À beira da derrota, Trump ataca processo eleitoral dos EUA
O “homem mais poderoso do mundo” precisa vestir roupas de gente grande, parar de agir como um menino mimado e aceitar a derrota com um mínimo de dignidade. Assim defendeu nesta sexta (6) Jim Kenney, prefeito da Filadélfia, a maior cidade da Pensilvânia, após o ainda presidente Donald Trump ofender gravemente a cidade e o estado, decisivo nestas eleições presidenciais
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Na quinta (5) à noite, após atacar frontalmente a democracia e o sistema eleitoral norte-americano em um desabafo no salão de imprensa da Casa Branca, Trump foi ao perfil no Twitter repetir partes de sua fala em que qualificava a Filadélfia como “um dos lugares mais corruptos do país”, e insistia que não permitiria que “roubassem a eleição”.
A rede social censurou algumas das mensagens enviadas pelo republicano, a exemplo do que foi feito anteriormente por três grandes redes de televisão aberta – ABC, CBS e NBC – que chegaram a interromper a transmissão do pronunciamento na Casa Branca. CNN e Fox News foram os únicos canais que continuaram mostrando o discurso em que Trump garantia: “Se você contar os votos legais, eu ganho facilmente”, enquanto os votos ainda estão sendo contados em diversos estados americanos.
Para Trump, “ilegais” são os votos enviados pelo correio, “convicção” que ele martelou por meses antes da votação de 3 de novembro. No discurso, o ainda presidente disse que é “incrível como as cédulas enviadas pelo correio são tão unilaterais”, em referência aos votos a distância a favor do democrata Joe Biden.
Mas o fato histórico é que, tradicionalmente, os democratas votam mais pelo correio, enquanto os republicanos preferem emitir seus votos pessoalmente – a maioria, no dia oficial da votação. A estimativa é de que cerca de 75% dos votos por correspondência foram para Biden, e são esses votos, que este ano foram em muito maior número que os presenciais (100 milhões, contra 60 milhões), que chegam agora às centrais de apuração e pavimentam a virada do candidato democrata.
Diante da possibilidade praticamente inexorável de derrota, Trump voltou a sinalizar que não vai reconhecer a vitória do adversário. Em comunicado, ele prometeu levar adiante a estratégia de judicializar a apuração até o limite. Antes, a campanha republicana havia anunciado que a eleição “não acabou”.
“Joe Biden não deveria erradamente clamar para si o cargo de presidente. Eu poderia fazer isso também. Os processos legais estão apenas começando agora”, ameaçou Trump no perfil do Twitter, nesta sexta (6).
Enquanto Trump esperneia e ameaça, o serviço secreto dos Estados Unidos já reforçou a segurança de Biden em Wilmington (Delaware), onde ele vive, e as autoridades federais de aviação fecharam o espaço aéreo sobre a casa do democrata. Em paralelo, a Polícia da Filadélfia informou que investiga um suposto plano para atacar um dos locais de apuração de votos na Pensilvânia.
Ao contrário do destempero trumpiano, Biden mantém a cautela e não reivindica formalmente a vitória. Porém, no pronunciamento feito de casa no início da madrugada de sábado (7), fez questão de ressaltar as viradas nos estados da Geórgia e da Pensilvânia e a vantagem de quatro milhões de votos no voto popular. Para Biden, “é muito claro que vamos ganhar”.
O democrata postergou ao máximo a fala, pois tinha a expectativa de fazer o discurso da vitória já na sexta, mas a contagem arrastada e os desafios judiciais do rival fizeram com que ele mantivesse a prudência. Ele afirmou, no entanto, que não “está esperando para fazer o trabalho”.
Biden anunciou ter tido reuniões com grupo de experts sobre o avanço dos casos de coronavírus no país para definir o plano que porá em andamento para enfrentar a pandemia, nos aspectos de saúde e de recuperação da economia.
“Temos sérios problemas para lidar. Covid, a economia, racismo sistemático e mudança climática. Não temos mais tempo a perder em guerras partidárias”, afirmou Biden, que voltou a pedir calma aos americanos. “Nós podemos ser oponentes, mas não somos inimigos”, pregou, prometendo acabar com o permanente “estado de guerra partidário”.
