Sem democracia não tem direitos LGBT, defende Symmy Larrat

Em entrevista à Agência PT, primeira trans a ocupar a coordenadoria de Promoção dos Direitos LGBT fala dos avanços conquistados nos governos do PT

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Symmy Larrat, presidenta da ABGLT

A paraense Symmy Larrat, que aos 37 anos tornou-se a primeira transexual a ocupar a coordenadoria-geral de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, acredita que sua conquista pode servir de estímulo para outras pessoas trans.

Em entrevista à Agência PT de Notícias, Symmy falou dos avanços conquistados com os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff para a população LGBT, sem esquecer do que ainda falta conquistar.

Sobre o papel do PT nas pautas LGBT, Symmy é categórica. Para ela, é inegável que a história dos avanços tem muito a ver com a história do Partido dos Trabalhadores. “Alguns anos atrás, antes dos governos petistas, a gente não ouvia falar nessa população. As conquistas que nós temos nos últimos anos e que só foi possível porque nós tivemos uma gestão que entendeu que esta parcela da população também tem direitos”, afirmou.

Symmy abre um sorriso quando fala do programa TransCidadania, da Prefeitura de São Paulo. “O programa TransCidadania é fantástico. Foi o maior orgulho da minha vida foi ter coordenado esse programa, que resgata as oportunidades para pessoas travestis e transexuais”, contou.

Porém, quando o assunto é o golpe contra a democracia e as pautas conservadoras que tentam retroceder nos direitos conquistados pela população LGBT, o sorriso dá lugar a feições de preocupação: “Sem democracia não existe direitos humanos. Sem direitos humanos, não existe democracia. E sem democracia não tem direitos LGBT. Se deixarmos que esse golpe fira a democracia, nós estamos abrindo mão de todas as nossas conquistas”, enfatizou.

Leia a entrevista completa com a coordenadora de Promoção dos Direitos LGBT, Symmy Larrat:

Quais as conquistas e os avanços em políticas públicas para a população LGBT nos governos do PT?
Tanto a coordenação LGBT quanto a própria Secretaria de Direitos Humanos trabalham de uma maneira transversal. A ação de inclusão não está aqui na coordenação LGBT, mas sim nas demais áreas de governo. É essa a nossa interlocução que nós fazemos estando aqui. Alguns anos atrás, antes dos governos petistas, a gente não ouvia falar nessa população. De forma alguma. Era uma população completamente invisível e ainda é invisível, mas que hoje já começa, como a gente fala no nosso meio, a “botar a cara no sol”. E começa a sair desse casulo, desse gueto. Antes não se fala, por exemplo, em travestis nas escolas, hoje nós temos um Enem que quantifica por nome social e a gente consegue enxergar essa população dentro do processo de acesso à educação superior.

Antes nós éramos vistos apenas como cobaias de um processo cirúrgico, que experimentava o nosso corpo para avançar na ciência do processo de redesignação. Hoje, nós temos esse serviço reconhecido pelo SUS, por mais que seja uma fila extensa, por mais que tenhamos uma demanda bem maior do que nós temos de locais. O Sistema Único de Saúde, a partir desses últimos governos, disse que esse é um direito. Eu tenho direito sobre o meu corpo e eu posso redesignar meu corpo com a identidade de gênero a qual eu me reconheço. Travestis e transexuais podem fazer um processo hormonal no Sistema Único de Saúde, que é um direito nosso. É um direito adquirido por essa parcela da população. Isso é muita coisa.

Nós temos direito de sermos reconhecidos e reconhecidas com nosso nome o qual nós escolhemos, mesmo que nós não tenhamos ainda uma lei, que o Congresso seja ausente nesse sentido e que não legisle a favor dessa população, o governo sinaliza e diz que, enquanto você não tem o nome juridicamente, você tem o direito de socialmente ser reconhecido por esse nome. E no cartão SUS só sai o nome social da pessoa. Hoje o MEC encaminha como orientação para as secretarias estaduais e municipais de educação que é preciso reconhecer o nome social dessas pessoas, a identidade de gênero dessas pessoas no espaço escolar. A gente poder utilizar o nome social, enquanto não temos um caminho fácil no Judiciário, em alguns espaços do serviço público; isso é um avanço muito grande e isso começa nesses governos em que se começa a falar dessa população.

