Schirlei Azevedo: Vamos falar de Violência Institucional – Contra as Mulheres e a Democracia
“Ao falar sobre violências contra mulheres tocamos em feridas profundas na sociedade e mostramos quão frágil é a sociedade onde vivemos”
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Estamos em um período de intensos debates sobre a violência contra a mulher com a Campanha dos “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher”. Movimentos sociais, entidades sindicais, legislativos, judiciário, partidos políticos, organizações governamentais e não governamentais reforçam e ampliam o debate, onde o foco principal praticamente se reduz à violência doméstica e sexual.
Ao falar sobre violências contra mulheres, meninas, lésbicas, trans, jovens, idosas, negras, indígenas, ribeirinhas, do campo e das cidades, tocamos em feridas profundas na sociedade e mostramos quão frágil é a sociedade onde vivemos, o “mimimi” incomoda.
Quando as violências saem do âmbito público e passam para o espaço privado, como a doméstica ou familiar, o silêncio é ensurdecedor e a naturalização de algumas formas de violências cotidianas impede que as mulheres se reconheçam e as reconheçam na sociedade ou na sua própria casa. Para que o “reconhecer-se” aconteça, faz-se necessário e urgente aprofundar o debate em todos os espaços onde atuamos e criar as condições para que todas compreendam que tais violências são consequência de uma construção histórica, social, cultural, política, econômica, que estabelece papéis diferenciados para que mulheres e homens atuem em campos distintos.
Ao determinar que aos homens caibam posições de maior relevância na sociedade, institui-se uma divisão sexual dos papéis e uma organização social de gênero hierarquizada, onde o poder sobre “ela” se estabelece e, geralmente, vem acompanhado por alguma forma de violência em uma relação de dominação-exploração, que invade todos os espaços da vida social. Às mulheres resta desempenhar papéis sociais que os homens recusam para si, uma herança secular do patriarcado, de incapacidade e submissão.
Tais desigualdades são estruturais e se reproduzem para além dos espaços domésticos. Por vezes despercebidas, pela forma sutil como se apresentam, estão muito presentes no cotidiano de todas. Seja no trabalho que exercem, onde as mulheres ganham bem menos que os homens, mesmo exercendo exatamente as mesmas funções (em alguns casos a diferença pode chegar a 37%), ou nos serviços públicos ofertados que possibilitem à mulher entrar no mercado de trabalho (a ausência de políticas que viabilizem os cuidados com crianças, pessoas idosas, adoecidas, são determinantes), ou como as empresas de comunicação vendem produtos e serviços utilizando “corpos perfeitos” e veiculam mensagens direcionadas apenas às “belas, recatadas e do lar” e escravas da cultura da beleza.
Entre estas negações de direitos, nem sempre consideradas violências, está o que chamamos violência institucional, que também traz em sua raiz as desigualdades de gênero, materializada tanto nas relações de trabalho (privado ou público), quanto no acesso a serviços constitucionalmente garantidos. É um tipo de violência motivada por desigualdades de classe, mas também de gênero, geracional, étnico-racial, econômica, social, predominantes no modelo de sociedade capitalista, onde a necessidade de vender a força de trabalho na lógica de concorrência, por si só, já configura uma violência.
Decorrente de relações de poder e/ou política e integrada à cultura das relações sociais estabelecidas em instituições, sejam elas públicas ou privadas, podem ser percebidas nas formas de gestão cujo foco está no crescimento e alcance de resultados maiores e melhores, por muitas vezes desconsiderando normas previstas em leis, tratados ou convenções. Há vários exemplos de violência institucional contra a mulher nas relações de trabalho, entre eles estão: dispensa sem justa causa, assédio sexual e assédio moral, acidentes e adoecimentos em função do trabalho, negligenciar condições a gestantes, mudança de turno sem consulta prévia, salário desigual na mesma função, exigências para além do previsto no contrato de trabalho.
As mudanças ocorridas como as da “contra-reforma” trabalhista possibilitaram contratos de trabalho temporário, intermitente e de terceirização irrestrita, precarizaram relações e direitos para milhares de assalariadas, principalmente as empregadas domésticas. Aprovada pelo Congresso Nacional e proposta pelo governo federal, tal medida ao invés de promover a igualdade aprofundou o cenário de desigualdades.
O Estado promove e institucionaliza a violência por meio de ações e/ou omissões. A atuação policial nas ruas ou as práticas até mesmo inconstitucionais durante procedimentos investigativos podem configurar um tipo de ação de violência institucional por parte do Estado. Quando a causa da violência se estabelece pela omissão do Estado, um dos exemplos mais relevantes para a vida das mulheres está na não implementação dos equipamentos necessários para proteção das mulheres em situação de violência doméstica.
São inúmeras campanhas que encorajam milhares de mulheres a denunciarem as agressões vividas em âmbito doméstico, mas ao procurarem o auxílio não encontram delegacias especializadas, centros de referência e assistência, casas abrigo, agilidade na emissão de medidas protetivas, resultado: 1.133 feminicídios em 2017 no Brasil.
Talvez seja o maior exemplo de violência institucional contra mulheres, já em situação de violência: o poder executivo que não viabiliza e implementa a política, o legislativo que não fiscaliza a política, a demora na atuação do poder judiciário, os abusos e o descaso na relação entre profissionais e a usuária dos serviços, infelizmente carregadas de práticas discriminatórias em função da raça, etnia, orientação sexual e religião.
Quando o Estado aprofunda as desigualdades com medidas desfavoráveis negando direitos às “minorias” (maioria da população) e nos momentos de crise econômica, política, social, constitui medidas de austeridade (a exemplo da Emenda Constitucional 95), retirando direitos fundamentais como o acesso a saúde e assistência (universal e de qualidade), trabalho (decente e bem remunerado), segurança, alimentação saudável, educação (sem mordaça e com discussão de gênero), ele se torna agente violador. Há perversidade maior que taxar os mais pobres e isentar de tributos os mais ricos?
A eliminação da violência institucional contra as mulheres requer uma transformação profunda da sociedade e de nós mesmos. Precisamos desconstruir a cultura da indiferença, do medo e da resignação que conduz à naturalização das desigualdades sociais, dos atos de violência, de preconceitos de gênero, raça e etnia, geracionais e de orientação sexual. O que requer: coragem e mobilização para o enfrentamento, organização para formar e informar, participação política ativa em espaços de poder e decisão, cientes de que a violência institucional é uma ameaça real as nossas vidas e a nossa Democracia.
Schirlei Azevedo é Assessora da Bancada do Partido dos Trabalhadores na ALESC, Vice Presidenta do PT Florianópolis e do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT