Paim: 13 de maio, um país em débito com sua própria história
O povo negro de hoje continua largado à própria sorte e banido dos capítulos da cidadania e da inclusão social, denuncia Paim. Como eternizou Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra. Que vai de graça para o presídio. E para debaixo do plástico. E vai de graça para o subemprego. E para os hospitais psiquiátricos”.
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O jornalista Juremir Machado da Silva nos brindou, em 2017, com uma obra que eu considero um clássico da nossa história: “Raízes do conservadorismo brasileiro — A abolição na imprensa e no imaginário popular”, da Editora Civilização Brasileira. Baseado em análises de discursos políticos e jornalísticos, ele identifica o contexto da assinatura da Lei Áurea, ocorrida em 13 de maio de 1888.
Passados 132 anos, ele lança a seguinte afirmativa: há um espectro que ainda ronda a nossa sociedade. “A dívida com os descendentes de escravos ainda não foi paga. O preconceito (mal) dissimulado tenta evitar esse acerto de contas. Um universalismo abstrato é usado como chicote contra os que falam de situações concretas. Mas é questão de tempo. A história não para de exumar cadáveres. Não há mais trégua para a infâmia”.
O povo negro de hoje continua largado à própria sorte e banido dos capítulos da cidadania e da inclusão social. Continua vivendo em cativeiro. São homens e mulheres sem emprego e renda, sem moradia digna, sem escolas, sem atendimento adequado de saúde. São vítimas da fome, da miséria, da pobreza, sem o mínimo de dignidade humana. As poucas políticas públicas que ainda existem estão sendo aniquiladas ou jogadas para debaixo do tapete, como o sistema de cotas e o Estatuto da Igualdade Racial.
Temos raiz, história, cultura, coragem, virtudes, palavras, verbo, cantos, sonhos.
O Brasil é um oceano de desequilíbrio social e econômico. Segundo a FGV (Fundação Getulio Vargas), faz cinco anos que a desigualdade e a concentração de renda aumentam. A metade mais pobre viu sua renda diminuir 17,1%; a classe média, que ocupa 40% do restante da população, teve perdas de 4,16%; e os 10% mais ricos viram sua renda crescer 2,55%. Levando em conta o 1% dos mais ricos, o aumento é ainda maior e o número chega a 10,11%.
E se a desigualdade, as injustiças e a violência aumentam em nosso país, elas também têm cor, nome e sobrenome: é preta. A população brasileira é composta, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 53% de pretos e pardos. Entre os 10% da população mais pobres do país, 76% são negros. Entre o 1% mais rico, apenas 17,4% são negros. São mais de 70 milhões que vivem na pobreza e na extrema pobreza.
Lá atrás, existiam senzalas e chibatas. Hoje, não é nada diferente. Negam a cidadania e a vida continua valendo nada.
Essa comunidade é a mais atingida pela violência: um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que um homem branco, segundo estudos realizados a partir de dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Conforme o Mapa da Violência (2016), enquanto o número de homicídios de pessoas brancas por armas de fogo caiu 26,1% entre 2003 e 2014, o de pessoas negras aumentou 46,9%.
Outro dado chocante: o índice de analfabetismo para a população negra é de 11,8% — maior que a média de toda população brasileira (8,7%). Dos jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham, 62,9% são negros, ainda de acordo com o IBGE. Nessa mesma esteira, o instituto aponta que a maternidade precoce leva meninas a essa condição. Do total de meninas de 15 a 19 anos sem estudo e sem trabalho, 59,7% têm pelo menos um filho sendo que, destas, 69% são negras.
Não há espaço para os negros na mídia, nas diretorias de empresas, na política. Contamos nos dedos os repórteres e apresentadores de televisão. A desigualdade está presente na distribuição de cargos gerenciais — somente 29,9% são exercidos por pessoas pretas ou pardas. Apenas 24,4% dos deputados federais, 28,9% dos deputados estaduais e 42,1% dos vereadores eleitos são negros. Quantos senadores negros existem?
Pesquisa do Ministério da Saúde aponta que a cada três mortos por covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, um é negro.
Esses números sociais e econômicos são pequenos retratos dos horrores que é o nosso país. Lá atrás, existiam senzalas e chibatas. Hoje, não é nada diferente. Negam a cidadania e a vida continua, valendo nada. Desossam a carne desse povo que, um dia, segurou esse país pelo braço. Como eternizou Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra. Que vai de graça para o presídio. E para debaixo do plástico. E vai de graça para o subemprego. E para os hospitais psiquiátricos”.
Pesquisa do Ministério da Saúde aponta que a cada três mortos por covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, um é negro. É óbvio que isso está ligado à desigualdade social e ao vazio de esperança. Essa gente vive em comunidades carentes e nas periferias das grandes cidades, sem o mínimo de saneamento básico e vivendo em condições subumanas. Ora, nós sabemos que os governos ignoram esses locais e seus habitantes e não apresentam políticas públicas para levar bem-estar a eles.
Um levantamento da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade mostra que 67% dos brasileiros que dependem do SUS (Sistema Único de Saúde) são negros. Eles também são a maioria dos pacientes. São pessoas com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas. Todas essas doenças são agravantes da covid-19. E aí eu pergunto: o governo está fazendo algo direcionado para essa população?
Entre as várias propostas que apresentamos para ajudar no combate à covid-19, que abrange toda a sociedade brasileira, está o PL 2179/2020, que obriga os órgãos e instituições de saúde a promoverem o registro e o cadastramento de dados étnico-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes atendidos pelo vírus. Já no PL 873 incluímos quilombolas e indígenas. Aliás, abro parêntese aqui. Segundo a Fundação Cultural Palmares e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o país tem 40 comunidades quilombolas certificadas e apenas quatro com titulação definitiva. Ou seja, o Estado brasileiro também ignora os direitos dessas comunidades. Neste momento de extrema tristeza para o país, temos que ter clareza e agir, única e exclusivamente com o objetivo de salvar vidas e restabelecer a paz social.
Devemos seguir adiante, sem baixar a cabeça, jamais negando a nossa origem, acreditando “na cor de minha pele, nos lanhos de minha alma, em meus heróis altivos”, como disse o poeta Oliveira Silveira; fazendo o bom combate para que o povo negro seja reconhecido pelos direitos da cidadania. Temos raiz, história, cultura, coragem, virtudes, palavras, verbo, cantos, sonhos. Somos Zumbi dos Palmares, somos Lanceiros Negros, somos Sepé Tiarajú. Somos gente, choramos, acreditamos no amor e que há luz para todos esses desencontros do país.
Paulo Paim está no terceiro mandato como senador, eleito pelo PT do Rio Grande do Sul. Atua na defesa dos direitos sociais e trabalhistas e é presidente da Comissão de Direitos Humanos. Autor das leis dos Estatutos do Idoso, da Pessoa com Deficiência e da Igualdade Racial, e relator do Estatuto da Juventude. Foi deputado federal constituinte em 1988.
Artigo publicado originalmente no jornal Nexus.
NEXO JORNAL