André Singer e Carlos Árabe: O 6º Congresso precisa recuperar a noção de luta de classes
Resposta ao companheiro Kjeld Jacobsen
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1. O período deve ser elogiado e criticado
Os comentários do companheiro Kjeld Jacobsen (“Afinal, o período histórico deve ser elogiado ou criticado?”) ao texto que preparamos como subsídio para o 6º Congresso Nacional do PT permitem avançar no debate sobre como avaliar os governos Lula e Dilma. Embora concorde conosco na caracterização dos avanços obtidos durante as gestões petistas, Jacobsen parece descontente quando buscamos mostrar os seus limites. Como se pudesse haver alguma experiência desprovida de limites e como se o papel da reflexão partidária não fosse justamente o de reconhecê-los para avançar além deles, quando possível.
Mas se nos ativermos às questões específicas apontadas por Kjeld, terreno sempre mais profícuo para o esclarecimento do que os princípios genéricos, talvez alguns aspectos possam ser melhor entendidos. Por exemplo, a ideia de que o lulismo desenvolveu uma estratégia de utilização intensiva das margens não significa que as mudanças por ele propiciadas foram “marginais”, no sentido de insignificantes, como parece ter entendido Jacobsen. Quer dizer, buscaram-se espaços que o capital não vetasse ou até pudesse participar, como por exemplo, o Prouni ou o Minha Casa Minha Vida. Nos campos em que essa convergência não existia, portanto, sem margens, como o dos direitos universais, os avanços foram menores.
Assim, foi possível produzir uma série de avanços, mas houve limites. Não é por acaso, para lembrar um limite importante, que o Bolsa Família não se tornou direito constitucional. Mesmo assim, em nenhum momento usamos a expressão “conciliação de classe”, o que demandaria um programa ativo e explícito de concessões mútuas, para caracterizar o período. No entanto, o próprio Kjeld reconhece os movimentos de moderação que buscamos assinalar no texto. Ao indicar que Lula é capaz de negociar e compor, de que as eleições dele e Dilma foram apertadas, mostrando falta de apoio para mudanças estruturais, e que houve necessidade de alianças com o “outro lado” para vencer o adversário principal, Kjeld corrobora a nossa análise de que houve uma escolha por mudanças sem confronto.
2. O que essa avaliação elogiosa e crítica nos ensina?
Em primeiro lugar, que foi possível trazer uma série de benefícios para os setores mais pobres, com reflexos importantes para a classe trabalhadora como um todo. Sobretudo à medida que se consolidou uma política de pleno emprego e aumentos contínuos do salário mínimo, houve uma melhora significativa nas condições de vida e luta do conjunto dos trabalhadores. Pode-se até cogitar em que medida a continuidade de tal política não foi o elemento estrutural que começou a desconfigurar o quadro de alianças com os empresários herdado por Dilma em seu primeiro mandato.
Em segundo lugar, a partir de 2011, aprendemos que para dar continuidade a tal política numa conjuntura “apertada”, uma vez que a crise mundial diminuiu os ganhos do período anterior, seria necessário mobilizar as bases populares. A ex-presidente Dilma fez a opção de comprar brigas para manter o emprego e a renda, mas não tirou as consequências políticas necessárias da decisão de confrontar. O partido, talvez por estar ainda embalado pelos ganhos anteriores, também não teve a capacidade de perceber que a conjuntura havia se alterado e requeria novas posturas.
Portanto, aprendemos que o nosso programa de governo não pode ter um caráter dogmático. A luta de classes não é uma escolha, é um movimento da realidade capitalista para o qual um partido de trabalhadores precisa estar sempre atento. Reintroduzir tal variável em nossa avaliação do período que acaba de se encerrar ajuda a desenhar o futuro.
3. O sucesso do golpe só pode ser entendido a partir dessa análise.
Compreender porque fomos apeados do governo (apesar de os nossos governos terem sido, sem dúvida, muito superiores aos governos neoliberais e se proporem, no seu desenvolvimento, a ultrapassar o neoliberalismo) é uma exigência para definir nosso futuro. Se não aprendermos com a nossa derrota histórica, a consequência será a incapacidade de erguer um programa de transformação: frente a ele, a “vaca” vai tossir novamente. Estaríamos, então, frente a um dilema terrível: ou o programa será de mudanças e sofrerá o risco do golpe ou o programa deverá recuar o bastante para não sofrer o risco do golpe. Esse é o beco sem saída a que nos levaria a recusa a examinar criticamente nossa experiência.
Buscamos ver o momento-chave em que houve uma inversão na relação entre as classes fundamentais, quando a burguesia, no dizer de Lula para a Comissão Executiva Nacional, reintroduziu a luta de classes. A mudança de curso produzida pelo enfrentamento da crise do neoliberalismo iniciada em 2008 não podia mais ser comprimida nas margens estreitas das garantias oferecidas pela Carta ao Povo Brasileiro.
No 5° Congresso, a rejeição da proposição formulada pelos petistas dirigentes da CUT defendendo uma nova política econômica comprometida com o salário, o emprego, o investimento e políticas sociais marcou a responsabilidade do partido com a derrota histórica que viríamos a sofrer mais adiante. Interpretamos esse suporte à guinada neoliberal como uma ilusão de retomar um pacto com as classes dominantes ao estilo Carta ao Povo Brasileiro, que a seu tempo fora extremamente polêmica e que no auge dos conflitos de 2015 abriu as portas para a maior derrota que já sofremos.
4. No plano mais geral, não há contradição entre reformas e socialismo
O ponto de vista do PT até 2001, conforme destacamos no nosso texto, ao contrário da barreira entre reformas e socialismo recomendada por Kjeld, é de considerar que a realização de reformas através da conquista de governos deve acumular forças para a transformação da sociedade em direção ao socialismo democrático.
É verdade que de 2006 para frente esse tema não foi tratado, o que tem relação direta com o fato de que o partido, acomodando-se aos seus êxitos eleitorais, passou a elaborar menos e isso se refletiu nos programas de governo, que foram mais produtos da experiência de governo e menos da interação entre o programa socialista do partido e a experiência de governo. É, portanto, uma razão negativa – e não uma virtude – o que explica essa limitação. É dela, no entanto, que Kjeld se vale ao nos advertir que “os programas eleitorais do partido nunca foram socialistas, e sim reformistas”.
A falsa ideia de que as reformas impulsionadas pelos nossos governos não têm nada que ver com o socialismo implica em não se preparar e não organizar mudanças crescentes na economia, na sociedade e no Estado. Essa visão, certamente, foi responsável pela convivência com estruturas conservadoras de poder, por alianças com partidos de direita e por uma baixa mobilização e organização das forças sociais interessadas em mudanças crescentes em favor das maiorias. E, em última instância, pela crença de que a luta de classes não estava mais em vigor.
Por André Singer, cientista político e professor da USP, e Carlos Henrique Árabe, secretário Nacional de Formação Política do PT, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.
ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores