Para cientista político, mídia e Judiciário estimularam o golpe

Professor da UFPE, Michel Zaidan afirma que o papel do Poder Judiciário no golpe contra Dilma foi de cumplicidade tácita e aberto ativismo partidário

Brasileiros contra o golpe. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Professor-titular do centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Michel Zaidan é enfático ao afirmar que o afastamento definitivo da presidenta eleita Dilma Rousseff foi um golpe.

“O que ocorreu de fato no Brasil foi um golpe com a aparência de legalidade”, afirmou.

Para ele, a manutenção dos direitos políticos de Dilma prova isso.

“Para um bom entendedor, passa a ideia de que o objetivo era apenas removê-la do cargo para a implementação de uma agenda antipopular e antinacional que não passaria com o apoio da população”, completou.

Em entrevista à Agência PT de Notícias, o cientista político falou do papel dos meios de comunicação e do Poder Judiciário nesse processo, das semelhanças com o golpe de 64 e com outros processos de destituição ocorridos recentemente na América Latina.

O professor da UFPE ainda fez uma avaliação do PMDB e do traidor e usurpador Michel Temer.

“O PMDB nunca foi um partido confiável e o vice-presidente é uma pessoa personalista, voltada para os seus interesses pessoais, vaidoso, ambicioso. Uma pessoa muito pouco leal. Qualquer hora ele ia trair a presidente, como de fato aconteceu”, declarou.

Professor Michel Zaidan, ao centro, com o microfone na mão Foto: Arquivo pessoal

Professor Michel Zaidan, ao centro, com o microfone na mão
Foto: Arquivo pessoal

Leia a entrevista completa:

Professor Zaidan, na sua avaliação, foi golpe ou foi impeachment? Por quê?
Não tem característica de impeachment. Acho que houve uma mudança no modelo de golpe hoje na América Latina. Os golpes de hoje não são mais militares. São golpes com aparência de legitimidade democrática.

O que ocorreu aqui no Brasil não foi um processo de impeachment baseado na ocorrência de crime de responsabilidade ou de improbidade administrativa da nossa presidente. O que ocorreu de fato foi um golpe, um golpe com a aparência de legalidade, que a gente chama de ‘golpe parlamentar’, porque foi um golpe que ocorreu no Congresso, com a anuência do Poder Judiciário.

Então, ao meu ver, não houve um processo de impeachment porque não havia crime de responsabilidade nem de improbidade administrativa. Houve um golpe. Foi uma coisa muito feia, o que foi feito. Isso foi uma negociata, uma manobra, para viabilizar uma agenda política que daqui a pouco começa a produzir os efeitos sobre a população brasileira.

O vice-presidente é uma pessoa personalista, vaidoso, ambicioso. Uma pessoa muito pouco leal. Qualquer hora ele ia trair a presidente, como de fato aconteceu

Não cassar os direitos políticos de Dilma reforça a tese do golpe?
Sem dúvida. Para um bom entendedor, passa a ideia de que o objetivo era apenas removê-la do cargo para a implementação de uma agenda antipopular e antinacional que não passaria com o apoio da população.

E o principal indício de que foi golpe foi a manutenção dos direitos políticos dela. Isso foi sinal que essa ação de crime de responsabilidade não tem fundamento jurídico, porque se fosse verdade ela teria os direitos políticos cassados, e não teve.

Presidenta Dilma Rousseff durante discurso no Senado Federal. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Presidenta Dilma Rousseff durante discurso no Senado Federal. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

De todo jeito, a preservação dos direitos políticos da presidenta é muito importante. É o reconhecimento de que ela está apta a exercer cargos públicos e disputar mandatos eletivos.

Então, ela não foi condenada por crime de peculato, improbidade ou imoralidade pública. É um atestado importante. Mas vai gerar controvérsias, porque outros políticos também vão querer o mesmo benefício para si.

Há semelhanças com o que aconteceu agora no Brasil e em outros países da América Latina em tempos recentes?
É isso que está sendo discutido. Mudou o paradigma de golpe na América Latina. Não é mais o golpe militar, com exército, com tanques.

