Com queda na renda, trabalho doméstico fica mais pesado para as mulheres pobres
Crise e volta da fome empurram-nas para dentro de casa, impedem que acessem o mercado formal e aumentam sobrecarga doméstica. Veja como isso acontece.
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A situação de insegurança alimentar causada pela crise econômica do governo Bolsonaro trouxe diversas consequências para a mesa e o bolso das famílias trabalhadoras brasileiras.
Já falamos aqui sobre a volta do país no mapa da fome, quem são as mais atingidas e as saídas para superarmos essa situação. No entanto, é possível ir além das consequências diretas dessa grave crise e constatar como ela se desdobra sobre as opressões que atinge as mulheres.
Segundo o Atlas das Situações Alimentares no Brasil, as famílias de baixa renda têm menor possibilidade de consumir alimentos sem a necessidade de realizar trabalho doméstico. Ou seja, quanto mais vulnerável é a situação financeira da família, menor a chance de complementar a alimentação fora de casa, pesando ainda mais a sobrecarga do trabalho doméstico – que, em uma sociedade patriarcal como a nossa, é feito majoritariamente por mulheres.
Mesmo com o crescimento observado nas despesas com alimentação “fora de casa”, o consumo domiciliar ainda é responsável por aproximadamente 70% dos alimentos consumidos no Brasil.
Quase todo mundo come em casa, mas a extrema desigualdade social aparece na hora de botar comida na mesa. As famílias mais ricas apresentam aquisição alimentar acima da média nacional em 13 das 17 categorias de alimentos. Enquanto as famílias mais pobres conseguem superar a aquisição média em apenas quatro categorias – quando conseguem.
Fica mais pesado sobreviver
A economista Marilane Teixeira pontua que a sobrecarga também vai além da dificuldade de comer fora do domicílio, pois, com a volta do país ao mapa da fome, diz respeito à satisfação das necessidades básicas.
Segundo a especialista, as mulheres mais pobres são compelidas a realizar o provento dos alimentos em casa e também são responsáveis por buscar formas e estratégias de assegurar que a família tenha acesso aos alimentos básicos, diante de um cenário de perda de rendimento – muitas vezes racionando e substituindo itens para conseguir comprar o essencial.
“São as mulheres que buscam preços menores, buscam locais onde podem ter acesso a alimentos mais baratos, isso sem dúvida nenhuma representa uma sobrecarga doméstica, porque além de serem responsáveis por prover, elas também tem que buscar formas de compensar a perda de renda, a queda do número de itens que compõe sua cesta básica por meio de doações, recorrendo à família, etc. E essa carga recai sobre as mulheres”, ressalta Teixeira.
A volta do Brasil ao mapa da fome também gera essa tensão permanente das mulheres sobre conseguir por comida na mesa para seus filhos. Portanto, trata-se não apenas de energia física para buscar alternativas de alimentação mais barata, mas também da sobrecarga emocional de dar conta desse processo.
E, na maior parte dos casos de insegurança alimentar, aponta a economista, são trabalhadoras em regime precário ou diaristas, que vão precisar aumentar a carga de trabalho remunerado, fazer bicos e jornadas noturnas para viabilizar o mínimo de renda e assegurar a sustentabilidade da família.
A conta da crise: empurrada para fora do mercado, dentro de casa sem remuneração.
A economista Marilane Teixeira relaciona diretamente os períodos de crise econômica e adoção de políticas de austeridade com o aumento da sobrecarga doméstica. O principal sintoma é a desigualdade social e de gênero na hora de conseguir emprego e gerar renda. Segundo o Atlas, poder de rendimento também é o principal indicador de segurança alimentar no país.
No Brasil, em torno de 30% das mulheres fora da força de trabalho que gostariam de trabalhar, mas não estão trabalhando, alegam que justamente são as responsabilidades com as tarefas domésticas e de cuidados que as impedem
Estamos falando atualmente de 45 milhões de trabalhadoras fora da força de trabalho, enquanto o equivalente para homens é de 23 milhões. Ou seja, quase o dobro de brasileiras estão sem emprego em relação aos homens.
E não para por aí. A distribuição desse “desemprego” também é brutalmente desigual. Quanto mais pobre a família, menor é a participação das trabalhadoras no mercado de trabalho.
Ou seja, quem mais precisa de renda é quem tem mais dificuldade de conseguir meios para se sustentar.
Marilane revela que a taxa de participação das mulheres mais pobres (até ½ salário mínimo de renda per capita domiciliar) é muito menor do que as mulheres com renda maior que 5 salários mínimos.
“Diminui a participação das mulheres nas famílias mais pobres, porque elas têm uma sobrecarga de trabalho doméstico. E porque há uma menor oferta de políticas públicas, obrigando-as a manterem suas tarefas domésticas e de cuidado como prioridade”, explica a economista.
Um exemplo dessa realidade é a disponibilidade de vagas em creche. No Brasil, 70% das crianças de zero a três anos não tem acesso à creche, são basicamente crianças de famílias pobres, reforça Marilane.
Em suma, é a corda da desigualdade social, da sobrecarga doméstica, da ausência de políticas públicas decorrentes das políticas de austeridade e neoliberais, arrebentando para o lado mais vulnerável — pobre, mulher e população negra — com muito mais força e crueldade.
Ana Clara Ferrari, Agência Todas