Governo Bolsonaro é acusado de racismo na ONU
Alvo de denúncias por discriminação e violência policial no Conselho de Direitos Humanos, país defende forças de segurança enquanto desmonta ações afirmativas. Africanos querem inquérito independente contra Trump e aliados
Publicado em
Na reunião de emergência do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil roubou a cena. Mais de uma centena de entidades do Movimento Negro brasileiro pediram a palavra no encontro desta quinta (18) para denunciar o governo Bolsonaro e suas tentativas de “passar o pano” para a violência policial no país.
“No Brasil, o assassinato de crianças e jovens negros pelas forças policiais é uma realidade diária”, afirmou o coletivo, liderado pela Coalizão Negra por Direitos. “As favelas e bairros predominantemente negros são alvos constantes de violência policial. Em 2020, no Rio de Janeiro, mais de 300 pessoas, incluindo 5 crianças, foram mortas na presença de agentes de segurança.”
“Denunciamos a escalada no Brasil da legislação que flexibiliza a posse de armas para a população civil. A Coalizão também repudia ações judiciais que estendem medidas de prisão da população negra por todo o país”, continuou o grupo, lembrando que centenas de comunidades negras rurais estão ameaçadas de expulsão de suas terras devido a projetos econômicos por todo o país, especialmente na Amazônia. As violações perpetradas contra as comunidades quilombolas também foram mencionadas.
A reunião emergencial foi solicitada na última sexta (12) pela União Africana, que pediu a inclusão de um debate sobre o racismo global na agenda da 43ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, retomada após um intervalo de três meses. O apelo também havia sido feito por mais de 600 grupos de direitos humanos, motivados pelo episódio da morte de George Floyd nos Estados Unidos.
Na segunda (15), o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial instou os Estados Unidos a realizarem reformas estruturais imediatas para acabar com a discriminação racial e manter suas obrigações sob a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo país em 1994. “Ninguém deve ser vítima de discriminação racial, esta é a essência da Convenção”, disse Noureddine Amir, presidente do Comitê.
No início da sessão, na segunda (15), os oradores apelaram ao Conselho para manter o foco da proposta de comissão de inquérito sobre o assassinato de George Floyd, brutalidade e discriminação racial institucional na polícia dos Estados Unidos. Também foi incentivada a criação de uma segunda comissão internacional temática de investigação para investigar o racismo sistêmico e a brutalidade policial a nível mundial.
Pressionada pelos Estados Unidos e países aliados ao longo da semana, a União Africana recuou do pedido de inquérito, mas pediu uma investigação liderada pela chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos. A sessão se estenderá até segunda (22). A votação do projeto de resolução sobre o processo foi novamente adiada nesta quinta.
A paciência acabou
Discursando ao Conselho, Bachelet adotou um tom urgente. “Tempo é essencial. A paciência acabou ”, disse ela. “Vidas negras são importantes. Vidas indígenas são importantes. A vida das pessoas de cor é importante. Todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos e é isso que este Conselho, como o meu escritório, representa.”
O grupo de militantes brasileiros manifestou apoio ao pleito dos governos africanos: “A Coligação Negra pelos Direitos apoia plenamente a instalação de uma comissão de inquérito internacional independente. Reiteramos que o ódio racial, o discurso do ódio e os crimes, o neofascismo, as ideologias nacionalistas violentas e as ideologias da superioridade racial que incitam à violência contra os africanos e os descendentes de africanos ameaçam a paz e a democracia em todo o mundo”.
O governo brasileiro, que vem atuando em defesa do governo de Donald Trump, pedindo uma investigação genérica global e não um inquérito em países específicos, rebateu o Movimento Negro em resposta lida no plenário. Segundo o Itamaraty, o governo está “fortalecendo a luta contra o crime, reduzindo a insegurança, protegendo a população e promovendo o desenvolvimento”.
Em sua resposta, o governo ainda reiterou o “compromisso com os direitos humanos, Estado de Direito e com o caráter democrático de nossa sociedade”, além de garantir que afrodescendentes são alvos de políticas públicas.
Sociedade civil e Câmara também denunciaram
A atuação do governo brasileiro também foi denunciada por 123 instituições da sociedade civil, pela presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara e mais 14 deputados. Em correspondência, eles reportaram à ONU violações de direitos humanos contra a população negra e questionaram a nomeação e atuação de Sérgio Camargo à frente da Fundação Palmares.
O ofício, enviado a Michele Bachelet e outros diplomatas das Nações Unidas, aponta uma série de assassinatos de cidadãos negros cometidos por forças policiais. Para o deputado Helder Salomão (PT/ES), presidente da CDHM, “o racismo estrutural sempre existiu no Brasil, mas está se agravando muito no atual governo”.
Segundo Salomão, “a letalidade policial aumenta, os homicídios de pessoas negras aumentam, querem desvirtuar a Fundação Palmares. Esses documentos para a ONU sobre racismo mostram a atitude mentirosa, omissa e criminosa do governo. O racismo estrutural no nosso país é muito grave e deve ser combatido de todas as formas”.
No documento, é citada a ação do Ministério da Família e dos Direitos Humanos, que excluiu do relatório do Disque Direitos Humanos os indicadores de violência policial praticada no Brasil em 2019. De acordo com o próprio Disque 100, as denúncias cresciam.