Agora é golpe com aparência de legitimidade, de constitucionalidade. Isso já aconteceu no Paraguai, também em Honduras. Pode ocorrer na Venezuela, na Bolívia. Exatamente naqueles países que são hoje adversários da política externa dos Estados Unidos na América Latina.

Provavelmente o que se deseja é que o Brasil e esses outros países sigam o caminho da Argentina, que eles mudem de posição em relação aos interesses do Departamento de Estado norte americano.

Tanto é que os norte americanos vêm fazendo acordos bilaterais com vários desses países, com o intuito de isolar ou quebrar o Mercosul. Acredito que houve uma mudança no feitio desses golpes. Mudou a cara, mas a coisa é a mesma, continua sendo golpe.

E com 64? Quais as semelhanças e diferenças com o que aconteceu em 64?
Em 1964, tivemos um golpe militar “bonapartista de direita”, com o apoio das classes médias amedrontadas pelo fantasma do comunismo, o apoio do imperialismo norteamericano, da burguesia industrial brasileira e da igreja.

Este golpe parlamentar não tem características de golpe bonapartista, embora conte com o apoio de setores das classes médias tradicionais, da plutocracia da avenida paulista, de grande parte da mídia e da conivência ou omissão do Poder Judiciário.

Mas a linha de frente foi a oposição parlamentar derrotada nas eleições de 2014.

Senador Aécio Neves, derrotado nas eleições presidenciais de 2014

Senador Aécio Neves, derrotado nas eleições presidenciais de 2014

Em 64 foi uma ruptura pela força, quando o exército tomou posição, fechou Congresso, fechou sindicatos, interveio das universidades, censurou a imprensa. Agora não. Ao menos por enquanto existe uma aparência de normalidade democrática.

Não sei até quando, porque há muitas ameaças. A Escola Sem Partido é uma delas. Isso é uma censura imposta ao mundo da cultura, da educação.

Acredito que vá haver auditoria nos sindicatos petistas, cutistas, no MST, aprovar CPI da UNE, exatamente para poder intervir ou reprimir as ações dessas organizações que são vistas como sendo petistas ou a favor de Dilma.

Pode ser que não haja repressão militar ostensiva, mas que vai haver represálias e a criminalização dos movimentos sociais, isso vai. Essa repressão acompanha os momentos de turbulência política e de ‘quebra’ da legalidade, como nós estamos vivendo hoje no Brasil

Quando se faz isso, as pessoas mostram pouco amor pela Constituição, pela lei, pelos direitos.

Quais as forças que derrubaram Dilma?
É um conjunto. Uma verdadeira orquestra, digamos assim. Você tem uma imprensa que apostou efetivamente no golpe, em casamento com setores do Judiciário, através dos vazamentos seletivos, das escutas ilegais.

O papel de Judiciário foi de cumplicidade tácita com o golpe. Passaram para um claro e aberto ativismo partidário, vestindo camisa, participando de passeatas e dando declarações contra o governo

Há uma base parlamentar muito ruim, provavelmente a pior legislatura dos últimos anos. É um Congresso em absoluto estado de desagregação político-partidário.

Este Congresso é, em parte, muito responsável pela crise que nós estamos vivendo hoje. Porque é um Congresso sem lideranças, que não tem princípios, que não tem propostas, não tem agenda legislativa nenhuma. Só interesses.

Esse é um aspecto. O outro é que há, de fato, o papel preponderante de Eduardo Cunha, uma espécie de vingança contra a presidenta da República, por conta do não apoio do partido na preservação de seu mandado na Comissão de Ética. Ele ameaçou e cumpriu.

Há os agentes econômicos, que são muito importantes. A Fiesp, a CNI, o agronegócio. Há também agentes externos interessados no pré-sal e na privatização do que ainda resta de ativos públicos no Brasil. Esses agentes também foram muito eficazes na fermentação do golpe.

Sem falar na própria traição do PMDB, dos aliados mais próximos, a começar pelo vice-presidente da República, que nunca mereceu a menor confiança. O PMDB nunca foi um partido confiável, porque não tem unidade. Não tem coordenação, não tem uma pessoa que mande no PMDB.