Operários podem dar a vitória ao democrata
Três dias após as votações, Biden conseguiu assumir a liderança na Pensilvânia, território mais cobiçado pelos candidatos. Além dos 20 votos eleitorais em jogo, a vitória do democrata nesse território selaria a reconquista do chamado Rust belt, (“cinturão da ferrugem”), zona industrial que em 2016 deu as costas a Hillary Clinton.
Biden já tinha Michigan e Wisconsin assegurados. A região havia sido um baluarte azul por décadas. Mas a decadência cada vez maior da indústria manufatureira afetou os democratas, que perderam apoio há quatro anos.
Com os dados disponíveis até agora, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, no entanto, não mostram uma mudança profunda em sua tendência de votação em comparação com 2016. O mundo rural voltou a apoiar Trump em sua maior parte, mas as áreas urbanas, mais densas, mais educadas e mais diversificadas, vieram ao resgate de Biden.
Além da Pensilvânia, o resultado final depende da contagem de votos na Geórgia, Arizona e Nevada, onde Biden mantém liderança apertada. A contagem avança lentamente e se estenderá no fim de semana, conforme algumas autoridades já avisaram.
A disputa mais acirrada ocorre na Geórgia, que anunciou que vai recontar os votos. Um democrata não vence a eleição presidencial na Geórgia desde Bill Clinton. O Winsconsin também anunciou a recontagem devido à estreita diferença entre os candidatos.
Nos Estados Unidos não há autoridade que fiscalize a recontagem ou divulgue os resultados, é a imprensa e principalmente a agência AP que o faz. Nate Cohn, o estatístico do ‘New York Times’, prevê que Biden conquistará 306 delegados, contando os 6 de Nevada, 11 do Arizona, 16 da Geórgia e 20 da Filadélfia.
Para Trump, o caminho é mais difícil. Ele tem 214 votos no Colégio Eleitoral e agora precisa virar de novo na Geórgia, passar Biden em Nevada e vencer na Pensilvânia e na Carolina do Norte, único estado onde ainda lidera, ao lado do Alaska.
Mesmo se perder na Pensilvânia e na Geórgia, Biden ainda pode atingir os 270 delegados se vencer em Nevada. Já Trump, confirmando a vitória na Carolina do Norte (15 votos) e no Alasca (3 votos), não obteria o suficiente para se reeleger.
Antídoto antecipado contra a derrota
Durante toda a campanha, Trump fez alegações falsas de que o voto por correspondência era mais vulnerável a fraudes e encorajou os partidários a não votar pelo correio. Agora, ele e sua equipe se entrincheiraram ao denunciar sem provas que estavam “roubando as eleições com votos ilegais”.
No entanto, o ainda presidente oscila entre pedir que parem a contagem de votos e reclamar que nem todos os votos foram contados. A cruzada de Trump contra os votos por correios recebidos após o dia das eleições parece valer apenas para uma parte dos eleitores, e militares não estão incluídos.
Público tradicionalmente republicano e que costuma votar pelo correio, os militares poderiam fazer pender a balança para Trump. No Twitter, ele insinuou que essa parte dos votos está sumindo. “Onde estão as cédulas militares perdidas na Geórgia? O que aconteceu com elas?”, questionou, enquanto prossegue na judicialização do escrutínio.
Na Geórgia, a campanha de Trump pediu a suspensão da contagem devido a supostas irregularidades em 53 cédulas. No Michigan, pediu a suspensão até que o estado colocasse inspetores em cada local de apuração. Os tribunais estaduais rejeitaram os processos.
Em Nevada, a campanha usou a mesma estratégia: pediu a suspensão da contagem, também alegando irregularidades. A contagem está mantida. No Wisconsin, Trump também pediu uma recontagem. Foi atendida, mas isso não foi exatamente uma vitória. A lei do estado já prevê recontagem quando a diferença no resultado é menor do que 1%.
“Esta eleição ainda não acabou. A falsa projeção de Joe Biden como o vencedor é baseada em resultados em quatro estados que estão longe de ser finais”, disse Matt Morgan, conselheiro geral. “Biden está contando com esses estados para sua reivindicação falsa sobre a Casa Branca, mas no final da eleição o presidente Trump será reeleito”, concluiu.
Apoiadores de Trump – em alguns casos, armados com pistolas e rifles – invadiram um colégio eleitoral em Phoenix, Arizona, para exigir que todos os votos fossem contados. Na Filadélfia, se manifestaram para evitar que parte dos votos enviados pelo correio sejam contados, como outros grupos fizeram na quarta-feira em Detroit, Michigan. Também houve relatos de protestos de apoiadores de ambos os candidatos fora do Centro de Convenções da Filadélfia.
