Governadores reagem à tentativa de Bolsonaro controlar as polícias estaduais
Proposta de criação de lei orgânica da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros estava parada no Congresso desde 2001. Em 2019, Bolsonaro apoiou a reativação dos debates para atrair apoio das corporações. Ex-tenente-coronel da PMSP repreende “chefes de Executivo que namoraram o discurso autoritário” e agora “sentem o tiro no próprio pé”. “Nossa posição é manter o princípio constitucional do poder do eleito na escolha da equipe para as áreas executivas, e a segurança pública é uma delas”, adverte o governador Wellington Dias, do Piaui
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Passo a passo, a escalada autoritária do bolsonarismo vai se infiltrando por entre vácuos jurídicos e brechas abertas pela falta de regulamentação para alguns dispositivos constitucionais. O projeto de Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e Bombeiros Militares, por exemplo, que circula há mais de vinte anos no Congresso Nacional como proposta do Poder Executivo (PL 4.363/2001), foi reavivado ainda no primeiro ano de desgoverno Bolsonaro, em 2019, e ganha força nesse momento em que as cartas para as eleições de 2022 são lançadas à mesa.
Em setembro passado, a Câmara dos Deputados retomou os debates sobre a proposta com a anuência do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em audiência promovida na ocasião, o coordenador da bancada federal do Rio de Janeiro no Congresso, deputado Sargento Gurgel (PSL), defendeu a atualização da proposta original.
Essa tarefa vem sendo conduzida sem alarde pelo relator do projeto, Capitão Augusto (PL-SP), líder da bancada da bala no Congresso, que reúne 300 parlamentares. Embora o deputado bolsonarista ainda não tenha apresentado formalmente o relatório, matéria publicada nesta segunda (11) pelo jornal ‘O Estado de São Paulo’ gerou forte reação dos governadores estaduais às medidas descritas na reportagem.
Os governadores avaliam que as propostas restringem o poder político dos estados sobre as tropas armadas e os bombeiros. Também identificaram inconstitucionalidades e a interferência do Palácio do Planalto nas corporações, cujas estruturas sofreriam fortes alterações. E com todas as negociações conduzidas de forma insidiosa, basicamente apenas no âmbito das entidades representativas de oficiais e praças.
“Não estava no nosso radar”, revelou ao ‘Estadão’ o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), presidente do Fórum de Governadores do Nordeste. “Nossa posição é manter o princípio constitucional do poder do eleito na escolha da equipe para as áreas executivas, e a segurança pública é uma delas.”
Medidas como mandato de dois anos para comandantes-gerais e delegados-gerais, com condições para que sejam exonerados antes do prazo, é uma das formas de limitar o controle político dos governadores sobre as corporações.
Outra forma é instituir uma lista tríplice indicada pelos oficiais para a escolha de comandantes da PM, estipulando que destituição por iniciativa do governador seja “justificada e por motivo relevante devidamente comprovado”. Para dispensa “fundamentada” do delegado-geral Polícia Civil, seria preciso ratificação da Assembleia Legislativa ou Câmara Distrital, em votação por maioria absoluta dos parlamentares.
Por modificações como essas – e mais a instituição de um Conselho Nacional de Polícia Civil ligado à União – o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), critica as propostas, lembrando que cabe aos estados legislar sobre a autonomia das polícias. “Creio que o Supremo declararia inconstitucional se isso um dia fosse aprovado no Congresso Nacional, na medida em que viola o princípio federativo e também por vício de iniciativa”, argumentou.
“Matéria desse tipo só pode tramitar nas Assembleias Legislativas, por iniciativa privativa dos governadores. Logo, quem desejar debater deve buscar as instâncias competentes dos estados”, completou o governador maranhense, que é ex-juiz federal.
Em matéria publicada nesta quarta-feira, 13, o jornal o Estado de São Paulo informa que “generais da ativa ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato dizem que as PMs são forças auxiliares das Forças Armadas, como está previsto na Constituição, razão pela qual, se os projetos forem aprovados, podem provocar um grave problema de hierarquia”. Como exemplo, diz o jornal, um general cita que caso seja necessário acionar as Forças Armadas por alguma razão, como a Garantia da Lei e da Ordem, por exemplo, o policial pode não aceitar a ordem do militar por ter uma patente maior ou por se considerar do mesmo nível hierárquico.
Ao ‘Estadão’, o sociólogo Luis Flávio Sapori, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), considerou que as propostas representam um retrocesso, e correm à revelia da sociedade brasileira. “São acordos intramuros. O projeto está muito de acordo com a perspectiva do governo Bolsonaro: há um alinhamento ideológico claro pela maior militarização e maior autonomia das polícias militares em relação ao comando político”, criticou.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que vem disputando com Bolsonaro a preferência do eleitorado de direita em 2022, foi categórico sobre o movimento: “Somos radicalmente contra”. “Já mobilizamos a bancada de São Paulo e outros governadores também estão mobilizando suas bancadas”, anunciou.
