Memórias dos anos de chumbo
Relatório da CNV trouxe à tona relatos de torturas vividos durante o regime militar e levantou a questão sobre a necessidade de revisar a Lei da Anistia
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A semana foi de amargas revelações. O relatório com a finalização dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada pela lei 12.528/11, foi apresentado à presidenta Dilma Rousseff e a toda população na quarta-feira (10). Nele foram documentadas graves violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988.
O relatório, fruto do trabalho de dois anos e sete meses da CNV, foi dividido em três volumes e trouxe à tona as atividades como as execuções, as prisões sem base legal, conclusões e recomendações.
Diante dessa memória do outro lado da ditadura, que agora está documentada na história do Brasil, surgem relatos como a do professor aposentado e jornalista Jarbas Silva Marques, primeiro preso político de Goiás, aos 18 dias do golpe militar de 1964. Ele fora acusado de atentar contra o regime e passou 10 anos sob torturas cometidas em nome do Estado.
O jornalista foi levado para o Batalhão da Guarda Presidencial, em Brasília, comandado pelo coronel Epitácio Cardoso de Brito, onde foi torturado pela equipe do coronel Beira Matos. “Uma das torturas era o escovão. Eu era mergulhado em uma tina cheia de urina e fezes”, recorda Jarbas, que perdeu 20% da audição causada por micoses.
Ele sofreu violência em vários estabelecimentos, como no Rio de Janeiro, no Forte de Santa Cruz, no Doi-Codi da rua Barão de Mesquita, no Forte de Copacabana, na Ilha Grande, em Bangu e no extinto presídio Frei Caneca.
Do RJ, Jarbas foi transferido para Juiz de Fora (MG), onde permaneceu até o fim da prisão. De acordo com ele, animais como jacarés, cachorros e cobras serviam como “instrumentos” de tortura. “Tenho quebrados o crânio, quatro costelas e a perna direita, além de ligamentos rompidos e a bolsa escrotal cheia de varizes devido aos choques elétricos”, conta.
“Tenho quebrados o crânio, quatro costelas e a perna direita, além de ligamentos rompidos e a bolsa escrotal cheia de varizes devido aos choques elétricos”
A terapeuta ocupacional Maria Eliana de Castro também tem uma história triste para contar. Ela ainda aguarda a justiça pelo irmão desaparecido na Guerrilha do Araguaia.
Antônio Teodoro de Castro era filiado ao PCdoB e estudava Bioquímica e Farmácia, entre 1969 e 1970, quando fugiu do Ceará para o Rio de Janeiro das perseguições políticas.
“Ele encontrou no Rio condições piores, mais repressão e decidiu ir para a zona rural, onde o PCdoB estava se organizando no Araguaia. Nunca mais tivemos notícias”, conta Maria.
Lei da Anistia – Uma das recomendações do relatório da CNV é a revisão da Lei da Anistia para que os autores das violações possam ser punidos. A lei mantém, há 35 anos, os autores dos crimes de lesa-humanidade do regime impunes. Contudo, a Comissão pede a alteração com a justificativa de que a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, dá autoanistia e viola leis internacionais.
Para a CNV, a lei não deveria assistir os agentes públicos que cometeram “detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres”. De acordo com o relatório, os atos são “incompatíveis com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional”.
Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), acredita que a corte deveria voltar a apreciar a validade da Lei da Anistia. Segundo ele, o tribunal deveria considerar e debater a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para investigar e punir o autores do crimes durante a ditadura.
“Eu, como cidadão, tenho muitos juízos pessoais, mas não se confundem com o papel de intérprete da Constituição Federal. O que é preciso saber é se a lei é compatível com a Constituição Federal e qual a posição que deve prevalecer”, disse na quarta-feira (10), à Agência Brasil.
O jornalista Jarbas não vê possibilidade no pedido da Comissão, embora afirme que as famílias e amigos continuarão na luta pelo indiciamento e a condenação dos responsáveis.
“Para seguir em frente, cito sempre Castro Alves: ‘quem foge à luta nem da morte é digno’”, diz.
Para Maria Eliana, a nominação dos agentes do Estado que praticaram as graves violações aos direitos humanos é um “alento” e a não responsabilização deles é uma decepção.
“As leis no nosso país são muito frágeis, mas só de ter o nome do torturador e assassino nas páginas da história já é um alento”, conforta-se.
Por Guilherme Ferreira, para a Agência PT de Notícias