dia 8 de junho de 2015)
Gleide Andrade é vice-presidente nacional do PT e Coordenadora Nacional da Campanha pela Reforma Política da legenda