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Symmy Larrat é a primeira trans a ocupar esse cargo Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Na sua opinião, por que, mesmo com esses avanços, ainda temos visto crescer as pautas conservadoras e o discurso de ódio que atingem diretamente a população LGBT?
Os avanços assustam algumas pessoas que nos utilizam como alvo para disseminar o seu ódio e para avançar uma pauta conservadora. Esse discurso de ódio cresce e cresce com ele os assassinatos da população dos travestis e transexuais. Como uma reação para que essas ainda poucas conquistas, mas que têm um impacto muito grande na nossa vida, não existam mais. Isso é uma reação muito violenta a essas conquistas que nós temos nos últimos anos e que só foi possível porque nós tivemos uma gestão que entendeu que esta parcela da população também tem direitos, também merece direitos e tenta, a partir daí avançar nos direitos da população travesti e transexuais.

“Os avanços assustam algumas pessoas que nos utilizam como alvo para disseminar o seu ódio e para avançar uma pauta conservadora”

E o que ainda falta avançar?
Para começar, a gente precisava de um Congresso que não defendesse apenas o latifúndio, que não defendesse apenas as empresas e não defendesse apenas a sua religião. Mas um Congresso que pensasse a população como um todo. A população LGBT como um todo carece de legislação. Nós temos 11 países só na América Latina que têm alguma legislação para LGBT e o Brasil não tem sequer uma. E nós não temos hoje o reconhecimento do Estado da identidade de gênero dessas pessoas. O tempo todo o Estado quer mandar no nosso corpo e dizer o que nós temos que fazer ou não com nosso corpo. Nosso direito à identidade, nosso direito ao próprio corpo está sendo negado. E o Legislativo não legisla a cerca disso. Nós temos um projeto de lei de identidade de gênero de autoria de Jean Wyllys e Érika Kokay, que tramita a passos lentos e não tem perspectiva de uma aprovação no cenário que nós estamos hoje. Isso é o primeiro pra mim: o Brasil carece de reconhecer que essa pessoa tem direito à sua identidade, de exercer a sua identidade de gênero.

Para além disso, nós precisamos avançar em programas sociais de transferência de renda, que possam garantir a empregabilidade, o resgate de oportunidades para essas pessoas, ao molde do que é o TransCidadania, na Prefeitura de São Paulo. Mesmo no processo transexualizador, que é a maior conquista que nós temos, precisamos avançar ainda para uma lógica não patalogizante. A homossexualidade não é mais considerada doença, mas a transexualidade ainda é considerada doença no Brasil. E a gente precisa entender que não é porque eu sou ‘doente’ que eu preciso readequar meu corpo. É porque é um direito meu ao meu corpo e à minha identidade.

“A gente precisa entender que não é porque eu sou ‘doente’ que eu preciso readequar meu corpo. É porque é um direito meu ao meu corpo e à minha identidade.”

Precisamos também a conquista do nome social em todos os espaços de serviços públicos, em todas as escolas. É uma orientação do MEC, mas a gente ainda precisa avançar. A gente precisa que o censo comece a quantificar essa população. Não sabemos quantos nós somos. A gente precisa entender também que, por exemplo, a questão do feminicídio, a questão da Maria da Penha, também atingem as mulheres travestis e transexuais. E que essas legislações que protegem as mulheres, excluem mulheres travestis e transexuais. Precisamos avançar nesse sentido, porque em relação a esse número tão crescente, tão assustador de assassinatos de pessoas trans, principalmente de mulheres travestis e transexuais no País, o que o agressor quer matar nessa pessoa também é o feminino. Todos esses fatores que eu citei, eles seriam muito mais fáceis de encaminhar se nós tivéssemos uma legislação que faça com que o Estado reconheça a identidade de gênero dessas pessoas.

