Luana Malheiro: Política de Drogas e a vida das mulheres
A esquerda não pode mais fechar os olhos para o conjunto de violações dos direitos humanos que se tem produzido em nosso contexto em nome da chamada Guerra às Drogas
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O tema da reforma da atual política de drogas no Brasil e no mundo tem produzido um rico debate com uma diversidade de setores do movimento social que compreendem que os rumos desta política têm atingido de maneira direta populações vulneráveis. Ao invés de proteger a vida das pessoas, a política de drogas em seu viés excessivamente repressivo tem atuado de forma a produzir mais danos do que o consumo de qualquer droga. Neste sentido, este debate precisa ser encarado com seriedade por toda a esquerda, no entendimento de que debater política de drogas é também debater os atuais marcos que constituem a segurança pública, o direito a cidade, o direito a saúde, a moradia, ao acesso à justiça e etc.
A esquerda não pode mais fechar os olhos para o conjunto de violações dos direitos humanos que se tem produzido em nosso contexto em nome da chamada Guerra às Drogas. O nosso compromisso de produzir uma sociedade e uma cidade democrática deve necessariamente passar pelo aprofundamento do debate da reforma da atual política de drogas, tendo em vista que hoje a ferramenta da Guerra as Drogas tem produzido uma cidade militarizada, com zonas de conflito permanente nos territórios mais pobres.
Percebemos com preocupação o pronunciamento do Governador Rui Costa (BA) acerca do seu apoio a legalização da maconha. É importante lembrar ao governador, que a nossa luta não deve ser somente pela legalização da maconha. Não podemos incorrer no erro de supervalorizar o poder farmacológico das substâncias. Todas as drogas devem ser legalizadas porque a proibição só tem produzido danos irreparáveis a nossa população, que deveria ser alvo principal de políticas de proteção social, acabam sendo vítimas de uma política que elege a repressão como método de controle de drogas. O racismo, a desigualdade social, a desigualdade de gênero, a cultura do estupro, o feminicidio, a fragilidade dos equipamentos de proteção social que debilitam e agridem fortemente a saúde, não é o crack ou a cocaína como citou o atual governador.
É necessário realizar reflexões sobre alguns pontos ao debater a temática da política de drogas, que não deve dizer respeito apenas às substâncias psicoativas. Para começo de conversa, compreendemos que a principal estratégia utilizada por essa política é a chamada Guerra às Drogas, ou repressão, ou combate ao tráfico. Independente do nome que se dê, compreendemos que esta política militarizada tem se configurado como uma guerra contra algumas pessoas.
A Guerra às Drogas tem violentado cotidianamente as mulheres de formas diversas, concedendo um alto poder ao aparato policial, que muitas vezes é o maior violador dos seus corpos. É o ambiente político de guerra que possibilita os altos índices de estupros não apurados ou não comunicados, que são, por exemplo, os estupros ocorridos com mulheres em situação de rua, usuárias de crack. Aliás, os casos de violência sexual contra mulheres em momentos de guerra são historicamente conhecidos em diversos países como forma de subjugar e humilhar o inimigo, utilizando nossos corpos e vidas como espólio a ser tomado pelos vencedores.
Durante a investigação etnográfica que desenvolvi com 16 mulheres que consomem crack em situação de rua foi possível compreender a realidade de recorrentes violações e violências do Estado contra essas mulheres em nome da chamada Guerra às Drogas.
Duas mulheres, durante o trabalho de campo, dialogavam sobre o seu consumo de crack. Refletimos juntas em que momentos da trajetória de vida das mulheres que o consumo se tornara abusivo, quando inicia este consumo e como elas percebem as variações do uso mais controlado até o uso compulsivo. As duas concluíram, a partir do compartilhamento das suas histórias de vida e da reflexão do seu contexto, que o consumo de crack era uma estratégia desesperada para controlar os sentimentos de humilhação e violência que enfrentam na rua. O crack lhes dava coragem e aliviava as dores de inúmeras violações cotidianas. Segundo uma dessas mulheres, o crack foi o que possibilitou ela sobreviver na rua sem enlouquecer.
Para compreender a vida dessas mulheres é necessário marcar que a atual política de guerra às drogas no seu viés repressivo, alimenta o projeto genocida do Estado Brasileiro de exterminar vidas de jovens negros e negras em suas comunidades. Neste sentido, o projeto de mudança da atual política de drogas deve passar por uma reflexão profunda do caráter racista, sexista e discriminatório da estratégia repressiva de proibição das drogas, para cumprir a função de pautar uma real mudança na sociedade brasileira pelo viés feminista e antirracista.
A atual política de drogas tem auxiliado no aumento do encarceramento. O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo. Compreendemos que o sistema carcerário cumpre a função de atualizar o racismo institucional na medida em que se utiliza da seletividade penal para punir negros e negras, em especial as mais jovens.
É através desta política de drogas que temos presenciado o super encarceramento feminino. A população carcerária feminina aumentou 567% em 15 anos com crimes relacionados à associação e ao tráfico de drogas. A inserção no comércio varejista de drogas é uma possibilidade real de sustento da família frente a ausência de outras possibilidades de inserção no mercado de trabalho.
Na guerra às drogas se pune desproporcionalmente muito mais as mulheres negras. Em relatório do Departamento Penitenciário Nacional, enquanto 63% das mulheres encarceradas estavam presas acusadas de crimes relacionados às drogas tidas como ilícitas, apenas 25% dos homens estavam presos pelos mesmos fatos.
O sistema punitivo atua em uma lógica seletiva: pune-se mais a juventude negra. No Brasil, o helicóptero do político foi pego com meia tonelada de cocaína, em 2013, e ainda não houve punição. Enquanto isso, um homem negro sem porte de drogas como Amarildo é torturado e exterminado pela UPP por estar em uma comunidade dominada pelo tráfico de drogas.
Hoje o crime de associação ao tráfico é o que tem permitido que pessoas que usam crack em situação de rua sejam encarceradas, sem necessariamente ter posse da droga; estar em uma área de tráfico já torna determinados sujeitos suspeitos. Não é à toa que os suspeitos são sempre jovens negros e negros, revelando o caráter extremamente racista do Estado Brasileiro.
Não conseguimos falar sobre drogas de uma maneira honesta e cuidadosa, não conseguimos diminuir o consumo de drogas, não conseguimos diminuir o crescimento de organizações criminosas, não temos conseguido conter a violação e os abusos da polícia, não temos conseguido cuidar de maneira efetiva de pessoas que tem problemas com o uso de drogas. Hoje, boa parte dos problemas que enfrentamos é resultado da escolha pela repressão, pelo proibicionismo e pelo ideal de Guerra às Drogas, que tem se configurado como uma guerra contra determinadas pessoas que usam drogas.
Nós sabemos os reais objetivos do projeto de política de drogas que está colocado no Brasil e no Estado da Bahia. Ele tem sido até então um projeto que tem produzido adoecimento em populações que são obrigadas a viver em territórios de combate. Mães que convivem com a dor do assassinato de seu filho em nome de uma guerra irracional que coloca o Estado contra a sua população.
A guerra às drogas é um mecanismo que permite que o Estado extermine vidas, viole corpos femininos, desrespeite e humilhe as pessoas de forma violenta, dentro de um padrão de militar que reforça o padrão constituído pelo patriarcado, de masculinidade violenta estereotipada e de um controle abusivo dos nossos corpos e territórios. Nossa luta é pela vida e pela autonomia dos nossos corpos e vidas.
O grande problema dessa atual política de drogas é que o número de pessoas mortas nas trincheiras do combate às drogas, é infinitamente superior ao número de mortes associadas ao consumo de crack ou cocaína. O instrumento que tem nos agredido, ceifando nossas vidas é a estratégia falida de enfrentar a questão a partir de uma estratégia de Guerra.
Nós precisamos de uma política de drogas que pare de matar o nosso povo! Precisamos de um compromisso real do Governador com a parcela da população que mais tem sofrido com a Guerra às Drogas. Legalizar a maconha, sem um real compromisso de pôr fim a essa atual Guerra às Drogas, que acirra o racismo, as desigualdades sociais, pune seletivamente os a nossa juventude negra, para nós é só uma forma de desviar do debate que realmente nos interessa.
Por fim, considero urgente que este debate seja aprofundado pela militância do Partido dos Trabalhadores, sobretudo no momento da renovação de sua síntese política e de sua direção partidária. É preciso neste momento se aliar com a diversidade de movimentos sociais que tem clamado por uma radical reforma da política genocida, racista e sexista de combate as drogas.
Por Luana Malheiro, Rede Latino Americana de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD), Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos (ABESUP), Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Psicoativos (GIESP), Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA) e Programa Corra pro Abraço, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.
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