Republicanos se dividem
Na quinta, Trump criticara uma certa inércia do partido republicano em manter uma postura mais crítica ao que chama de “fraude” dos democratas. A estratégia, no entanto, não é unanimidade entre os correligionários. Na avaliação do ex-governador de Nova Jersey Chris Christie, “simplesmente não há base para esse tipo de argumento”.
“Não há defesa para os comentários do presidente esta noite minando nosso processo democrático”, escreveu Larry Logan, governador republicano do Estado de Maryland. “Os Estados Unidos estão contando os votos e devemos respeitar os resultados como sempre fizemos. Nenhuma eleição ou pessoa é mais importante do que nossa democracia”, concluiu o político pelo Twitter.
Mitt Romney é outro que se opõe às acusações. O senador, que também foi candidato à Casa Branca em 2012, afirma que Trump “enfraquece as instituições onde reside a origem do país e acende de forma imprudente paixões destrutivas e perigosas”.
O republicano de Utah tem histórico de desavenças com Trump. Em fevereiro, ele foi o único senador republicado a votar pela sua condenação no julgamento de impeachment no Congresso. Romney concordou com a acusação de abuso de poder que Trump enfrentava, e não apoiou a segunda acusação, que apontava suposta obstrução ao Congresso. Trump foi absolvido pelo Senado em ambas as acusações.
Já o senador pela Flórida Marco Rubio, que concorreu como pré-candidato republicano à Presidência em 2016, disse que “se um candidato acha que um estado está violando leis eleitorais, ele tem direito de contestar o caso em tribunal e de apresentar provas para embasar suas alegações”. Mas, junto à fala, ele incluiu um comentário feito em 4 de novembro, quando novamente contrariou Trump ao dizer que “demorar dias na contagem de votos não é ilegal”.
Sem citar diretamente o presidente, o deputado republicano Adam Kinzinger fez referência à fala de Trump. “Queremos que todos os votos sejam contados, sim, todos os votos legais (é claro). Mas, se houver dúvidas legítimas sobre fraude, apresente evidências e leve-as ao tribunal. Pare de espalhar desinformação que já foi desmentida… Isso está ficando insano”, escreveu o político de Illinois.
As declarações de Trump também foram condenadas em várias emissoras televisivas. “Esta é uma situação extremamente inflamável e o presidente acaba de acertar um fósforo”, denunciou Chris Wallace à Fox News.
“É profundamente irresponsável” dizer que ganhou as eleições, afirmou o conhecido comentarista político Ben Shapiro. “Não, Trump não ganhou a eleição”, completou o tradicional apoiador de pautas conservadoras dos republicanos.
Por sua vez, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) acusou Trump de ter abusado de seu poder durante as eleições. Segundo o chefe da missão de observação que representa a OSCE, Michael Georg Link, o republicano denunciou fraude no processo eleitoral nos Estados Unidos sem ter apresentado provas contundentes.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou nesta sexta um relatório preliminar sobre as eleições e criticou, sem citar o nome, a postura de Trump. No documento, a missão diz não ter “observado diretamente nenhuma irregularidade grave que ponha em causa os resultados até agora”, mas que “apoia o direito de todos os partidos buscarem reparação perante as autoridades judiciárias competentes quando acreditarem que foram injustiçados” – desde que “com responsabilidade”.
“É crítico, no entanto, que os candidatos ajam com responsabilidade, apresentando e argumentando reivindicações legítimas perante os tribunais, não com especulação infundada ou prejudicial na mídia pública”, diz o relatório. “A intimidação de eleitores e demais atores do processo eleitoral também foi uma questão de preocupação significativa”, conclui o documento.
Até a Agência de Segurança Cibernética dos Estados Unidos negou que votos falsos possam ter sido contados. A agência, que se reporta ao Departamento de Segurança Interna, deu um passo – sem mencionar o presidente – para rejeitar as acusações.
“Os escritórios eleitorais locais têm medidas de segurança e detecção em vigor que tornam muito difícil cometer fraudes por meio de votos falsos”, escreveu a agência em sua página de controle de boatos. Em um tweet subsequente, o diretor da agência, Chris Krebs, pediu aos cidadãos que não se deixem enganar por informações incorretas que tentam minar a confiança nas eleições.
Da Redação