Gleisi: Fim dos conselhos de participação social é abuso de poder

“O presidente da República não pode achar que irá tomar decisões com sua própria convicção. Como representante do povo, deve agir com responsabilidade que tal situação requer”, afirma Gleisi

Ricardo Stuckert

Presidenta do PT, deputada Gleisi Hoffmann

Numa tacada só, o presidente da República, Jair Bolsonaro, acabou com 35 colegiados e colocou 700 conselhos na mira do governo, ferindo de morte o fundamental direito à participação popular. O Decreto 9759/19 deu cabo à maioria dos conselhos sociais que integravam a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Numa clara afronta à Constituição, centenas de conselhos de direitos e de políticas públicas deixarão de existir a partir de 28 de junho. Dentre eles, poderão ser extintos colegiados que discutem temas como direitos do idoso, política indigenista, transportes, trabalho e Previdência.

Com esse atitude autoritária, o atual governo ignora o papel que os colegiados exercem na democracia participativa sobre a qual se instaura o Estado Democrático de Direito. Esses espaços representam importante instrumento de aproximação entre a sociedade civil e o governo, uma vez que a participação política popular não se resume ao voto. A gestão das políticas públicas passa também pela inclusão da população nas esferas decisórias e, inclusive, com a possibilidade de fiscalizar as atividades exercidas por quem é eleito pelo voto popular.

Essa estreita relação é fundamental para a consolidação da democracia, que se concretiza com a livre circulação de informação e com a interferência direta da população nas políticas públicas. Diferentemente do Poder Legislativo, onde as várias correntes políticas podem se fazer representar mais facilmente, a estrutura tradicional do Poder Executivo oferece obstáculos ao pluralismo no processo decisório. A criação de mecanismos de participação social na Administração Pública busca neutralizar o deficit democrático.

Os processos de democratização são imperativo em relação à Administração Pública, que constitui a face mais visível do poder do Estado. Assim, os colegiados e conselhos, ampliam a participação democrática do povo nos rumos das políticas públicas ou na efetivação dos direitos garantidos legal e constitucionalmente e representam inquestionável e efetiva ferramenta. A aproximação entre a sociedade e o aparelho estatal criado para servi-la possibilita que se colham elementos para melhor orientar decisões governamentais, além de garantir a elas maior legitimidade.

A Constituição Federal de 1988 prevê o engajamento da sociedade civil no planejamento, gestão e fiscalização de políticas públicas e assegura a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos. O constituinte fez por bem em assegurar a ampla interferência popular na condução dos assuntos de governo, abrindo a gestão à sociedade, tornando-a apropriada à soberania popular. Dessa forma, cumpre-se a exigência do princípio do Estado Democrático de Direito, fundamental de organização do Estado

Para dar um exemplo, a extinção do Conselho de Recurso do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) – que tem função de órgão recursal – deixa atividades sem responsáveis pela execução. Outro caso é o do Comissão Interministerial de Governança (CGPAR) – que cuida das participações societárias e deve prestar contas ao Tribunal de Contas da União (TCU). No caso dos conselhos ligados ao meio ambiente – como é o caso da Comissão Nacional da Biodiversidade (CONABIO) e da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) – esta extinção representa uma mácula ao princípio do não retrocesso. Isso porque a questão ambiental passou a ser encarada com a seriedade em função do impacto na vida das pessoas. O mesmo raciocínio vale para o fim da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), marco civilizatório de inquestionável importância no combate às práticas análogas à escravidão, cujo regresso deve ser afastado a todo custo.

O atual governo sequer considerou de forma individualizada a função dos colegiados e os sérios impactos que a extinção desses organismos pode gerar. De maneira irresponsável, quer dar fim a todos eles, sem o mínimo de critério técnico ou social. Poderia afirmar que a medida ocorreu por incompetência, mas em se tratando de uma gestão temerária e autoritária como a que temos assistido, sabe-se que o objetivo é realmente calar a voz da sociedade roubando dos brasileiros de exercer sua cidadania.

A nossa Constituição Cidadã é explícita sobre um dos fundamentos da República brasileira: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A supressão de meios de inclusão do povo é um retrocesso sem precedentes diante do avanço da sociedade moderna que pretendemos. O Decreto de Bolsonaro prioriza uma gestão autoritária e distante do povo, de onde emana todo o poder.

O presidente da República não pode achar que irá tomar decisões com sua própria convicção. Como representante do povo, deve agir com responsabilidade que tal situação requer. O fim dos conselhos representa um abuso deste poder. É um despotismo inadmissível em um Estado Democrático de Direito e uma clara violação aos princípios republicano, democrático e da participação popular.

Diante de tal vilania, o Partido dos Trabalhadores resolveu agir em duas frentes, apresentando no Congresso Nacional projetos de decreto legislativo (PDL) para sustar o Decreto de Jair Bolsonaro e entrando no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com pedido de liminar para que o Decreto 9.759 seja declarado inconstitucional e suspenso o quanto antes. Espera-se que a Suprema Corte aja rapidamente para conter esse e outros descalabros que vem sendo cometidos por um governo que pretende solapar a participação e a vontade popular.

*Gleisi Hoffmann é presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores e deputada federal (PR)

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