Yuri Brito: Recortes e colagens

Vem aí o Congresso do partido da classe trabalhadora brasileira, e nele é preciso construir força própria a partir do diálogo, atingindo a todas as correntes internas, grupos, movimentos

Lula Marques/Agência PT
Tribuna de Debates do PT

RECORTES E COLAGENS: apontamentos de método e estratégia para um partido da classe trabalhadora brasileira

O Partido dos Trabalhadores emerge como uma importante síntese na década de 80. Dos escombros da ditadura e da terra arrasada em que a esquerda se encontrava, surge a ideia de construir um partido da classe trabalhadora, com a ideia de organizar prioritariamente a luta social, sendo um polo acumulador das suas multiplicidade e pautando reformas estruturais em direção à superação do capitalismo.

Porém, observando a história do PT e do Brasil depois do final violento do ciclo de governos petistas, a partir de um golpe parlamentar, emerge uma questão: quais caminhos nos trouxeram de lá até aqui? Dos manifestos dos anos 80 até o saldo final dos governos petistas, o que se alterou, tanto na realidade do povo, quanto na própria esquerda? Há uma miríade de respostas tão possíveis quanto verdadeiras. Mas é importante apontar um problema que tem sido pouco discutido.

Mesmo sem as reformas estruturais, os governos petistas alçaram mudanças nas classes sociais com uma nova camada ascendente de trabalhadores, mas houve um esvaziamento na disputa subjetiva desta classe. A mera reprodução de políticas que melhoram a vida das pessoas viu-se marginalizada frente à ferocidade do capitalismo em crise.

Isso se dá porque a desigualdade e a miséria são funcionais na reprodução da sociedade brasileira. Sem reflexão sobre o seu sentido, a “inclusão” teve uma consequência: deu uma pane geral no sistema.

A massa ascendente se viu travada por mecanismos estranhos à suposta meritocracia, que disfarça o privilégio dos ricos, como o racismo e machismo institucional. Mesmo com graduação superior, se viam subalternos aos filhos da elite, com menor salário e status. Não se enxergavam como parte da classe média tradicional como era prometido pela ideia de “Nova Classe Média”. Quem oferecia sentidos e interpretações para a vida e a ascensão contínua eram, muitas vezes, líderes religiosos conservadores ou membros da elite tradicional que negociam poder e prestígio por de lealdade de classe.

Já os setores médios viram privilégios ameaçados, quando aqueles se recusam a cumprir o papel que lhes era reservado. O trabalho doméstico é a expressão mais bem acabada disso: não apenas aqueles encontravam cada vez mais dificuldade de bancá-lo, como ainda viam seus filhos disputarem a universidade e o mercado de trabalho com filhos das suas ex-domésticas.

A elite tolerou a disfunção enquanto garantia seus lucros. Mas, com a crise econômica mundial, puxou o pino da granada: detonou uma poderosa narrativa, centrada numa moralidade oca e na demonização da esquerda, galvanizando o medo da perda de privilégios dos setores médios. E trouxe para as ruas um movimento de massa que correspondia à aliança entre mídia, partidos conservadores, elites econômicas ultraliberais, castas corporativas e fundamentalistas religiosos.

A esquerda foi incapaz de produzir uma interpretação que desse sentido e consequência às mudanças trazidas pelo seu governo, para estimular forças sociais progressistas renovadas. E, ao mesmo tempo, a falta de força era a justificativa sempre apresentada para não empreender reformas estruturais.

Um apontamento pode ser feito no sentido de dissolver esta contradição. Ele exige uma renovação das forças sociais organizadas da classe trabalhadora. Reafirmando a necessidade das reformas estruturais, mas apresentando um método de construção da força necessária para realizá-las.

O centro é entender que não há uma classe trabalhadora abstrata, sem corpos e identidades. Parece óbvio, mas muitas formulações da esquerda esquecem que a maioria da classe trabalhadora é formada por negros e negras; a maioria da população negra é de mulheres; a maioria das mulheres são trabalhadoras pobres. E assim poderíamos prosseguir, percebendo uma amálgama estrutural entre raça, classe e gênero.

Não são pautas meramente identitárias. São também estruturais, atuam em conjunto e sobre as quais precisa-se agir coordenadamente. Não é valorizando “setoriais”, recortes de raça e gênero, que vamos lidar com esse fato. O método proposto é, portanto, o contrário deste. Ele implica em ter, em todas as formulações programáticas e estratégicas, uma lente que exponha que a classe se expressa em corpos – majoritariamente, negros e/ou femininos.

Reconhecer que a limitada, mas importante, ascensão social teve como ponta de lança mulheres negras que chefiavam suas famílias, seguidas outras mulheres e por homens negros, e que alcançavam não apenas a ascensão econômica, mas a autonomia social. E é daí que brotam forças importantes, ainda que longe do centro do poder, reafirmando essas identidades e lutando por pautas que a esquerda tradicional muitas vezes sequer enxerga.

É preciso construir, mais que narrativa, uma estratégia, um programa e símbolos que levem em conta este fato inegável. E para isso, exige-se um processo de colagem, um método que consiga sintetizar estas demandas estruturais na renovação dessas formulações. Que traga ao centro pautas que mobilizam, mas que sempre são diminuídas em torno de pautas “neutras”, mas que servem apenas à reprodução de um poder adulto, branco e masculino – como é o poder burguês – dentro das próprias organizações da classe trabalhadora.

A colagem, ao contrário do recorte, entende que toda auto-organização de negros e negras e mulheres precisa resultar em processos de hegemonia. E para isso, precisa construir pontes com outros elementos identitários – sexualidade, geração, regionalidade – e formular política para além do seu “setor”. Não haverá transformação alguma se a classe trabalhadora não tiver instrumentos que possam se reproduzir espelhando a vida real dela, e não a da burguesia.

Este método não implica em desconsiderar as contrapartes não-negras e não-femininas da classe trabalhadora. Apenas que na construção dos nossos instrumentos, devem sempre ser considerados apontando para uma hegemonia ordenada de maneira oposta à da sociedade – que põe mulheres negras pobres embaixo na pirâmide e homens brancos e ricos no topo. Significa abrir espaço para sujeitos que são o motor da classe, e não apenas para as suas capas superiores, mais bem remuneradas e reconhecidas socialmente.

Especificamente, sobre o PT, aplicar este método implica em reflexões de três ordens:

Simbólica: é preciso haver uma política de reconhecimento que implica na formação de quadros e na produção de uma estética que dialogue com a própria identidade da classe trabalhadora brasileira. Que incorpore, mas vá além da identidade de peão, evocada com tanto sucesso pelo ex-presidente Lula, e exprima também a composição e as mudanças na classe trabalhadora neste último período, permitindo a ela se enxergar no seu instrumento.

Programática: É preciso perceber uma série de demandas que tem sido secundarizadas, mas que são essenciais na vida do povo e na transformação estrutural da sociedade, e sem as quais não haverá diálogo com boa parte da classe trabalhadora e do povo pobre. Por exemplo, nenhuma melhora na vida econômica de uma família ou comunidade supera a perda de um pai ou filho, geralmente negros, para a violência do Estado, que as desorganiza emocional e financeiramente. Elementos como este precisam contar com maior prioridade e formulação programática.
Estratégica, com consequências organizativas: Não se pode viver da ilusão de um país de classe média e ricos. Estas são classes sociais com um estilo de vida que depende da existência da miséria. O caminho para a superação do capitalismo passa por construir um novo tipo de vida, pautada em outros valores que não o consumo, a acumulação de riquezas e o prazer sustentado no sofrimento alheio. As reformas estruturais precisam estar aliadas a construção de novos valores que propiciem condições subjetivas para realizá-las, à qual serve bem a efetiva incorporação destes sujeitos no processo de direção partidária, o estímulo à formação de redes militantes e a organização de uma frente ampla e diversa que abarque todas as organizações que contribuem para esta reflexão.

Ouvimos, por anos, que não havia correlação de forças para avançar mais. Que certas reformas e rupturas não eram viáveis, pois não havia força suficiente para bancá-las.

Pois bem, aqui está uma contribuição para um método de construção desta força. Ele exige direções políticas e símbolos mais negras, femininas e diversas. Exige um programa que discuta economia e antirracismo, política social e feminismo, educação e diversidade, como se fossem uma coisa só – porque na vida do povo, efetivamente são. Falar só da classe, só da pobreza, como se não elas não se expressassem em corpos reais, é continuar reproduzindo em nós as ideias de nossos inimigos, da mesma forma que falar de identidades sem lembrar das estruturas articuladas é fazer o mesmo por caminho diverso.

Acima de tudo, temos de dizer que lutamos por uma nova sociedade. Dizer a todas as pessoas que, para melhorar de vida, não será preciso calçar as botas do opressor. E assim contribuiremos para reavivar os nexos vivos entre partido e movimentos sociais, sobre o que muito se fala e nem tanto se faz.

Ao produto desse método, ofereça-se um nome que aponte para esta transformação. Se das mais brutas veias do nosso povo, para tomar o poder, então a chamaremos de Revolução de Pés no Chão. E sem ilusões: isso não se fará por outros que não nós mesmos. Não adianta pedir licença a quem não quer ouvir.

Vem aí o Congresso do partido da classe trabalhadora brasileira, e nele é preciso construir força própria a partir do diálogo, atingindo a todas as correntes internas, grupos, movimentos. Sobretudo, aos petistas que, independentemente de suas posições anteriores, compreendem que é preciso oferecer um caminho, um método de construção da força que precisamos para imprimir a derrota última à burguesia brasileira, sempre ajoelhada ao imperialismo.

Não há alternativa possível. A nós, só cabe o desafio de vencer.

Por Yuri Brito, estudante de Ciências Sociais, militante do Coletivo Quilombo e da EPS, Diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE) e petista desde os 16 anos, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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