Val Carvalho: Revolução Russa faz 100 anos. E nós com isso?
Qual a diferença dessa época do liberalismo, para a o Brasil atual, da extinção dos direitos sociais e trabalhistas?
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Já se passaram cem anos, e o mundo mudou muito nesse tempo. Do ponto de vista tecnológico parece uma eternidade! Mas será que mudou tanto assim naqueles aspectos contra os quais se fez a Revolução Russa, em Outubro de 1917? Será que a palavra de ordem que mobilizou as trabalhadoras e trabalhadores russos naquele longínquo ano, “Paz, Terra, Pão”, ainda tem algo a nos dizer no presente, em particular ao Brasil do golpe?
À exceção dos extremos a favor ou contra a Revolução Russa, a sociedade progressista a vê primeiro, como a aurora do período leninista. Depois, como a longa noite do stalinismo. Por fim, como a derrocada de um governo autoritário e burocrático. Sem dúvida, a morte prematura de Lênin afetou significativamente os rumos da Revolução. Do mesmo modo que a histórica briga entre o famoso Trotsky e o até então obscuro Stálin não foram apenas disputas pessoais, mas de projetos diferentes para a Revolução vitoriosa.
Trotsky e Stálin
Trotsky defendia que a Rússia levasse a revolução para a Europa, estimulando para isso o internacionalismo proletário. Stálin, por sua vez, queria construir o socialismo num só país, canalizando nesse sentido o tradicional sentimento nacional. No entanto, a maioria do partido e do povo entendeu que o caminho de Trotsky colocaria em perigo a sobrevivência Rússia socialista. Foi por isso que Stálin venceu, porque o seu caminho atendia melhor aos anseios do partido e do povo. O que veio depois se deve às características de cada uma dessas fortes personalidades.
A Rússia foi salva, mas o poder de Stálin foi implacável. Stálin mandou fuzilar a velha guarda bolchevique, para esta não lhe fazer sombra, condenando-a com provas falsas, da mesma maneira como Moro está fazendo com Lula. O rumo que deu à Rússia aprofundou o burocratismo e o autoritarismo pessoal, como tinha avisado Trotsky, também assassinado por Stálin, em 1940 no México.
Contudo, com apenas três planos quinquenais, Stálin conseguiu a façanha de transformar a Rússia de país camponês em país industrial-agrário. Como recentemente bem lembrou Breno Altman a frase que sintetiza tudo isso, cunhada por João Guilherme Vargas Netto: “Stálin: mata, mas faz”. O capitalismo precisou de três séculos para fazer a sua acumulação primitiva, escravizando negros, exterminando índios, explorando os povos das colônias, e arrancando de homens, mulheres e crianças a mais-valia em suas fábricas.
Foi contando com essa forte base industrial que Stálin criou um forte e moderno exército para poder derrotar, com o povo unificado, a terrível máquina de guerra nazista. Logo depois do conflito ele também conseguiu neutralizar as ameaças atômicas do igualmente triunfante imperialismo americano. No longo prazo, porém, a estatização quase total da economia junto com a camisa de força burocrática do estado acabou por minar a resistência do país, inviabilizando a capacidade da União Soviética de disputar econômica e tecnologicamente com o capitalismo.
O trabalhador russo em 1917 e no Brasil do golpe
Mas voltando à ligação da Revolução Russa com o mundo atual e o Brasil em particular, o que vemos? Com a crise do sistema socialista na década de 80 e o fim da União Soviética em 1991, o capitalismo se sentiu livre para derrubar o estado de bem estar social e fazer valer a hegemonia neoliberal. Esta era a nova roupagem do velho liberalismo econômico, prevalecente até a crise de 1929, que considerava que o único direito do trabalhador era o de ser explorado pelo capital em troca de um minguado salário. Isto, quando não estava desempregado. Pergunta-se: qual a diferença dessa época do liberalismo, para a o Brasil atual, da extinção dos direitos sociais e trabalhistas e até mesmo da legalização do trabalho em condições de escravidão pelo neolibe ralismo radical do governo golpista?
