Artigo: O Brasil voltou. O Mercosul voltará.
Para Maria Sílvia Portella, Marcelo Zero e Mônica Valente, o Mercosul nunca esteve tão ameaçado quanto no governo Bolsonaro.
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Desde o início desse governo, ministros importantes, como Paulo Guedes, por exemplo, fizeram declarações bastante depreciativas sobre o Mercosul, insistindo na tese equivocada de que o bloco impediria a integração da economia brasileira às “cadeias globais de valor”. Ademais, houve, por parte do Brasil, forte desinvestimento nas atividades de integração. O bloco, na realidade, ficou semiparalisado, ao longo desses últimos quatro anos.
Esse forte desinvestimento no Mercosul espraiou-se também para a União da Nações Sul-Americanas (Unasul), a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que foram abandonadas pelo governo Bolsonaro, configurando um quadro de desconstrução geral da integração regional.
A questão central é que, em razão de governos ultraconservadores e neoliberais de Estados Partes do bloco, como o de Bolsonaro, no Brasil, e o de Macri, na Argentina, houve o predomínio político de posturas contrárias ao projeto do Mercosul “soberano e integrador”, motivadas, em boa parte, no caso do Brasil, por um alinhamento acrítico com os interesses da administração de Donald Trump.
Nesse contexto, colocou-se ênfase na necessidade de se acabar com união aduaneira do bloco e investiu-se em foros regionais sem institucionalidade e fortemente ideologizados, como o PROSUL, por exemplo.
Ora, o abandono da união aduaneira representaria a implosão do bloco. Representaria, em última instância, a transformação do Mercado Comum do Sul em mera área de livre comércio, uma espécie de “Alcasul”.
É preciso considerar que a união aduaneira é pedra fundamental do Mercosul, sobre a qual se sustentam outras dimensões importantes do processo de integração, como a livre circulação de pessoas, a constituição de instituições supranacionais, como o Parlasul, e a construção de uma cidadania comum.
De forma semelhante à União Europeia, o processo de integração “mercosulino” não visa apenas desgravar o comércio entre os membros do bloco. Visa, no plano interno, integrar as economias, as políticas, as instituições e os cidadãos num projeto estratégico de construção conjunta de sociedades democráticas, prósperas e justas. No plano externo, o processo de integração objetiva propiciar aos Estados Partes inserção soberana e mais competitiva num cenário internacional que se caracteriza por grande assimetria.
Caso o Mercosul seja transformado em mera área de livre comércio, como o Nafta, por exemplo, todas essas dimensões estratégicas do bloco se perderiam.
No campo econômico e comercial, os prejuízos para o Brasil, em particular, seriam imensos. Cerca de 90% do exportamos para o Mercosul são produtos industrializados, de alto valor agregado. Sem a união aduaneira, perderíamos o acesso privilegiado que temos nesse mercado, o qual seria ocupado por países que têm economias industriais bem mais competitivas.
Ressalte-se que a ideia de se desfazer da união aduaneira para firmar, de forma atomizada, acordos de livre comércio com países desenvolvidos, no entendimento de que essa integração assimétrica às “cadeias globais de valor” conduziria ao crescimento econômico e à prosperidade, é uma anacrônica ilusão neoliberal, refutada pelo trágico exemplo do México, entre vários outros.
Trata-se de um modelo que só beneficia as empresas transnacionais, as quais, nesse arranjo, ficam livres para estabelecer e comandar as cadeias de produção e comercio que lhes dê menos custos e mais lucros, em detrimento das necessidades de trabalhadores e da população dos Estados Partes.
A bem da verdade, o atual contexto econômico mundial, que inclui forte desarranjo das cadeias globais de valor, indica a necessidade de se fazer uma aposta inversa, ou seja, de se investir em cadeias regionais de produção, amparadas em políticas estatais de desenvolvimento sustentável. Ambientalmente sustentável e socialmente sustentável. Isso seria impossível, porém, no quadro do “regionalismo aberto” desintegrador proposto pelos neoliberais.
Mas os grandes perdedores seriam os povos dos países do bloco. Áreas de livre comércio acentuam as assimetrias entre as nações, geram desemprego e informalidade nas economias mais débeis, intensificam as relações de dependência, corroem a soberania, geram conflitos e amplificam as desigualdades sociais. Desintegram, em vez de integrar.
Áreas de livre comércio podem construir muros, como no Nafta; não pontes capazes de unir sociedades e povos.
Por tudo isso, deve-se condenar, de forma veemente, essas tentativas canhestras de destruir a dimensão estratégica do Mercosul, com a desculpa falaciosa de “flexibilizar” a união aduaneira, “modernizar” o bloco, e inserir-se nas cadeias globais de valor.
É imprescindível, em consequência, que a integração regional “soberana e integradora” venha a ter centralidade na nova política externa do próximo governo Lula, pois tal integração é base para o protagonismo internacional do Brasil. Assim, essa política terá de ser, sobretudo, sul-americana e latino-americana.
O Mercosul, a Unasul e Celac deverão reativados e muito fortalecidos. Da mesma forma, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), vital para a preservação soberana da Amazônia, terá de ser dinamizada.
A relativa fragmentação das cadeias globais de valor cria, como salientamos, oportunidade para a geração de cadeias regionais de produção destinadas a agregar valor às economias nacionais, especialmente no contexto da transição ecológica. Nesse sentido, será necessário voltar a investir na infraestrutura e na integração física da América do Sul. A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA ) e o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) terão de ser reativados e fortalecidos.
No mesmo diapasão, será preciso ativar as complementariedades econômicas e científico-tecnológicas da região. Em um plano mais denso, deve-se considerar a criação de uma moeda própria para as transações comerciais do Mercosul, o que nos livraria de gargalos financeiros externos, além da reativação imediata do Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da “Associação Latino-Americana de Integração” (Aladi).
Queremos soberania, igualdade, desenvolvimento sustentável, paz, democracia e Mercosul. Muito mais Mercosul.
O Brasil voltou. O Mercosul voltará.