“Exemplo para chefes de Executivo que namoraram discurso autoritário”
Em entrevista ao ‘Jornal Brasil Atual’, Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, disse esperar que o projeto “sirva de exemplo para esses chefes de Executivo que ficam namorando o discurso autoritário e de eliminação de pessoas como medida eficiente de segurança pública. Porque agora eles estão sentindo o tiro no próprio pé”.
Um recado direto a Doria, que nas eleições de 2018 surfou na onda “bolsodoria” e agora, por conveniência eleitoral, posa de antípoda a Bolsonaro. Outro recado do ex-policial é que não há exagero em imaginar que as propostas revelam um “golpe já em andamento”. “Certeza que esse projeto é um passo solene e firme dado em direção a uma ruptura institucional”, assegurou.
O ex-policial acrescenta que o Bolsonaro já deu “avisos explícitos de que não vai aceitar a transmissão pacífica de poder” caso perca as eleições em 2022. “E ele tem chance (de perder), porque está só errando. Embora ele ainda tenha 37% de apoiadores, está caindo, mas ele não vai entregar o poder. Por isso que ele está se articulando para ter braços armados para fazer a vontade ditatorial dele.”
Na análise de Souza, a retirada de controle estadual é semelhante à interferência do presidente na Polícia Federal. “Ele quer concentrar o poder do braço armado do Estado sob sua égide, o poder direto dele, para usar contra adversários políticos e candidatos que terão chance de derrotá-lo nas próximas eleições”, pondera.
“Ele vai ter capitalizado muito mais que as Forças Armadas, mas milícias policiais prontas para desestabilizar determinado estado para ele aferir vantagem eleitoreira e política através de uma intervenção inconstitucional e subversiva”, aponta o ex-tenente-coronel, acrescentando: “Se nós vivemos em uma democracia, precisamos ter maior controle civil. E não guardas presidenciais para instaurar uma ditadura em nosso país”.
Souza, que é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), aponta outro problema sério na concessão de maior autonomia às forças policiais: a ampliação do poder de letalidade e as possibilidades de abuso por parte da polícia sobre a população.
Em 2015, um relatório da organização Anistia Internacional mostrou que a força policial brasileira é a que mais mata no mundo. E a população negra é a principal vítima da violência do Estado no país, representando 75% dos mortos, como mostra relatório da Rede de Observatório da Segurança de 2020.
Em agosto passado, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e da empresa de inteligência digital Decode identificou que 41% dos praças das PMs interagiam em ambientes virtuais bolsonaristas no Facebook, e 25% deles ecoavam ideias radicais. Boa parte defendendo abertamente o fechamento das instituições republicanas e uma “intervenção” de Bolsonaro pela ruptura da ordem democrática.
“Ou seja, já tem uma série de medidas permitindo autonomia e dizendo aos policiais ‘Eu sou o pai de vocês, estou com vocês. E por favor estejam comigo quando eu precisar’. É essa a ligação direta que ele (Bolsonaro) está fazendo”, concluiu o ex-oficial da PMSP.
Desgoverno Bolsonaro participa das discussões
O Palácio do Planalto participa ativamente das discussões sobre a lei orgânica das PMs, inclusive com sugestões para os projetos, desde a gestão do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Questionado sobre o assunto, o atual titular da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou reuniões com conselhos nacionais, associações e sindicatos das polícias estaduais para discutir e receber sugestões ao texto.
Capitão Augusto revelou que havia um acordo com Rodrigo Maia para votar a proposta já em 2020, mas a pandemia e as eleições municipais adiaram a pauta. A despeito da inexistência de consenso sobre parte das mudanças, o relator entregou a pressa. “Falta aparar algumas arestas para ter o texto pronto, mas, se não tiver consenso, vou pedir para pautar da mesma forma. A gente retira o que não tem acordo e aprova-se o resto.”
Pelo Twitter, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima, analisou que as propostas de retirada do poder dos governadores sobre as polícias “da forma como estão redigidas, transformam os governos estaduais em meros pagadores de contas, sem nenhum tipo de controle ou participação nas decisões estratégicas”. A crítica é que os projetos podem criar na polícia um “poder paralelo”.
Como a história se repete – como farsa ou tragédia – vale recordar que a autonomia dos governadores no controle das Polícias Militares estaduais, que agora Bolsonaro tenta solapar por dentro das próprias normas democráticas, é que permitiu ao então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, mobilizar a Brigada Militar e impedir o golpe contra o vice-presidente João Goulart, em 1961, quando o presidente Janio Quadros renunciou. Três anos depois, o golpe finalmente se concretizou.
Da Redação, com ‘Brasil de Fato’