O vice-presidente é uma pessoa personalista, voltada para os seus interesses pessoais, vaidoso, ambicioso. Uma pessoa muito pouco leal. Qualquer hora ele ia trair a presidente, como de fato aconteceu. Ele próprio não vai governar, vai tentar administrar as diversas pressões que vai receber dessas forças que se coligaram para fazer o golpe.

O senhor falou no papel do Judiciário nesse processo. Qual foi esse papel?
O papel de Judiciário foi de cumplicidade tácita com o golpe. Os ministros perderam há muito tempo o papel de “boca da lei” e passaram para um claro e aberto ativismo partidário, tomando partido, vestindo camisa, participando de passeatas e dando declarações contra o governo.

O Poder Judiciário perdeu a confiança da nação como guardião da Constituição, o responsável pela jurisdição constitucional no País. Poderia ter evitado essa situação, funcionado como árbitro. Não fez. Partidarizou-se, tomou posição até pela omissão, diga-se de passagem. E chegamos onde chegamos.

Por que o ministro Teori Zavascki passou cinco meses para pedir o afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara? Se tivesse agido antes, não teria havido a abertura do processo de impeachment contra a presidente da República.

Há muita coisa esquisita e errada aí. Esses vazamentos, inclusive de comunicações telefônicas da presidenta da República. Isso é uma coisa absolutamente inaceitável. Nenhum juiz tem permissão para fazer escuta da presidente, e ainda por cima autorizar o vazamento.

Isso foi feito e praticamente ficou por isso mesmo. Não houve nenhuma penalidade a esse juiz lá de Curitiba.

E qual o papel da imprensa no golpe contra Dilma?
Ativo, participante, estimulador. A mídia atua como sócia interessada no resultado co golpe. Algumas empresas têm grandes dívidas tributárias: outras são donas de projetos agropecuários.

Infelizmente, não há espaço público no Brasil. Há um lugar comum produzido pelas cadeias nacionais de televisão, que homogeneízam o senso comum dos telespectadores.

Eduardo Cunha é um gangster político da pior espécie. Junta política, negócios e religião

Que tipo de apoio sustenta o governo Temer?
É uma súcia de celerados. Os empresários estão de olho no fim dos impostos e a precarização absoluta das leis trabalhistas. Os donos de escolas particulares estão de olho no fim do ensino público. Os agroexportadores, de olho no fim da reforma agrária e os assentamentos de terra. E as empresas estrangeiras, no pré-sal e na Petrobrás.

O comitê executivo do bando são os parlamentares fisiológicos e evangélicos que se venderam para apoiar o ‘impeachment’. Fala-se de ‘parlamentarismo branco’ ou governo congressual, como se tivéssemos partidos ou Congresso dignos desse nome.

Golpista Michel Temer (PMDB) assume cargo interino. Foto: Lula Marques/Agência PT

Golpista Michel Temer (PMDB) assume cargo interino.
Foto: Lula Marques/Agência PT

É uma oligarquia de múltiplos interesses, representada por um fantoche conspirador e vaidoso.

Na sua avaliação, esse apoio se manterá, após o golpe?
Agora vai começar a briga, porque quem apoiou o golpe agora vai apresentar sua fatura.

Até Janaína Pascoal deu uma declaração dizendo que Temer deve a ela. O que significa isso, a gente ainda vai saber. Porque parece uma cobrança. Como a Fiesp pode apresentar sua fatura, Paulinho da Força, os banqueiros, o agronegócio, a bancada da Bíblia.

Então acho que vai chegar um momento em que vários desses apoiadores desse golpe vão entrar em conflito entre si, pela partilha, digamos assim, dos recursos, das benesses, dos favores, etc.

Não sei qual é a capacidade que ele tem de administrar de fato essas pressões. Primeiro porque ele não tem legitimidade, não tem apoio popular, não foi eleito para ser presidente. Ele não tem uma agenda, propriamente dita.

Depende muito do apoio desses partidos no Congresso Nacional. Mas na hora que se instalar uma divisão, eu tenho impressão que ele vai perder muito da sua base.