Também é relembrado o episódio ocorrido em 5 de agosto de 2019, quando Bolsonaro defendeu que os policiais que cometem homicídios em serviço não devem ser processados, e, referindo-se ao crime nas favelas, disse “os caras vão morrer na rua igual barata, pô. E tem que ser assim”.
O documento finaliza pedindo missões oficiais ao Brasil para conhecer as violações de direitos humanos reportadas. Além da missão também solicitaram uma teleconferência para expor detalhes da situação.
A vingança de Weintraub
Uma das políticas públicas destinadas a afrodescendentes mencionadas pela embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, foi desmantelada um dia após ela argumentar que “o racismo não é exclusivo a nenhuma região específica” e reconhecer “o papel indispensável das forças policiais para garantir a segurança pública e proteger o direito a uma existência pacífica e segura, o direito a própria vida”.
Em um de seus últimos atos como ministro da Educação, o agora demissionário Abraham Weintraub revogou uma portaria que previa a inclusão de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência em programas de pós-graduação em universidades e institutos federais.
A portaria foi editada em maio de 2016 pelo então ministro da Educação Aluísio Mercadante. A revogação, publicada nesta quinta no Diário Oficial da União (DOU), trará impactos negativos para o acesso de negros e indígenas em mestrado, mestrado profissional e doutorado.
A medida de Weintraub contraria entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou, em 2012, a Constitucionalidade das Políticas de Ações Afirmativas. A Lei nº 12.990/2014 reservou 20% das vagas aos negros no serviço público federal. A legislação cita que as “ações afirmativas na graduação não são suficientes para reparar ou compensar efetivamente as desigualdades sociais resultantes de passivos históricos ou atitudes discriminatórias atuais”.
Durante a vigência da portaria anulada por Weintraub, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) coordenava a elaboração periódica do censo discente da pós-graduação brasileira, com o intuito de fornecer os subsídios para o acompanhamento de ações de inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação.
A mais recente pesquisa sobre o assunto, divulgada em 2015, mostrou que o número de estudantes negros (soma de pretos e pardos) no mestrado e no doutorado mais que duplicou de 2001 a 2013, passando de 48,5 mil para 112 mil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Considerando apenas os estudantes pretos, o número passou de 6 mil para 18,8 mil, um aumento de mais de três vezes.
Embora representem a maior parte da população (52,9%), os estudantes negros são apenas 28,9% do total de pós-graduandos. O número de estudantes brancos nessa etapa de ensino também aumentou nesses 12 anos, passando de 218,8 mil para 270,6 mil.
Governos do PT abraçaram a África
A aproximação do Brasil com países do Sul e, dentre eles, os do continente africano, foi uma característica marcante do Itamaraty durante os governos do PT. Em abril de 2005, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a Ilha de Gorée, na costa do Senegal, local de onde africanos escravizados eram transportados para a América. Ele foi o primeiro presidente do Brasil a pedir “perdão pelo que fizemos aos negros”.
Esse foi um dos muitos gestos que destacaram os governos do PT de outros governos brasileiros em relação ao povo negro e à África. Juntos, Lula e Dilma abriram metade das 39 embaixadas no continente (que tem 54 países) e firmaram mais de 600 projetos de transferência de conhecimento e tecnologia em 43 nações. Em 2002, eram 21 ações em seis países.
De 2003 a 2012, o comércio exterior com a África saltou de US$ 6 bilhões para US$ 26,5 bilhões. A participação do continente na balança comercial, apesar de tímida, saiu da estagnação e passou de 5,1%, em 2003, para 5,7%, em 2012, segundo o Instituto Lula.
Na Era Lula, pelo menos 500 empresas nacionais se instalaram em países africanos. O Banco do Brasil e o BNDES destinaram mais de US$ 4 bilhões em créditos de exportação. Também foi Lula que criou a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que busca integrar alunos de países onde se fala português e que hoje conta com aproximadamente 50% de africanos no corpo discente.
“O Lula sabia falar, ele fazia visitas e no fundo ele estava lá pedindo votos na ONU. Tanto que mesmo depois de seu período, o diretor geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), Roberto Carvalho de Azevêdo, e o secretário geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), José Graziano, foram brasileiros nomeados basicamente com votos africanos”, conta Henrique Gerken Brasil, autor da pesquisa ‘Relações externas Brasil-África: da política externa independente ao governo Lula’.
A relação com os países africanos solidificou-se pela via da colaboração. Henrique conta que esse foi o diferencial de Lula em relação a outros presidentes: “Não foi o Lula que inventou a cooperação internacional, mas ele aprofundou. Ele enxergou o continente africano e aplicou nele não só o discurso culturalista mas, sim, uma política de cooperação”.
Naquele momento, a África passou a perceber o Brasil como um modelo a ser seguido, a “ex-colônia que deu certo”, já que os seus programas e políticas estratégicas foram bem-sucedidos e exportados para África e outras regiões do globo, com alto grau de aceitação e de resultados. Graças à estrutura lógica dos projetos de cooperação técnica implementados pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), em consonância com as instituições técnicas (Sebrae, Senai, Embrapa, Fiocruz, entre outros) em parceria com as instituições dos países receptores.
Tudo isso foi por água abaixo após o golpe contra Dilma e o descaminho de subserviência aos interesses norte-americanos adotado desde então pelos ministros das Relações Exteriores de Temer e Bolsonaro.