Bolsonaro: “Eu quero todo mundo armado”; vendas de armas crescem 98%
Venda de armas e munição explodiu em maio, após Bolsonaro pressionar por aceleração de portaria na reunião de 22 de abril divulgada pelo STF. Filho do presidente faz lobby para abrir as portas do mercado nacional para a indústria bélica estrangeira
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Braços flexionados e mãos fechadas, exceto pelo polegar e o indicador, estendidos para simbolizar uma arma. A pose repetida incansavelmente nas eleições presidenciais de 2018 tornou-se ícone de uma das principais promessas de campanha do então candidato Jair Bolsonaro: a liberalização generalizada da comercialização de armas de fogo no país. Desde a posse, multiplicam-se as tentativas do presidente de cumprir essa promessa, e, entre idas e vindas, Bolsonaro se aproxima de sua grande ambição.
De janeiro a maio desde ano, o volume de armas vendidas no país cresceu 98% em comparação com o mesmo período de 2019, e 90% em relação a 2018. Foram adquiridas 6.343.931 unidades por cidadão com mais de 25 anos, sem antecedentes criminais, com residência fixa, ocupação lícita e aptidão técnica e psicológica.
E para tantas armas, mais munição. Em maio, já em pleno agravamento da pandemia do coronavírus por todo o país, foram vendidos 1.541.780 cartuchos no varejo, 130% a mais que no mesmo mês do ano passado. Isso equivale a mais de dois mil cartuchos por hora.
O número é superior ao adquirido no mesmo período por 11 instituições ligadas à segurança pública, patrimonial ou a atividades de inteligência, que compraram, em maio, 1,396 milhão de munições. Em dezembro de 2018, último mês do ilegítimo Michel Temer na Presidência, o comércio registrara a venda de 669.174 munições.
As informações foram obtidas pelo jornal ‘O Globo’ a partir da base de dados do Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições (Sicovem) do Exército, via Lei de Acesso à Informação. Elas correspondem apenas às vendas feitas no comércio para pessoas físicas e excluem policiais militares, bombeiros, agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
O salto no mês passado ocorreu após a publicação da portaria mencionada na infame reunião ministerial de 22 de abril, cujo conteúdo tornado público por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) mostrou Bolsonaro exigindo a aceleração de medidas de flexibilização.
“Por que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura. E não dá pra segurar mais (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”, disse o presidente.
No dia seguinte à reunião, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, publicaram portaria aumentando em 12 vezes o limite de compra de munições por cidadãos autorizados.
A regra anterior, que valia desde janeiro, previa teto anual de 200 unidades por arma registrada. Após a mudança, passou a 50 munições mensais por arma. Antes da atual gestão, o regulamento previa o máximo de 50 por ano. Nos casos de cartuchos destinados à prática de caça ou tiro desportivo, o limite mensal passou a variar de 200 a 300.
Uma semana antes, o Exército havia publicado, a mando de Bolsonaro, a Portaria do Comando Logístico (Colog) 62, que revogou as portarias 46, 60 e 16, liquidando a regulação do rastreamento de armas no Brasil.
O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Procuradoria da República do Distrito Federal a abertura de uma apuração sobre o procedimento do Exército. No pedido, alegou que as portarias revogadas concretizavam definições estabelecidas pelo Estatuto do Desarmamento, complementando a regulamentação do rastreamento de produtos controlados pelo Exército que ainda estavam incompletas.
“É inadmissível que a gente combine o aumento dos limites de compra de munição, ampliando o acesso, sem que haja nenhuma contrapartida de melhora dos mecanismos de controle de marcação e rastreamento”, lamentou Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé.
Nesta terça (9), a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu o arquivamento da ação na Justiça Federal de São Paulo que questiona norma que aumentou número de munições que população pode comprar. A AGU afirmou à Justiça Federal que o fato de o governo ter feito uma escolha política de autorizar a compra “de x ou y de munição não modifica a necessidade de observância, pelos usuários”, da lei. A manifestação é uma resposta a um pedido de explicações feito pela 25ª Vara Cível Federal de São Paulo sobre a portaria.
Deputado é lobista de estrangeiros
O “Brasil acima de tudo” do lema de campanha de Bolsonaro, para o filho dele, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), termina onde começa a defesa dos interesses das indústrias bélicas estrangeiras. Ferrenho defensor da abertura do mercado de armas nacional, ele está prestes a ver sua insistência levar a uma primeira vitória.
Segundo o jornal ‘Folha de São Paulo’, está sendo negociada uma parceria entre a sucursal americana da marca SIG Sauer, de origem suíço-alemã, e a brasileira Indústria de Materiais Bélicos. A Imbel é uma empresa pública ligada ao Comando do Exército que produz munições, fuzis e pistolas e custou R$ 152,2 milhões ao Tesouro para seguir operando em 2019.
O Centro de Comunicação Social do Exército informa que as duas empresas só precisam agora do aval dos respectivos governos para firmar um acordo de produção conjunta no Brasil. Ainda não há detalhes sobre metas e investimento.
Eduardo mantém boas relações com a Sig Sauer desde que decidiu se tornar o “rosto” da campanha contra o desarmamento no Brasil, no início do governo do pai. Em 16 de abril do ano passado, postou no Twitter a foto de uma reunião com representantes da empresa, prometendo ajudá-los a implantar uma fábrica no Brasil e fazer com que “o lobby não atoche tantas burocracias para emperrar a instalação”.
