Ivana Bentes: Governo Bolsonaro tenta sufocar a cultura de seu próprio povo
Para a pesquisadora, ataques a políticas de cultura tentam minguar a produção nacional, mas são um tiro no pé, já que aumentam o desemprego e a economia perde
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Um dos maiores eventos do cinema mundial, o festival de Cannes, na França, selecionou para a competição Bacurau (2019), novo longa do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Isso aconteceu na quinta-feira (17). Um dia depois, a Secretaria Especial da Cultura, do governo de Jair Bolsonaro (PSL), negou o último recurso do cineasta que se defende de supostas irregularidades na captação de recursos para O Som ao Redor (2012). Kleber se posiciona abertamente na oposição do governo de extrema-direita.
Na mesma semana, por decisão do governo Bolsonaro, a Petrobras cortou patrocínio de 13 projetos culturais. Investimentos históricos, que colocaram a cultura brasileira no cenário internacional. Correm risco eventos como o Anima Mundi, maior festival latino-americano de animação e os tradicionais festivais de cinema de São Paulo e de Brasília, entre outros. Enquanto isso, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), enfrenta paralisação nos editais, com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) ameaçado e sem a estrutura do Ministério da Cultura (MinC) para assegurar a resiliência. Bolsonaro extinguiu a pasta.
Conhecedora do setor cultural e de políticas públicas aplicadas, Ivana Bentes foi secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do extinto MinC. Em entrevista à RBA, Ivana classifica, delicadamente, o avanço do desmonte na Cultura como “desinteligente”. E “catastrófico”, ao elevar o tom.
Fora a valorização do nosso povo no campo simbólico, “um tiro no pé para um governo que precisa aquecer a economia. São milhões que circulam. Então, como você tira os recursos de um campo tão decisivo, que move grande quantidade de pessoas e é interligado com tantos outros setores?”, questiona.
De acordo com extinto MinC, a Cultura movimentava 4% do PIB até o agravamento de seu desmonte neste ano. O Banco Mundial calcula que a área seja responsável por 7% do PIB do planeta. O audiovisual cresceu expressivamente no Brasil na década passada. De 2009 para 2014, os investimentos federais foram de R$ 149,1 milhões para R$ 356 milhões. No mesmo período, o público nos cinemas cresceu 53%. São dados do Atlas Econômico da Cultura Brasileira, divulgados em 2017.
Falando em números da Petrobras, um dos maiores investidores históricos no setor, o freio já é notável e tende a reduzir drasticamente. Em 2011, no auge dos patrocínios culturais da estatal, foram R$ 153 milhões. No ano passado, o número caiu para R$ 38 milhões. Com os cortes anunciados, a escassez será total, os investimentos tendem a reduzir drasticamente.
“Parece um revanchismo, uma desinteligência, repito, atacar o campo cultural como se não tivesse importância. É um retrocesso enorme, não investir é não entender nada do mundo”, afirma Ivana, que lembra também da importância da cultura para o turismo. “A cultura vende o país para o exterior, é impossível pensar em turismo sem cultura. Tem uma quantidade gigantesca de ciclos econômicos envolvidos”.
Ivana falou mais sobre revanchismo. Há três anos, durante o festival de Cannes, a equipe do premiado filme Aquarius (2016), do mesmo Kleber Mendonça Filho, fez um protesto na cidade francesa contra o golpe que tirou a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT) de seu cargo. Grande parte do setor cultural não apoiou Bolsonaro, e com uma óbvia explicação. A cultura representa a diversidade do povo e, Bolsonaro, com suas declarações sexistas, homofóbicas, não representa tal valor. “Deve ter um ressentimento porque boa parte do campo cultural não apoiou o governo. Mas um Estado ressentido, que luta contra o próprio povo, está doente.”
“Esse ódio à cultura tem relação com o horror à diversidade”, relata Ivana. “É uma cruzada contra a diversidade de pensamento, já que a cultura é um campo de produção de multiplicidade. Então, esse grupo que ataca a cultura tem essa visão reducionista, com um viés ideológico tacanha, porque não entende a cultura como campo de riqueza humana, sociabilidade”, completa.
Mais uma vez, um ataque “desinteligente” em diversos aspectos. “Temos no Brasil mesmo um campo conservador que não tem esse tipo de visão redutora. Temos um campo liberal na economia que apoia a cultura, pessoas educadas na convivência da música, do teatro, dos museus. Então, achar que a cultura é carimbada por um campo político só é de uma ignorância atroz. Existem produtores culturais com os mais diferentes entendimentos políticos e todos serão afetados.”
Então, jogar na mesma vala a produção cultural de um país imenso como o Brasil é, inegavelmente, algo pouco inteligente. “Qual o mal que eles enxergam? Pensamento crítico?”, questiona novamente Ivana. “É o auge do viés ideológico”, define.
Entretanto…
A cultura haverá de resistir a qualquer tipo de ataque. É a produção humana que caracteriza uma sociedade, é o que ela faz, o que ela é. Não é possível “matar” algo com tais características. Podem sufocar economicamente, mas não anular. “A cultura é um campo com certo nível de autonomia. O Estado não vai conseguir destruir, a cultura está enraizada de formas distintas no povo. Felizmente, vão sobrar instituições, mesmo privadas, que investirão na cultura”, diz Ivana.
Essas instituições já estão funcionando plenamente. “Esse setor tem uma grande mobilidade. Temos um ministério da cultura paralelo, tem o Sesc, o IMS (Instituto Moreira Salles), Itaú Cultural, empresas privadas. Inclusive, elas tomaram o modelo das políticas públicas do MinC como diretriz. O MinC pautou a própria iniciativa privada, um avanço enorme. As políticas públicas municipais e estaduais também podem responder a essa brutalidade se articulando e organizando.”
Por fim, como afirma Ivana, a “cultura sempre trabalhou na escassez”. Em momentos conturbados, como durante a ditadura civil-militar (1964-1985), a cultura trabalhou à revelia do governo. “Mesmo em décadas em que políticas públicas não existiam com a consistência que tivemos nos últimos tempos. O campo cultural é resiliente. Talvez o ataque acelere a emergência de novos modelos produtivos. Há crises que podem acelerar sistemas novos. A cultura não vai morrer com ataques, ataques burros, mas sobreviverá.”