Letras Por Elas | Conselhos a um jornalista ou como largar mão de ser besta

Livro de Voltaire, escrito no século 18, já adiantava que arrogância e exibicionismo intelectual não servem para nada

Ana Clara, Agência Todas 

 

Faz muito tempo que li “Conselhos a um jornalista”, do Voltaire. Não tanto tempo quanto ele foi escrito, obviamente, mas um período longo suficiente para ter retido apenas a mensagem mais importante: é preciso e é possível largar mão de ser besta. 

Não achem vocês que isso serve só para jornalistas. O título do livro é direcionado a esses profissionais, mas era uma época em que apenas os jornalistas (e um certo grupo seleto de profissionais liberais) detinham o poder de difusão e formação de opinião pública, ainda mais sobre críticas culturais (livros, revistas, espetáculos, músicas, etc). Hoje, a rigor, todo mundo tem um mini veículo para chamar de seu, nem que seja o próprio perfil das redes sociais. 

Dito isso, que todo mundo está agregado na grande bronca universal que o Voltaire dá na humanidade, posso contar que esse livro é um tratado sobre como podemos expor às pessoas — o tal ‘grande público’ — assuntos como arte, literatura, poemas, história, teatro, filosofia, línguas e estilo sem parecer um ET iluminado enviado pelos cosmos para a grande revelação de uma interpretação da obra que só uma mente brilhante é capaz de alcançar. 

Na verdade, o Voltaire está dialogando com um perfil de pessoa que trata assuntos “culturais” de forma incompreensível para o grande público —  ou seja, usa palavras difíceis e uma linguagem que só um grupo seleto entende; força interpretações abstratas de uma obra para parecer inteligente; e torna aquele determinado assunto completamente inacessível a quem não tem acesso ao chamado “capital cultural” — que, obviamente, depende bastante do capital econômico. 

No livro, o filósofo segue de voadora em cima arrogância e do exibicionismo intelectual — um fenômeno que existe há, pelo menos, três séculos e não houve pós doc que fizesse esse trem parar até hoje. Afinal, trezentos anos depois, o patriarcado conseguiu complexificar esse tipo de comportamento e, atualmente, talvez se expresse bastante no perfil macho palestrinha que busca recorrentemente fazer do acesso ao conhecimento o palco de afago do próprio ego. 

De volta ao francês, o autor elabora as possibilidades de fazer uma abordagem mais acessível, em que a prioridade seja uma avaliação sensata de determinado filme, obra, espetáculo ou qualquer atividade cultural. A questão da sensibilidade e das sensações vividas são itens importantes a serem considerados na exposição do tema para as pessoas — em uma linguagem acessível e democrática. 

Apesar das orientações e das dicas de Voltaire, em 1737 (!!!), a prática ainda persiste, não apenas em setores acadêmicos, mas em todo grupo que compartilha um determinado tipo de conhecimento. Esse livro influenciou muito na minha formação — toda vez que penso escrevo um texto sobre uma obra, desenho alguém na minha frente ouvindo e dizendo: ‘larga mão de ser besta, menina’. 

Esse guia, muito voltado para jornalistas, mas muito bem aplicado para todo mundo na era digital, também pode servir de guia para tratar de política com as pessoas. Essa arrogância e pedantismo, ainda muito presentes nas abordagens mais politizadas, precisam ser dirimidas e isso não significa lançar mão da superficialidade. 

Por fim, fosse eu roteirista de filme de ficção científica espaço-tempo, escreveria um aqui e agora em que Voltaire, na verdade, era aluno do Paulo Freire e falou: “vou antecipar alguns séculos essa discussão sobre o acesso dos saberes, quem sabe a galera já chega mais preparada?”. 

 

Livro: Conselhos a um jornalista

Autor: Voltaire

Editora: Martins Fontes

Ano: 2006

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