Como o senhor definiria o PMDB hoje?
Uma frente de oligarquias estaduais, sem unidade, sem comando, sem programa. O PMDB já cumpriu sua tarefa histórica. Hoje é uma sobrevivência paleopolítica, responsável pelas crises de governabilidade do sistema político brasileiro. É o infiel da balança, como diz.

Que tipo de político é Eduardo Cunha?
É um gangster político da pior espécie. Junta política, negócios e religião. É uma figura enigmática, mas ao mesmo tempo emblemática de todo esse processo político.

O mais grave é que Eduardo Cunha não é só Eduardo Cunha, é uma extensa legião de parlamentares e até senadores, pessoas que foram e são beneficiadas de favores ou apoios de Eduardo Cunha.

Há quem diga que é uma espécie de Antônio Carlos Magalhães da atualidade. Ele detém, de fato, provas e dossiês de que ele ajudou financeiramente muitos desses deputados.

O próprio Temer, eu acho, tem rabo preso com ele. Porque houve encontros entre os dois mesmo depois do afastamento de Cunha.

Depuatdo Eduardo Cunha (PMDB-RJ) Foto: Lula Marques/ Agência PT

Depuatdo Eduardo Cunha (PMDB-RJ)
Foto: Lula Marques/ Agência PT

 

Qual a sua avaliação do governo Temer?
Governo ilegítimo e arbitrário. Governo de sobressaltos, como disse um desembargador de Pernambuco. Suscetível à pressão dos parlamentares fisiológicos que o colocaram na cadeira presidencial e as pressões dos agentes econômicos, que querem o “ajuste fiscal”.

Falta combinar com o povo que tem ido às ruas gritar ‘Fora Temer’ e ‘Eleições Gerais’.

Muita coisa vai depender da economia. Mas a estratégia do “ajuste fiscal”, através de políticas pró-ciclicas pode aprofundar a crise e a reação do povo brasileiro, atacado em seus direitos e conquistas.

E o que esperar desse governo?
O governo Temer tem uma agenda pesadíssima. Podemos resumir em três pontos chaves: primeiro a questão da CLT, com desmonte dos direitos trabalhistas, que é para agradar aos empresários e à Fiesp.

Depois a questão da previdência social, que é aumentar a idade mínima, equiparar idade entre homens e mulheres, mudar a aposentadoria rural.

O terceiro é o congelamento das despesas públicas por 20 anos, que ataca a Constituição, ataca a saúde, educação, saneamento, etc.

Como a esquerda deve se comportar daqui pra frente? Como fazer a resistência ao golpe?
Fazer uma grande frente, ir às ruas, lutar pela democracia, pedir eleições gerais ou presidenciais, defender os direitos dos trabalhadores e aposentados, os direitos constitucionais da saúde e educação, e impedir que os trabalhadores paguem o custo do ajuste fiscal.

Lutar pela laicidade do Estado brasileiro e a desnacionalização da indústria de petróleo no Brasil. Se refundar como republicana, socialista e democrática.

Já há um chamamento para uma frente de esquerda, tanto no Congresso quanto fora dele, para que haja muita oposição. Há muito o que fazer para que os partidos de esquerda tomem de fato a posição que lhes cabem frente a esse governo.

Eles não podem simplesmente ficar lamentando o afastamento da presidente Dilma. Eles têm muita coisa para fazer e já aprenderam a fazer. Foram oposição a FHC por oito anos.

Manifestação saiu da Avenida Faria Lima, Pinheiros (SP) Foto: Paulo Pinto/AGPT

Manifestação saiu da Avenida Faria Lima, Pinheiros (SP)
Foto: Paulo Pinto/AGPT

Nesse cenário em que as tradicionais ‘direta’ e ‘esquerda’ se mostram desgastadas perante a sociedade, podemos ter o crescimento de figuras como Bolsonaro?
Todo momento de crise, esgarçamento institucional, descrença nas instituições políticas prepara a vinda do messias, do salvador da pátria, dos aventureiros, dos “outsiders”, que prometem varrer a pátria dos carcomidos e corruptos e impor o império da moralidade.

Esse filme, que se alimenta da frustração política das massas, já vimos: ditadura.

Por Luana Spinillo, do Recife, para a Agência PT de Notícias

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