Artigo: O PT, um patrimônio do Brasil, por Emir Sader

“Estas eleições servem para apontar para as próximas eleições presidenciais, em que a polarização entre o governo e o PT se projeta como a perspectiva mais provável para a nova disputa presidencial”, analisa o sociólogo Emir Sader

Guilherme Santos

Emir Sader

O Brasil se diferencia dos outros países por vários aspectos, dependendo do ponto de vista em que se olhem as coisas, para melhor ou para pior que outros países. Do ponto de vista político, no último meio século, o que diferencia o Brasil, é a existência do PT, o Partido dos Trabalhadores.

Não é necessário percorrer a história brasileira nesse meio século para nos darmos conta do que significa para o Brasil ter o PT, enquanto outros países não contam com algo similar. O PT cruzou esses anos todos como a formação política mais importante do Brasil, mesmo quando não tinha a força que passou a ter mais tarde.

O PT como partido de novo tipo

Quais as particularidades do PT, que fizeram com que ele tenha assumido esse lugar tão destacado na história do Brasil?

Em primeiro lugar, o PT nasceu das greves do ABC, ainda durante a ditadura, um movimento essencial para a crise final do regime militar e que deixou suas marcas profundas e indeléveis no PT, que surgiria pouco tempo depois. Suas profundas raízes populares vem, originalmente, daí, e tem na figura preponderante do Lula na formação e no desenvolvimento do PT, sua expressão mais marcante.

O PT nascia assim articulando as lutas operárias, desde as próprias portas de fábrica até o sindicato, como forma inovadora e radicalmente democrática no movimento operário brasileiro. Ao mesmo tempo que articulava a luta pelos direitos dos trabalhadores, rompendo o arrocho salarial, como engrenagem fundamental do regime militar, com a luta democrática contra a ditadura.

Uma vez fundado, agrupando setores do novo momento operário, militantes dos movimentos da Teologia da Libertação, militantes remanescentes da resistência à ditadura, assim como uma ampla gama de trabalhadores intelectuais, do campo educacional, do campo do direito, entre tantos outros. Nascia assim com uma composição e uma anatomia muito distintas de todas as organizações de esquerda e populares que tinham existido anteriormente.

Ao colocar os trabalhadores no seu nome e ao colocar o socialismo como objetivo, o PT revelava o caráter ideológico que o partido assumiria. Diferenciando-se tanto do getulismo, como dos grupos doutrinários, das organizações armadas, o PT se colocava como campo de ação a restauração e o fortalecimento da democracia, ao mesmo tempo que, pela primeira vez, surgia como partido que articula os movimentos sociais e a luta política.

Os vínculos internacionais com partidos de uma nova esquerda que surgia concomitantemente na América Latina e em outras regiões do mundo, o PT estabelecia, pela primeira vez, vínculos estreitos e amplos da esquerda brasileira com a esquerda de outros continentes.

Mas as características que definem o papel central do PT na história brasileira viriam se configurar na trajetória que o partido foi assumindo. O PT se tornou, logo, o principal partido de esquerda, tanto em comparação com outras organizações, mas principalmente no período histórico fundamental das últimas décadas do século passado e nas primeiras deste século. Reconhecido pelos movimentos populares, mas também pelos adversários, que rapidamente se dariam conta de que o PT é o inimigo fundamental da direita e das estruturas de poder tradicional no Brasil.

A própria mídia, benevolente e interessada na novidade do PT no seu surgimento, rapidamente passou a ter no partido seu adversário privilegiado, atacado sistematicamente, quando não desconhecendo os grandes avanços que logo o PT protagonizou. Lula se tornou o personagem mais importante da política brasileira, ainda antes de ser candidato à presidência do Brasil, quando o PT, com menos de dez anos de vida, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989 e teve que ser vítima de manipulação midiática para que não triunfasse já naquele momento.

O PT assumiu, a partir daquele momento, o papel central na esquerda e na construção de alternativa aos projetos neoliberais no Brasil. No plano municipal, o PT conquistou várias prefeituras, com destaque especial para a de Porto Alegre, onde desenvolveu as inovadoras experiências do orçamento participativo. Em dezenas de outras cidades também o PT consagrou um estilo petista de governar, democrático, que permitiria que o partido construísse sua implantação a nível nacional.

Nas duas eleições sucessivas a candidatura do Lula disputou diretamente com os governos neoliberais, como alternativa que privilegiava as políticas sociais, a partir do diagnóstico de que o principal problema do Brasil não era o desequilíbrio das contas públicas e a inflação, mas as profundas desigualdades que cruzam a nossa sociedade.

PT, partido de governo nacional

Até que, depois de convencer à maioria dos brasileiros de sua visão do País, Lula ganhou as eleições de 2002 e se tornou o primeiro trabalhador, o primeiro operário, o primeiro líder sindical, a se tornar presidente do Brasil, consagrando a evolução que o PT foi tendo como partido e como força política hegemônica no campo da esquerda.

O PT já contava com um conjunto de movimentos sociais – CUT, MST, entre tantos outros -, que ele ajudou a criar. Contava com grandes experiências de governo a nível municipal e estadual, contava com grandes bancadas de parlamentares no plano nacional, estadual e municipal, além de grande quantidade de líderes sindicais e de todos os movimentos sociais.

Contava, além disso, com a liderança do Lula, que se tornou o maior líder político brasileiro, latino-americano e o mais importante líder da esquerda em escala mundial.