(foto: Paulo Pinto)

Foto: Paulo Pinto/Agência PT

O que representa para outras pessoas trans ter uma transexual na coordenação geral LGBT? Você acha que isso serve de exemplo para outros trans?
Eu acho que serve como estímulo para que outras pessoas trans saibam que a gente pode ocupar espaços de poder. Que nós temos condição de galgar esses espaços como qualquer outra pessoa. A gente sente falta de ver gestores na atuação pública que sejam pessoas travestis e transexuais. A gente não se reconhece no atendimento, a gente não se reconhece em vários espaços. Isso passa uma mensagem para a população de que nós não temos capacidade para chegar a esses lugares. Então acho que essa é uma mensagem positiva, mas acho que a gente tem que ampliar isso. Nós temos travestis na coordenação LGBT, mas nós queremos também travestis na Saúde, na Educação, na Justiça, na Casa Civil, tanto do governo federal quanto dos estados e municípios. Nós queremos em todos os espaços. Nós também queremos estar na padaria, na farmácia, na UBS, em todos os lugares nós queremos ver pessoas trans masculinas e femininas trabalhando e tendo acesso a esses espaços.

Eu não luto para que as pessoas tenham essa mesma trajetória, eu luto para que as pessoas tenham a trajetória comum, que possam fazer concurso, que possam estar no mercado de trabalho. Tenho a nitidez de que eu cheguei muito longe, mas que isso é resultado da minha trajetória política e tenho que lutar para que outras pessoas não tenham que passar por isso, que elas tenham o direito lá na sua cidade, na sua localidade, de ter o seu emprego, de ter a sua vida, de ter o seu acesso ao mercado de trabalho.

“A gente sente falta de ver gestores na atuação pública que sejam pessoas travestis e transexuais. A gente não se reconhece no atendimento, a gente não se reconhece em vários espaços. Isso passa uma mensagem para a população de que nós não temos capacidade para chegar a esses lugares.”

Acha que o Partido dos Trabalhadores é pioneiro na questão da efetivação de direitos da população LGBT?
Sem dúvida! O Partido dos Trabalhadores foi quem trouxe a pauta LGBT para o centro do debate. Se nós fizermos um resgate de todos os projetos que já tramitaram nos estados, municípios e no governo federal, vamos notar que a imensa maioria é de legisladores petistas, assim como muitas iniciativas pioneiras, como o TransCidadania. Não desmerecendo outras legislações que vieram, acho que todo mundo tem que absorver esse debate. O PT foi o primeiro partido a ter um grupo de debate LGBT e outros partidos, ainda bem, fizeram a mesma coisa, porque nós temos que estar em todas as frentes. Foi com o PT que pela primeira vez se falou de LGBT de forma que não fosse relacionando com a questão de Aids, e isso foi através do ‘Brasil sem Homofobia’, que era um programa do governo Lula. É inegável que a história dos avanços da pauta LGBT tem muito a ver com a história do Partido dos Trabalhadores.

LGBT PT

Seminário da Setorial Nacional LGBT do PT, realizado em Brasília em 26 e 27 de fevereiro de 2016

Você falou no programa TransCidadania, da prefeitura de São Paulo, que você coordenou. Como foi essa experiência?
O programa TransCidadania é fantástico. Foi o maior orgulho da minha vida foi ter coordenado esse programa. É um programa único de resgate de oportunidades para pessoas travestis e transexuais. Porque inverte toda essa lógica de exclusão e tenta resgatar a oportunidade sem higienizar ninguém, simplesmente por entender que o Estado tem déficit com essa população. Só isso já é fantástico.