Em março deste ano, apareceu testando pistolas da marca em um clube de tiro. E há duas semanas, visitou o general Alexandre Porto, que assumiu a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército em substituição a Eugênio Pacelli, cujas portarias foram derrubadas em abril.
Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, Eduardo sempre fez críticas abertas à indústria nacional de armas. Formado em direito e escrivão da Polícia Federal desde 2010, Eduardo está licenciado do cargo. Em 2014, afirmou à revista ‘Veja’ que sair de casa sem a arma era “o mesmo que esquecer a carteira”.
Um dos mais aguerridos defensores da flexibilização da posse e do porte de armas no Congresso Nacional, Eduardo costuma publicar fotos e vídeos nas redes sociais em que aparece disparando em clubes de tiro, visitando feiras de armas e munições nos Estados Unidos e reunindo-se com representantes da indústria armamentista.
Desde 2015, quando iniciou seu primeiro mandato como deputado federal, ele apresentou ao menos nove projetos de lei relacionados às armas. Naquele ano, propôs que o Estado emprestasse uma arma para quem tivesse a própria apreendida pela Justiça, após tê-la usada em defesa da própria vida ou da de terceiros.
Em 2018, sugeriu que o embarque de pessoas armadas em aeronaves civis fosse autorizado. Também já defendeu que agentes de segurança recebam, como doação quando se aposentarem ou entrarem para a ativa, armas das instituições em que atuam.
“Democratização” do acesso às armas
Em entrevista à BBC News Brasil, em janeiro, acompanhando o pai em viagem oficial à Índia, Eduardo contou que iria se dedicar à democratização do acesso às armas no Brasil, e que já teria conversado com a SIG Sauer e a italiana Beretta, para ajudá-las a abrirem filiais no país. Segundo ele, outras empresas do setor, como a austríaca Glock e a americana Smith & Wesson, também estariam interessadas em investir no país.
“Existem dois fatores que podem ser tocados adiante. A implementação de fábricas de armas estrangeiras que pretendem abrir e gerar empregos no Brasil, abrindo finalmente uma concorrência nesse setor, que hoje é dominado pela CBC Taurus. E também uma facilitação com relação à burocracia de atiradores, colecionadores e caçadores para a retirada dos seus registros”, apregoou.
Eduardo defendeu o princípio liberal da livre concorrência e disse que, apesar das flexibilizações que Bolsonaro tem feito, a compra de um armamento segue quase um “privilégio para as elites”. “O armamento é muito caro, muito tributado, e a lei hoje praticamente exige que você seja filiado a um clube de tiro, tenha um despachante, para conseguir importar ou comprar uma arma nacional. Essa é a realidade que eu quero mudar”, revelou.
Para o jornalista Reynaldo Azevedo, aos poucos, o Exército Brasileiro vai se transformando num “puxadinho” dos interesses da família Bolsonaro. “Antes que o presidente faça qualquer privatização de relevo, parece que uma das três Forças já está em franco processo de privatização”, apontou em sua coluna no portal ‘UOL’.
Azevedo lembrou que Bolsonaro permitiu na semana passada a compra por civis de fuzis fabricados justamente pela Imbel, que faria, então, a parceria com SIG Sauer, em favor da qual Eduardo Bolsonaro faz lobby, num contexto em que o chefe da nação assume que armar a população é uma questão política.
“Isso não é mais um governo, mas um grande lobby em favor da indústria armamentista”, concluiu o colunista. “Eis aí! O Exército e a primeira estatal privatizada por Bolsonaro. Em favor da família Bolsonaro”, finalizou Azevedo.
Articulação no Congresso
O Palácio do Planalto vai tentar avançar na Câmara com regras mais brandas para o porte de armas no país e o aumento do limite de pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O governo cobrou apoio do Centrão para priorizar esses assuntos.
Em relação à alteração no Código de Trânsito Brasileiro, o plenário da Câmara aprovou na quarta passada (3) a urgência da proposta que aumenta de 20 para 40 o número mínimo de pontos necessários para gerar a perda da carteira de habilitação.
Mas a flexibilização da posse e do porte de armas deve encontrar a resistência do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que já afirmou que a grande maioria da população é contra políticas de armamento da sociedade. Maia disse que a Câmara deve debater a Portaria 62 que revogou, em abril, normas sobre controle, rastreabilidade e identificação de armas de fogo e munições.
O presidente da Câmara afirmou que uma das possibilidades é restabelecer as portarias anteriores revogadas pelo governo. “Acho que a decisão do cancelamento da portaria do Exército que restringia armas e munições foi muito ruim, esse é um tema que o Parlamento e o Judiciário deveriam se pronunciar”, disse ao portal ‘UOL’.
“Respeitamos a pauta do presidente, mas a população não apoia armar a sociedade. A portaria do Exército precisa ser estudada e debatida”, avaliou Maia.
O general Eugênio Pacelli, que assinava as portarias revogadas, afirmou que os decretos visavam à segurança nacional e não atenderam a “interesses pontuais” do setor armamentista. Em seguida, foi exonerado do cargo de diretor de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército.