Juristas repudiam fichamento de pobres por Exército no RJ

Especialistas de diferentes matizes ideológicas relatam à Agência PT seu choque pelo descasamento da intervenção com preceitos básicos da Constituição

Fernando Frazão/Agência Brasil

Militares protagonizam uma série de vilipêndios aos direitos fundamentais no Rio de Janeiro

São poucos os juristas que não demonstram indignação contra o que está sendo feito pelas Forças Armadas sob o comando de Michel Temer na intervenção federal que se impôs ao Rio de Janeiro. A contrariedade se dá especificamente com a prática adotada de fichar todo e qualquer morador de algumas comunidades que queira sair de sua casa para ir trabalhar.

O cidadão é obrigado pelas tropas a mostrar RG e deixar-se fotografar. E se não estiver portando documento oficial com foto? E se não quiser se deixar fichar? Aí volta para casa, não sai da comunidade.

São tantas as ilegalidades, as inconstitucionalidades, os descumprimentos a tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que os juristas até perdem a conta. Cada um vai citando uma norma que está sendo flagrantemente rasgada pela ocupação de Temer.

A Agência PT de Notícias ouviu especialistas de diferentes matizes ideológicas e doutrinárias. Nenhum foi capaz de escudar os procedimentos postos em prática na intervenção federal. Todos se mostraram chocados e entristecidos com o que ora acontece no Brasil. Veja abaixo os apontamentos dos juristas, com trechos selecionados para se evitar uma repetição cansativa de vícios do decreto interventor e da atuação do Exército.

Gustavo Henrique Badaró – Professor Associado de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP)

“O procedimento é claramente ilegal. Não há nenhuma obrigação de que as pessoas passem por cadastramento ou se identifiquem em situações como as que vêm ocorrendo. Muito menos que tais atos possam ser colocados como condicionantes para que os cidadãos das comunidades exercitem o direito de ir vir, garantido pela Constituição.

Existe na Constituição duas situações excepcionais, o Estado de Sítio e o de Defesa, em que alguns preceitos fundamentais podem ser relativizados. Mas o que está acontecendo no Rio é uma intervenção federal, que de nenhuma maneira suspende direitos como o de privacidade e o de locomoção.

A intervenção implica restrição ao exercício da função publica a quem foi eleito (o governador do Rio de Janeiro), mas jamais pode relativizar direitos individuais dos cidadãos do estado sob intervenção.”

André Lozano Andrade – advogado especialista em processo penal, coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

“O procedimento adotado pelo Exército é absolutamente ilegal. Jamais a autoridade policial poderia fotografar compulsoriamente alguém que já está apresentando um documento oficial com foto. Nem na delegacia de polícia isso é permitido, quando alguém é levado coercitivamente ao local sobre manifesta suspeita de cometimento de ato ilícito, quanto mais assim, gratuitamente.

Para qualquer agente de segurança abordar um cidadão na rua para revista e identificação, é preciso que exista alguma motivação, alguma suspeita de que aquela pessoa estaria portando algo ilegal, estaria prestes a cometer ou teria cometido algum crime. Caso contrário, caracteriza-se flagrante abuso de autoridade.

O que se observa na Maré nada mais é do que a criminalização da pobreza. A premissa é a de que uma pessoa, por ser moradora de uma determinada comunidade, que abriga milhares de cidadãos, já presumidamente pode ser tratada como suspeita, já pode receber o tratamento que se dá a suspeitos. Não há qualquer previsão legal que permita tal procedimento.

É preciso lembrar que a Constituição Federal não está suspensa no Rio de Janeiro, os direitos fundamentais previstos no Artigo 5º da Lei Maior seguem vigente nas comunidades da capital fluminense ou onde quer que seja dentro das fronteiras brasileiras.”

André Castro – Defensor Público-Geral do Estado do Rio de Janeiro

“Sobre o fichamento de moradores de comunidades fluminenses por militares das Forças Armadas: a abordagem generalizada de cidadãos está em manifesto desacordo com a Constituição Federal e configura violação dos direitos fundamentais. Trata-se, portanto, de grave violação dos direitos à intimidade e a liberdade de locomoção.

É extremamente preocupante a ausência de transparência nas operações, são graves as notícias de expulsão de profissionais da imprensa dos locais onde essas ações estão sendo realizadas. Trata-se de inconstitucional violação ao exercício profissional do jornalista, que tem não apenas o direito, mas também o dever de informar à população sobre o trabalho das instituições.

Os agentes federais, como qualquer ente público, têm o dever administrativo de prestar contas à sociedade, além da estrita observância dos princípios constitucionais.”

Thayna Yaredy – Advogada especialista em questões raciais e violência institucional. Coordenadora de Direitos Humanos do IBCCRIM

“Além dos direitos fundamentais previstos na Constituição, ações como essa ferem tratados e convenções internacionais, como a Convenção Internacional dos Direitos Humanos e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Esse tipo de catalogação não passa só pelos adultos, e viola normas supraconstitucionais.

O decreto de intervenção deveria conter a previsão dos procedimentos que seriam implementados, como seriam as abordagens, mas nunca indo além do permitido na Constituição. Mas, infelizmente, o decreto é omisso e inócuo nessas questões.

O comportamento do Exército caracteriza aplicação da violência para manutenção do poder, além de ser racista e discriminatório, criando cidadãos de primeira e segunda classe. Afinal, as ações de bloqueio e fichamento são feitas exclusivamente em comunidades, ocupadas por famílias negras e pobres. O arbítrio é relegado a determinados setores da sociedade, onde tradicionalmente qualquer tipo de violência é permitido. Em nome da segurança pública do asfalto, deixa-se de resguardar a a cidadania de quem mora no morro.

O estado de exceção só está acontecendo nas comunidades pobres, a exceção da atuação de segurança não está sendo utilizada nos bairros nobres. as pessoas são despidas da qualidade de ser humano nos morros, e chefes de tráfico do asfalto não são atingidos por qualquer ação.”

Breno Melaragno – Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil)

“Obrigar as pessoas a tirar fotos é ilegal, assim como fazer revistas de forma indiscriminada. Os agentes se excedem quando pedem para fotografar as pessoas, é um constrangimento ilegal e o cidadão pode (deveria poder) recusar.”

Yuri Felix – Professor de Direito Processual Penal e diretor do IBCCRIM

“Os direitos à personalidade e à liberdade de locomoção são fundamentais. São direitos que estão além de um decreto de intervenção. Não cabe ao Estado estabelecer as regras para que o indivíduo exercite essas prerrogativas. Quando o indivíduo se vê coagido a fornecer sua imagem e alguns dados, não sendo suspeito de qualquer delito, tem seus direitos mais básicos vilipendiados pela ação estatal.

Afirmar que o indivíduo deve andar com documento de documentação ou terá seu direito de locomoção cassado remete aos tempos da Ditadura Militar, quando existia a chamada “prisão para a averiguação”. Já não existe nenhuma previsão legal que permita algo nesse sentido

Estamos diante do arbítrio. Vivemos um período democraticamente complicado do ponto de vista de garantias fundamentais, para dizer o mínimo.”

Por Vinícius Segalla, da Redação da Agência PT de Notícias

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