Na resistência aos governos neoliberais da década de 1990, o PT foi elaborando a plataforma de governo que o Lula colocaria em pratica, com sucesso extraordinário – a ponto que ele saiu do segundo mandato de governo com 87% de apoio, apesar de ter 80% de referências negativas nos meios de comunicação.

Os governos do PT conseguiram retomar o crescimento da economia, apoiado em políticas de distribuição de renda e de expansão do mercado interno, ao mesmo tempo que mantinham controlada a inflação e criavam mais de 20 milhões de empregos com carteira de trabalho e elevavam o salário mínimo 70% acima da inflação.

Expandiram e democratizaram os sistemas educacionais e de saúde, desenvolvendo, no plano externo, políticas de integração regional, que projetaram o Lula como o grande estadista no plano mundial.

Os governos do PT foram, até aqui, os momentos mais virtuosos da história política brasileira, que demonstraram que a esquerda sabe governar muito melhor que a direita, que a via da superação do neoliberalismo é o caminho da construção de uma sociedade mais justa, solidária e humanista.

PT, inimigo fundamental da direita

Tudo o que a direita faz é tratar de evitar que o PT continue ou volte a governar o País. Perderam quatro eleições sucessivas e apelaram para o golpe que derrubou a Dilma. Sem o PT no governo, a direita revelou escancaradamente seu projeto de restauração neoliberal, que leva o País a retroceder em todos os planos. Com projetos que não conseguem conquistar apoios sociais estáveis – como o PT havia conseguido -, sua preocupação principal é evitar que o PT volte a governar.

A escandalosa manipulação das eleições de 2018 – em que o Lula ganharia no primeiro turno – permitiu à direita colocar na presidência um personagem vinculado às milícias e às suas formas de agir. Vale tudo, contanto que não volte o PT à presidência, porque a direita sabe que o PT voltaria a governar de forma democrática, com expansão da economia e distribuição de renda, voltando a conquistar o apoio da grande maioria da população.

O PT se tornou, assim, a vítima das mais brutais campanhas de perseguição política – golpe contra a Dilma, prisão do Lula, tudo sem quaisquer fundamentos jurídicos -, de difamação – corrupção, responsável pela recessão econômica do País, entre outras inverdades -, de tentativa de isolamento e, se fosse possível, de liquidação do PT.

O que não impede o PT de contar com um trabalho estreitamente associado aos movimentos sociais, de contar com grandes bancadas de parlamentares a nível federal, estadual e municipal, de contar com grandes governos estaduais e de contar com a maior e mais ampla militância em todo o Brasil.

As condições de pandemia permitem ao governo bloquear as grandes manifestações de massa de rejeição do presidente, durante o período de quarentena. Foi nessas condições anômalas que se deram as eleições municipais, acompanhada pelo coro midiático do isolamento e da crise do PT.

O balanço das eleições é um tema específico, mais além das manipulações da mídia. Mas o fundamental é que a direita – que nesse caso não se equivoca – sabe que seu grande inimigo é o PT, pelo apoio de massas que o partido tem, pela liderança do Lula, pelas experiências de governo que o PT acumulou. Assim, se vale até da instrumentalização de outros partidos de esquerda e suas candidaturas, para promover o isolamento do PT. De tal forma que o anúncio precoce do fim do PT acompanha toda a história do partido.

Nestas eleições, o PT pôde recuperar uma parte do que havia perdido nas eleições anteriores, quando o partido foi vítima da mais brutal campanha de difamação e perseguição, até que lograram o golpe contra a Dilma e difundiram o “antipetismo” como escudo de proteção contra o PT. Pôde reafirmar seu caráter de único partido nacional, pela capilaridade da sua presença política em todo o Brasil, reelegendo e elegendo prefeitos e vereadores, e acumulando votações que consolidam sua força.

Estas eleições servem também para apontar para as próximas eleições presidenciais, em que a polarização entre o governo e o PT se projeta como a perspectiva mais provável para a nova disputa presidencial. A derrota do presidente nestas eleições permite prever que as condições de sua derrota são reais, contanto que se consiga reunir a todas as forças que se opõem a ele e a seu programa econômico neoliberal.

Impossível pensar a restauração da democracia e a retomada de um modelo que já deu certo no Brasil, de crescimento econômico e distribuição de renda, sem o papel protagônico do PT. Por tudo o que já trouxe para o Brasil, o PT se tornou um patrimônio nacional. Um partido que veio de longe e irá ainda mais longe. Sua história, suas experiências de lutas populares, de governos, sua presença nacional, a liderança do Lula fazem com que o futuro do Brasil e o futuro do PT se mesclem indissoluvelmente.

Cabe ao PT se renovar e se reestruturar, para ser contemporâneo do nosso presente, estar à altura dos desafios que cabe ao PT, junto a outras forças aliadas, resolver a favor da democracia, do povo e do Brasil. O PT amadureceu no enfrentamento da grande quantidade de crises e de desafios que teve que enfrentar, em que mostrou que é capaz de readequar-se e sair mais forte de cada uma delas. O PT tem plena consciência das suas responsabilidades para fazer o País sair da situação que vive, para voltar a voltar a ter um governo plenamente democrático, solidário, humanista, que promova a soberania do povo brasileiro.

Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros.

Artigo originalmente publicado no portal Brasil 247.

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