Ele é pioneiro e é diferente porque não existe outro programa como ele na América Latina nem na América como um todo. Inclusive foi convidado para ser apresentado ao atual governo norte-americano, que passa a tratar esse programa como um espelho para alguma iniciativa local. O programa diz que essa pessoa precisa receber um auxílio do Estado para resgatar sua oportunidade de ensino, de qualificação profissional e de formação cidadã. Ao trazer 200 pessoas travestis e transexuais para a utilização do serviço público, porque o TransCidadania tem uma rede de proteção e acolhimento que tem 19 equipamentos públicos municipais envolvidos, ele começa a apontar onde na gestão nós precisamos fazer algum tipo de mudança para acolher essa população. Ele tem um potencial não só para ajudar essas pessoas, mas de preparar o serviço público como um todo para o acolhimento das demais pessoas transexuais que não estão no programa. O potencial transformador é muito grande e acho que mostra um caminho para toda a gestão pública.

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Prefeito Fernando Haddad (PT-SP) lança o programa Transcidadania. Foto: Fernando Pereira/Secom PMSP

Hoje, dia 25 de março, é o Dia Nacional do Orgulho Gay. Qual o recado que você passa para os gays no dia de hoje?
Eu acho que é importante para comemorarmos muitas conquistas, como termos um casamento homossexual equiparado ao casamento heterossexual. Isso possibilitará adoções e outros cem direitos que eram negados a esses casais. Mas eu acho que hoje nós estamos em um momento em que o conservadorismo e o fascismo tiraram às máscaras e vão com muita força dizer que a genitália é que define o sexo, dizer que um homem não pode trocar afetos, trocar um beijo com outro homem. Criminaliza até o beijo e o afeto.

Então eu diria que mais uma vez nós precisamos dessa força de organização de gays, lésbicas, pessoas trans, que permaneçam como estão, na rua e na luta para dizer que o direito à orientação sexual, que o direito ao afeto é um direito que independe de crenças ou de religiões, que é o afeto que só diz respeito à pessoa.

É muito revolucionário quando a gente fala de orientação sexual ou de identidade de gênero, porque a gente coloca em xeque muita coisa. Nós temos um poder revolucionário muito forte de diálogo com a sociedade. E em tempos de grande avanço do conservadorismo é bom que nesse dia saiamos às ruas, nos beijemos muitos, troquemos afetos, demos pinta à vontade, dando uma mensagem que nós não vamos aceitar retroceder e que nós não vamos ceder para o avanço do fascismo e do machismo.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

No cenário atual, não podemos deixar de falar da situação política do nosso País. Como você enxerga esse momento em que se pede a saída da presidenta Dilma, democraticamente eleita?
Sem democracia não existe direitos humanos. Sem direitos humanos, não existe democracia. É uma via de mão dupla. E sem democracia não tem direitos LGBT. Se houver um golpe à democracia – porque esse golpe é um golpe político, não é uma tentativa legal –, todo o processo que está sendo feito está rasgando a Constituição. Diz respeito a todo o processo democrático de eleição. E o Golpe à democracia fere não simplesmente só um partido A ou B. Ele fere todas as conquistas sociais que nós tivemos, na questão racial, na questão de mulheres, na questão LGBT.

Quando a gente vê essas pessoas com as camisas da corrupta organização de futebol e ovacionando pessoas das quais eu não quero dizer o nome, mas que são grandes defensoras no Congresso de que nós não existamos e que nós não tenhamos direitos, a gente observa que o que está em curso é sem dúvida alguma o retorno de uma época sombria em que éramos proibidos sequer de dizer o nome. ‘O amor que não ousa dizer o nome’. Eles não querem que existamos, não querem que falemos, não querem que expressemos nosso afeto e o nosso carinho, não querem que expressemos as nossas identidades. Se deixarmos que esse golpe fira a democracia, nós estamos abrindo mão de todas as nossas conquistas.

Que nós tenhamos críticas aos governos A, B ou C. Isso é natural, é legítimo. Eu acho que nós temos que ir pra rua para dizer que queremos mais direitos LGBT, para dizer que nós precisamos avançar mais na pauta LGBT, que queremos que criminalize a homofobia, que aprove a identidade de gênero. E fazer críticas aos governos é parte desse processo. Mas, deixar com que se passe por cima da Constituição e deixar com que se afete a democracia desta forma é entregar de mão beijada todas as conquistas que nós tivemos, sejam elas poucas ou muitas.

Por Luana Spinillo, da Agência PT de Notícias

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