Morte de militante negra causa indignação no Rio Grande do Sul
Jane Beatriz interpelava policiais durante operação da Brigada Militar do estado quando sofreu uma queda da escada de casa. Comunidade da Vila Cruzeiro, onde a ativista e Promotora Legal Popular morava há quarenta anos, promoverá nova manifestação nesta quarta-feira (9).
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A morte da ativista negra Jane Beatriz Silva Nunes, de 60 anos, durante uma operação da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, nesta terça (8), levou a uma enxurrada de manifestações contra a atuação das forças policiais do estado. Servidora da Guarda Municipal de Porto Alegre e Promotora Legal Popular na comunidade da Vila Cruzeiro, onde morava há muitos anos, Jane sofreu uma queda do alto da escada de casa ao interpelar brigadistas que tentavam entrar em sua residência.
A Brigada Militar afirmou que ela perguntou por uma filha e “logo depois, teve um mal súbito e veio a desfalecer”. O Instituto-Geral de Perícias (IGP) divulgou na noite de terça que a causa da morte de Jane foi clínica. Ela teria sido vítima de rompimento espontâneo de um aneurisma cerebral. A perícia afirma não ter identificado no corpo “nenhum sinal de trauma que justificasse o óbito”. A Secretaria Municipal de Saúde relatou que Jane chegou ao pronto-atendimento em parada cardiorrespiratória e não resistiu.
Mas uma vizinha de Jane, Marilene Ferreira de Souza, garantiu ter presenciado a cena e contraria a versão oficial. Ao portal ‘G1’, ela disse que Jane foi empurrada pela polícia, ao perceber, retornando de um mercado, que cerca de 15 policiais entravam na sua casa. “Ela perguntou o que eles estavam fazendo. Empurraram ela com a arma, ela resvalou e caiu no pé deles”, relatou.
Segundo Marilene, que trabalha como auxiliar de limpeza, Jane morava há mais de 40 anos no bairro da Zona Sul de Porto Alegre. “Pessoa trabalhadora, que nunca incomodou ninguém. Uma vida que se foi”, lamentou. A sobrinha de Jane, Taíssa Rodrigues da Silva, relata que os policiais entraram “sem pedir licença” e revistaram a casa de Jane. “Ela foi chegar em casa, eles já tavam lá dentro e não deixaram ela entrar”, conta a jovem.
Assim que a notícia se alastrou, os moradores da localidade, conhecida pela militância, ergueram barricadas ao longo da avenida Tronco e saíram pelas ruas carregando faixas e cartazes em que denunciavam a violência policial, chegando a incendiar um automóvel. Os policiais envolvidos na ação foram retirados da comunidade e um destacamento do Pelotão de Choque da Brigada foi deslocado para a área.
Na página de Jane no Facebook, amigos e familiares prestaram homenagens, cobrando explicações da Brigada Militar e uma investigação independente sobre o ocorrido. Nesta quarta (9), às 18h, haverá a manifestação “Justiça por Jane!”, na esquina da Rua Caixa Econômica com a Av. Cruzeiro do Sul, na Vila Cruzeiro.
Militante pelas causas da comunidade
Nas redes sociais, o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) chamou a atenção para o protesto dos moradores. A vereadora eleita e moradora da Cruzeiro, Bruna Rodrigues (PCdoB), que conheceu Jane em ações na região, relata que ela sempre esteve envolvida em projetos ligados à cidadania.
Fabiano Negreiros, também liderança da Cruzeiro, a descreveu como “uma militante que ajudava muito sua comunidade”. “Era alguém atuante, tanto na área da saúde pública quanto na de direitos humanos”, afirmou Reginete Bispo, socióloga e integrante do Instituto Akanni, que trabalhou com Jane em projetos na comunidade.
“A Vila Cruzeiro protesta contra a morte de uma senhora negra durante operação da Brigada. Os moradores afirmam que um policial a empurrou, ela bateu a cabeça e não resistiu. O relato é grave e exigimos respostas! Até quando veremos o desprezo pela vida negra da periferia? Chega!!”, postou Laura Sito, vereadora negra recém-eleita pelo PT em Porto Alegre.
“Estive na Vila Cruzeiro, a pedido de uma liderança comunitária local, acompanhando o caso envolvendo a morte de uma moradora em uma ação policial. É importante que a investigação siga de forma independente e que tudo seja esclarecido para que se faça justiça”, postou Leonel Radde, também recém-eleito vereador pelo PT na capital gaúcha.
Tainá de Paula, vereadora eleita pelo PT no Rio de Janeiro, também foi às redes sociais denunciar o caso. “Entendem o tamanho da gravidade? As políticas de segurança atuais nos matam dentro de nossas casas. Não é mais possível que vidas negras sejam ceifadas dessa maneira. É preciso romper com a política atual, que governa para uma minoria, para discutir a realidade que cuidará da maioria de nós! “, afirmou Tainá, sob a hashtag #JustiçaparaJane.
Marcia Soares, advogada da ONG Themis, Gênero, Justiça e Direitos Humanos, lembrou que a morte de Jane ocorreu justamente no dia em que se completavam mil dias desde o assassinato da vereadora negra Marielle Franco. Jane se graduou na primeira turma do Programa de Formação de Promotoras Legais Populares (PLPs) promovida pela organização, criada em 1993 por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas.
Em nota, as dirigentes da Themis afirmaram que Jane era mulher consciente de seu direito à dignidade e à privacidade, e não cedeu à truculência policial. “A morte de Jane não é um caso isolado, é mais um exemplo de como a estrutura genocida do Estado extermina pessoas negras, defensoras e defensores dos direitos humanos”, afirmam no documento.
“É imprescindível e urgente que as circunstâncias da morte de Jane sejam rigorosamente apuradas pelas autoridades competentes; que a família e a comunidade recebam o adequado apoio e respeito do Estado e que ações concretas sejam tomadas pelo Poder Público para que os direitos e as vidas das pessoas negras e periféricas não sejam mais sistematicamente violados”, conclui o texto, exigindo justiça e reparação.
O Geledés-Instituto da Mulher Negra também manifestou seu pesar pela morte da militante. “Jane reivindicava o seu direito de cidadã, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, garantido constitucionalmente, ao chegar em sua casa depois de um dia de trabalho, presenciou os policiais armados invadindo a sua residência e solicitou a apresentação do mandado judicial. Neste momento foi brutalmente empurrada por uma escada, batendo a cabeça e vindo a óbito”, afirmam as dirigentes.
“Essas operações policiais por todo o Brasil têm ceifado vidas, mas não quaisquer vidas, as vidas dos corpos de negros e negras, crianças, jovens e adultos, numa verdadeira consolidação da necropolítica, de um projeto de genocídio da população negra, para a qual é negado o exercício do direito mais básico que é o direito à vida”, prossegue o documento, também exigindo punição dos responsáveis e reparação dos danos causados à família.
Da Redação