A burguesia expulsa o trabalhador da sua “democracia”
A Revolução Russa mostrou também a total falta de interesse da burguesia na ampliação da democracia para os trabalhadores. Em seguida à vitória da Revolução de Fevereiro, que derrubou o czarismo, o governo burguês fez de tudo para acabar com os Sovietes dos trabalhadores e reprimir os bolcheviques. Chegou até mesmo em facilitar o golpe militar dos generais czaristas, no mês de agosto. Foi depois do fracasso desse golpe, com a ajuda decisiva dos bolcheviques, que estes conquistaram rapidamente a maioria nos sovietes e sindicatos e fizeram a vitoriosa Revolução de Outubro, decretando imediatamente a paz e expropriação dos latifúndios. Perguntamos: o golpe do impeachment, feito para acabar com os direitos dos trabalhadores e a inclusão social; e a tolerância da direita liber al com o fascista Bolsonaro ou com os militares golpistas (os generais czaristas verde-amarelos) têm alguma diferença de fundo com o que ocorreu na Rússia daquela época?
Feminismo e socialismo
Nas duas Revoluções russas, fevereiro e outubro, o protagonismo das mulheres foi muito forte. A vitória do socialismo em Outubro possibilitou que as mulheres conquistassem em pouco tempo todos os direitos que lhes eram negados pelas democracias liberais mais avançadas do capitalismo. Alexandra Kollontai, Nadezda Krupskaya, junto com a franco-russa Inessa Armand e a alemã Clara Zetkin, se tornaram lideranças do governo soviético e referências principais das mulheres revolucionárias russas. A experiência da Revolução Russa mostra a necessidade de combinar a luta específica do feminismo classista com a luta geral por democracia e socialismo. Assim como não há socialismo sem feminismo, este último é fundamental para a vitória e consolidação do regime socialista. A ema ncipação política e social das mulheres é parte essencial da emancipação geral dos trabalhadores. A relação da luta específica das mulheres com a luta mais geral ficou tragicamente clara no retrocesso do Brasil do golpe. Em pouquíssimo tempo foram desmontadas todas as políticas de igualdade de gênero construídas pelos governos do PT, um governo eleito tanto pelas trabalhadoras quanto pelos trabalhadores.
À diferença da Rússia de Outubro, o feminismo no Brasil tem uma dimensão particular que se estabelece na relação gênero, raça e classe, analisada recentemente por Angela Davis. Muito concentrada na base da pirâmide social, a mulher negra é a mais explorada e discriminada, tanto pela relação capitalista de trabalho, quanto pelo racismo e o machismo, inclusive do homem negro. Quando ela se levantar vai ajudar decisivamente na libertação do conjunto das mulheres e também da classe trabalhadora como um todo.
As massas aprendem com a sua própria experiência
Finalmente, outra experiência da Revolução Russa que nos serve de lição é a da relação da vanguarda revolucionária com as massas em luta. Na Revolução de Fevereiro os bolcheviques eram uma pequena minoria. Mas as dolorosas experiências políticas vividas pelas massas com o governo burguês e seus apoiadores reformistas, os mencheviques, lhes conduziram na direção dos bolcheviques. Não é o partido de vanguarda quem faz a revolução, mas as massas revolucionadas é que precisam de um programa e de uma firme direção revolucionária.
Embora o Brasil viva uma situação muito diferente, de vitória do retrocesso político e de confusão ideológica das massas, essas estão bastante insatisfeitas com o rumo geral dos acontecimentos e apresentam tendências a se mobilizarem contra o aumento, acima do “normal” da exploração e da miséria social. Assim em 1917, quando setores da classe média russa se aproximaram dos bolcheviques, também no Brasil pós-golpe muitos dos chamados coxinhas, decepcionados, se aproximam da oposição democrática e de Lula. O aumento do apoio a Lula nas pesquisas e a forte mobilização popular de sua Caravana pelo Nordeste são exemplos de como, numa conjuntura difícil para as massas, é possível uma mudança relativamente rápida da correla ção de forças. Quem antes era minoria vira gradualmente maioria, tal como ocorreu na Rússia durante o ano de 1917.
Nessa equação, o fundamental é a vanguarda saber traduzir concretamente e a cada momento o sentimento de mudanças das massas em palavras de ordem unificadoras e mobilizadoras.
Para ilustrar a irmandade entre as vanguardas socialistas e a massa trabalhadora, apesar das diferenças intelectuais, gostaria de citar um trecho do poema Maiakovski, “O poeta-operário”:
Somos iguais
Camaradas dentro da massa operária
Proletários de corpo e de espírito
Somente unidos
Somente juntos recomeçaremos o mundo…
Val Carvalho, assessor parlamentar e militante do PT-RJ, para a Tribuna de Debates do PT
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